Limpo e liso era o pelo cor de laranja. Tinha uma coleira com duas argolas para prender a correia. Está, ou ficará na casa do dono ou não existia mais. Enfim, estava livre. Fuçava onde bem entendia. Zanzava como todo cachorro vadio. Pernas curtas, cheio de corpo, aí pelos cinco, seis anos. Pinta de vira-lata novato; ou, pelo trato que exibia, com a recém-recuperada dignidade de vira-lata.
Eu e Manolo, meu filho caçula, não o vimos antes do que aconteceu com instantânea brutalidade. Porque larga e de trânsito alucinado é a Rua Visconde de Itaboraí. Quando o vimos, era tarde. Como um trambolho, rolava o cachorro debaixo de um Chevette prata que passou a mais de 100 km por hora.
O sinal fechou, atravessamos na faixa. Deitado de banda, lá estava o cachorro, os dentes à mostra, agora inúteis; a cabeça não fora esmagada; e do corte fundo no pescoço escorria sangue, muito sangue. Cortados por dentro, seguimos impotentes — bola azedo de raiva, bolo surdo de espanto. “A morte é escura, no mínimo nublada”. Não me lembro quem escreveu isso. Mas me lembro do que diz uma canção popular mexicana:
No vale nada la vida.
La vida no vale nada.
Fui repórter. Logo pensei numa notícia que nenhum jornal publicaria; mentalmente redigi o título:
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Cachorro morre atropelado em Amaralina
— notícia que de resto envelheceria instantaneamente como qualquer outra, porque tudo — cachorro, gente, papel velho, molambo… — é uma coisa só para a cidade feroz.
Lembro-me de Peri, cachorro de campo de meu tio Sinhozinho. Forte, malhado, as beiçorras dependuradas. Nenhum como para ajudar a conduzir o gado. Os maiores touros o respeitavam; acuava boi brabo; era veloz por entre a galharia espinhenta da caatinga.
E lembro-me do estilo exemplar de Graciliano Ramos, deste trecho de Vidas secas, um de seus livros universais: “A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido. O pelo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida”.
Deixei Manolo na porta da escola, ele comentou:
— Cachorro de rua é meio bobo, não é?
— É — eu disse.
Novembro, 1992