1.
Comecemos por um episódio extraído da página 73 do Dicionário amoroso da língua portuguesa, livro organizado pelo escritor carioca Marcelo Moutinho, juntamente com o português Jorge Reis-Sá, e publicado em 2009 pela editora Casa da Palavra, do Rio de Janeiro. O episódio em questão está no capítulo dedicado à palavra Saudade, no qual ela mesma, no papel de narradora de sua própria história, evoca um professor que sofre de nostalgia do tempo em que a escola era risonha e franca, com a cantoria de hinos (Avante, camaradas, ao tremular do nosso pendão… Glória aos homens, heróis dessa terra, essa pátria querida, que é o nosso Brasil…), e a declamação de poemas de igual fervor patriótico.
Na evocação da personagem chamada Saudade, o professor pigarreia, para desembargar a sua emocionada voz, e pergunta para uma platéia imaginária:
– Quem poderá aprofundar melhor do que qualquer outra pessoa as singularidades poéticas que se enrodilham na essencialidade dos sentimentos humanos e suas expressões vocabulares, senão um poeta?
Um coro de meninos responde:
Ai que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais
Quem nunca teve saudade da escola onde se aprendia a ler… lendo em voz alta, recitando e cantando, que atire a primeira pedra! Os tempos são outros, claro. E outras são as escolas e as poesias. Do tom nostálgico do romântico Casimiro de Abreu chega-se à consciência do mundo no modernismo de Lêdo Ivo, cuja obra poética está reunida numa edição da Topbooks* de mais de mil páginas. É dele um caso exemplar de representação do cotidiano escolar num texto literário, e que, ao mesmo tempo, comprova que para a modernidade o que importa é observar a singularidade na qual o sujeito se insere num tempo e espaço determinados, reinventando as coisas, as relações humanas, enquanto busca tratar os velhos sentimentos de uma forma nova. Já o romantismo valoriza a emoção, o individualismo, o sofrimento amoroso, o passado etc. Agora, passemos a palavra ao nosso contemporâneo Lêdo Ivo:
Primeira lição
Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.
Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.
E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
seus comes e bebes.
Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.
E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?
Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.
Neste poema, a memória do aprendizado das primeiras letras leva ao processo dialético do crescimento humano, da formação do cidadão (Um dia num muro/ Ivo soletrou/ a lição da plebe). Como se o poeta quisesse nos dizer que nunca é demais lembrar que tudo começa mesmo é na escola, onde Ivo viu a uva/ e aprendeu a ler.
2.
Essa escola, porém, só entrou na minha vida quando eu já tinha 8 anos e uma professora chamada Serafina apareceu no sertão onde nasci. Já no seu primeiro 7 de setembro daquele ano de 1949, ela pôs os meninos em cima de um palanque para recitar Castro Alves (Auriverde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança, estandarte que a luz do sol encerra, as divinas promessas da esperança), Olavo Bilac (Criança, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!) e tantos mais. E o povo chorou. Era a chegada de um novo tempo.
Recuando a anos anteriores, chegaremos à escola do professor Padilha, no romance “São Bernardo”**, de Graciliano Ramos, cuja primeira edição é de 1937. Ela rende entrechos decisivos na história de Paulo Honório, um criminoso que, ao deixar a prisão, passa por cima de tudo e de todos, até se transformar num grande fazendeiro no estado de Alagoas, tornando-se “o emblema complexo e contraditório do capitalismo nascente, empreendedor, cruel, que não vacila diante dos meios e se apossa do que tem pela frente, dinâmico e transformador”, nas palavras de João Luiz Lafetá. Tanto que ele constrói a escola visando um bom negócio, que agradaria ao governador e, portanto, poderia lhe render alguma vantagem. Coincidentemente, ao tomar essa decisão, Paulo Honório ouve uma conversa “elogiando umas pernas e uns peitos”. Pergunta: “De quem são as pernas?” Então fica sabendo que são de Madalena, uma professora, bonita, loura, que está entre os vinte e os trinta anos. A partir desse momento Paulo Honório começa a pensar em se casar
Páginas adiante, ele conhecerá dona Glória, tia de Madalena, que lhe diz sentir pena da sobrinha “encafuar-se num buraco”, pois havia feito um curso brilhante.
– Faz pena – concorda Paulo Honório. E acrescenta: – Isso de ensinar bê-a-bá é tolice. Perdoe a indiscrição, quanto ganha sua sobrinha ensinando bê-a-bá?
Dona Glória baixou a voz para confessar que as professoras de primeira entrância tinham apenas cento e oitenta mil-réis.
– Quanto?
– Cento e oitenta mil-réis.
Ele se espanta e diz que “faz até raiva ver uma pessoa de certa ordem sujeitar-se a semelhante miséria”, e se gaba de ter empregados que nunca estudaram e são mais bem pagos. E pergunta por que dona Glória não aconselha a sobrinha a procurar outra profissão. E pior: recomenda um meio de as duas, tia e sobrinha, ganhar dinheiro a rodo: criando galinhas.
O duro realismo desse diálogo nos faz lembrar que quem o escreveu tinha conhecimento de causa. Como sabemos, Graciliano Ramos foi presidente da Junta Escolar de Palmeira dos Índios, em 1927, na qual se elegeria prefeito, em 1928, e onde, em 1932, fundou uma escola na sacristia da Igreja Matriz. E para completar, ele foi nomeado Inspetor Federal do Ensino Secundário, em 1939, ou seja, já depois da publicação do “São Bernardo”. Quanto à sua criatura, estava mesmo era fazendo rodeios para chegar à Madalena, secretamente desejando tê-la como moradora da sua fazenda, não como professora, mas como esposa. E assim Madalena entra para a história como uma personagem nuclear de um drama rural brasileiro de alguma maneira comparável ao da Desdêmona de “Othelo”, a célebre peça teatral de William Shakespeare.
A diferença de sensibilidades, para não dizer de estatura intelectual, moral e etc, levaria Paulo Honório e Madalena a atritos que culminariam num desfecho trágico. E a escola sempre entrava no rol das desinteligências do casal, conforme podemos ler no capítulo 21 de “São Bernardo”:
“Foi à escola, criticou o método de ensino do Padilha e entrou a amolar-me reclamando um globo, mapas, outros arreios […] Quando a fatura chegou, tremi. Um buraco: seis contos de reis. Seis contos de folhetos, cartões e pedacinhos de tábuas para os filhos dos trabalhadores. Calculem. Uma dinheirama tão grande gasta por um homem que aprendeu leituras na cadeia, em carta de ABC, em almanaques, numa bíblia da capa preta. Mas contive-me. Contive-me porque tinha feito tenção de evitar dissidências com minha mulher e porque imaginei mostrar aquelas complicações ao governador quando ele aparecesse aqui. Em todo caso, era despesa supérflua.”
Quer dizer, Paulo Honório não achava os custos do material escolar um investimento, mas despesa. E supérflua. Qualquer semelhança com pessoas do Brasil de hoje não será mera coincidência.
3.
Agora passemos à escola de Jorge Amado:
“Para o menino grapiúna*** – arrancado da liberdade das ruas e do campo, das plantações e dos animais, dos coqueirais e dos povoados recém-surgidos – o internato no colégio dos jesuítas foi o encarceramento, a tentativa de domá-lo, de reduzi-lo, de obrigá-lo a pensar pela cabeça dos outros”.
E nos estreitos limites do internato, ele seria salvo pela lembrança do mar de Ilhéus, da praia do Pontal, das marés mansas e das tempestades, enquanto um padre chamado Luiz Gonzaga Cabral – que substituíra o professor de português -, declamava para os alunos episódios de “Os Lusíadas”, em vez de sacrificá-los com análises gramaticais, tentando descobrir o sujeito oculto e dividir as orações da epopéia lusitana.
“O primeiro dever passado pelo novo professor de português foi uma descrição tendo o mar como tema. A classe se inspirou, toda ela, nos encapelados mares de Camões, aqueles nunca dantes navegados […] Prisioneiro no internato, eu vivia na saudade das praias do Pontal onde conhecera a liberdade e o sonho. O mar de Ilhéus foi o tema da minha descrição”.
Como o padre levara os deveres para corrigir em sua cela, na aula seguinte ele anunciou a existência de uma autêntica vocação de escritor naquela sala de aula. E pediu que os alunos escutassem com atenção o dever que ele ia ler, afirmando que o autor daquela página (que acabara de fazer 11 anos) seria no futuro um escritor conhecido.
“Passei a ser uma personalidade, segundo os cânones do colégio, ao lado dos futebolistas, dos campeões de matemática e de religião, dos que obtinham medalhas. Fui admitido numa espécie de Círculo Literário onde brilhavam alunos mais velhos. […] O padre Cabral tomou-me sob sua proteção e colocou em minhas mãos livros de sua estante. Primeiro ‘As viagens de Gulliver’, depois, clássicos portugueses, traduções de ficcionistas ingleses e franceses. Data dessa época minha paixão por Charles Dickens […] Recordo com carinho a figura do jesuíta português erudito e amável… sobretudo por me haver dado o amor aos livros, por me haver revelado o amor da criação literária, que me ajudou a suportar aqueles dois anos de internato, a fazer mais leve a minha prisão, minha primeira prisão.”
4.
As memórias de Jorge Amado nos pedem um rápido retorno à escola de Graciliano Ramos, não a que ele “construiu” em “São Bernardo”, mas a rememorada numa crônica intitulada “O Barão de Macaúbas”, do seu livro “Infância”****:
“Foi por esse tempo que me infligiram Camões, no manuscrito. Sim senhor: Camões, em medonhos caracteres borrados – e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filhas de Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. […] Deus me perdoe. Abominei Camões…”
Rubem Braga também nos legou uma memorável representação do cotidiano escolar. Em sua crônica “Aula de inglês”*****, com toques amenos que chegam a lembrar os de Machado de Assis, ele dá uma verdadeira aula… de como escrever com sagacidade e leveza. Começa com uma professora a mostrar um objeto para o aluno, perguntando: – Is this an elephant? Como o aluno demora na análise do objeto, a professora fica apreensiva. Mas quando afinal responde, negativamente, e com convicção, ela suspira, satisfeita. A aula prossegue como um teste de conhecimento vocabular na língua inglesa, marcado pelo suspense no silêncio entre pergunta e resposta. Ao final, a professora festeja a vitória do aluno tão efusivamente que o deixa perturbado, sentindo, ao mesmo tempo, vergonha e orgulho.
“Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja, alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:
– It’s not an ash-tray!”
5.
O estojo escolar de Cony
Está no livro “Crônicas para ler na escola”, de Carlos Heitor Cony, publicado pela Editora Objetiva, com apresentação da professora Marisa Lajolo. E vai aqui na íntegra, com autorização do autor:
Noite dessas, ciscando num desses canais a cabo, vi uns caras oferecendo maravilhas eletrônicas. Bastava telefonar, e eu receberia um notebook capaz de me ajudar a fabricar um navio, uma usina nuclear, uma estação espacial.
Minhas necessidades são mais modestas: tenho um PC mastodôntico, contemporâneo das cavernas da informática. E um notebook da mesma época que começa a me deixar na mão. Como pretendo viajar esses dias, habilitei-me a comprar aquilo que os caras anunciavam como o top do top em matéria de computador portátil.
No sábado, recebi um embrulho complicado que necessitava de um manual de instruções para ser aberto. Depois de mil operações sofisticadas para minhas limitações, retirei das entranhas de isopor o novo notebook e coloquei-o em cima da mesa. De repente, como vem acontecendo nos últimos tempos, houve um corte na memória. Tinha 5 anos e ia para o jardim de infância. E vi diante de mim o meu primeiro estojo escolar.
Era uma caixinha comprida, envernizada, com uma tampa que corria nas bordas do corpo principal. Dentro, arrumadas em divisões, havia lápis coloridos, um apontador, uma lapiseira cromada, uma régua de vinte centímetros e uma borracha para apagar meus erros.
Da caixinha vinha um cheiro gostoso, cheiro que nunca esqueci e que me tonteava de prazer. Fechei o estojo para proteger aquele cheiro, que ele ficasse ali para sempre, prometi-me economizá-lo. Com avareza, só o cheirava em momentos especiais.
Na tampa que protegia estojo e cheiro, havia estampado um ramo de rosas vermelhas que se destacavam do fundo creme. Amei aquele ramalhete – olhava aquelas rosas e achava que nada no mundo podia ser mais bonito.
O notebook que agora abro é negro, não tem nenhuma rosa na tampa. E em matéria de cheiro, é abominável. Cheira a telefone celular, a cabine de avião, ao aparelho de ultrassonografia onde outro dia uma moça veio ver como sou por dentro.
Piorei de estojo e de vida.
6.
Duas representações teatrais inesquecíveis
A primeira: “Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde. Escrita quando o autor tinha apenas 22 anos, esta peça fez um extraordinário sucesso no Brasil na década de 1970, e foi encenada em mais de 30 países. Trata-se de um monólogo em que a metáfora do poder se encarna em Dona Margarida, professora primária que diz ser uma segunda mãe para os alunos, e só querer o bem deles, mas que usa métodos autoritários, ilógicos, neuróticos e violentos. À medida que a aula avança, os alunos-espectadores se vêm dominados pelo terror, entre o espanto e situações cômicas. Esta peça marcou profundamente a carreira teatral de Marília Pêra, que nela, segundo a crítica da época, revelou qualidades de atleta, acrobata, palhaço, mulher atraentíssima, monstro, e atriz completa, que coloriu o longo discurso da professora Margarida com surpreendentes mudanças de tom, tempo e intenção.
Segunda: “A aurora da minha vida”, de Naum Alves de Souza. Ano: 1981.
O título foi, obviamente, inspirado em “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu. Trata-se de um texto teatral que nasce das recordações de um senhor sobre a sua infância, ao visitar a sua velha escola, quando revive o seu passado escolar. Articulada em quadros independentes, nos quais decorre um longo período de tempo, a peça oferece a cada integrante da classe de aulas o aprofundamento de suas relações consigo mesmo e com o mundo.
São oito personagens/alunos que se alternam com alguns professores, envolvendo um retrospecto às vezes nostálgico, às vezes cômico ou crítico, quando associa as deformações provocadas pelo regime militar ao ambiente das escolas.
Pela sua alta comunicabilidade, “A aurora da minha vida” foi um dos maiores sucessos teatrais da década de 1980, “despertando no espectador a lembrança de fatos muito vistos e vividos, e acumulando impressões, conclusões, associações de idéias que remetem à ternura das coisas familiares”, de acordo com a revista “IstoÉ” de 6 de julho de 1981. Arquétipos, os personagens revelam tipos comuns nas salas de aula de todos os tempos, e os condicionamentos que justificam as suas condutas. E as platéias, que vivem em outros padrões, mesmo se comovendo ao relembrar vivências passadas, não deixam de confrontar, criticamente, o mundo velho com o novo.
E assim concluímos: nem todas as representações da escola risonha e franca são só nostálgicas. Há também as que se manifestam risonhas e críticas.