Para Antônio Pompêu
Olhando a estante, ela lembrava de quem já tinha sido. Menções honrosas, fotografias, recortes velhos de jornais. Aquele memorial era, sem dúvida, um túnel para outros dias. E deles, hoje, pensou, “o que resta? ”. Constatou que a vida pesa, franziu a testa e sentou diante daquela tela que ajudava a iluminar a sala. Assistindo a tudo, já não se via. Seu pensamento, naquela tarde de domingo, viajava, e para bem longe. Seus tempos de vedete, velhos tempos de estrelato. Às vezes se cansava, mas seguia na labuta, a vida não lhe sorria… “Chegar ao auge no que se faz é levar todo um povo nas costas. Pois o racismo, o racismo apronta mais essa com a gente. Olha aonde chegamos e veja se não somos espelhos, destes que não se tem o direito de se deixar quebrar? ”, recordava as palavras de um antigo amor.
Entre um lampejo e outro diante daquela tela, Firmina se reconectava com sua vida atual. As redes sociais lhe conferiam trocentas mil amizades, mas ali estava só, aliás, como há muitos anos… E por isso, ela sentia, não era simples para sua cabeça se manter sã. Achava que estava com um banzo dos seus dias em meio a tantas carinhas fugazmente felizes que curtiam, comentavam e compartilhavam efemeridades.
Ser a primeira mulher negra a um monte de coisas lhe soava perverso desde… Já não sabia qual tempo. Para a família, alguns amigos e outras tantas gentes, era motivo de orgulho.
Era como se Firmina tivesse dado certo, tivesse vencido na vida. Contudo, a solidão lhe doía a alma e adoecia todo o resto. Naquela angústia, refletia o quanto a idade lhe trouxera, e não apenas sabedoria. Seu coração estava apertado com o choque de cosmovisão que lhe transpassava o peito. Se, de onde vinha, cabelos brancos demandavam respeito a uma biblioteca viva; onde estava, uma anciã como ela era apenas uma pessoa velha, e pessoas velhas, como coisas velhas, não serviam para prateleiras.
E ali, naquele fim de tarde de domingo, sentada na poltrona, cheia de anos, cheia de estradas, lágrimas e sonhos, Firmina cerrou os olhos e encerrou a vida. Sozinha.
RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Márcio (Org.). Cadernos Negros, volume 40: contos afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2017.