A cabeça parecia uma pedra descomunal e disforme desabada sobre o travesseiro, mas ainda estava ligada ao corpo. E foi quem a avisou que precisava se levantar, e rápido, porque a bexiga estava cheiíssima.
Encolheu as pernas, jogou os pés para fora da cama e deu início ao árduo trabalho de erguer o tronco, apoiando-se no cotovelo esquerdo. A primeira tentativa deu em nada. Dá pra esperar mais um pouco, pensou. Mas um calor úmido entre as pernas a avisou que precisava tomar coragem e ir depressa ao banheiro, antes que fosse tarde demais.
Com os olhos fechados, retomou o gesto de dobrar o cotovelo, apoiando-o na cama. Concentrou forças no pescoço e, lentamente, ergueu a cabeça. Sentada na beira da cama, respirou com cuidado. Encher o diafragma seria perigoso; a bexiga só estava esperando qualquer movimento, mínimo que fosse, para ceder.
Será que eu consigo? Acho que não vai dar – olhava para a porta do banheiro em frente como se fosse o cume do Himalaia. Não vou resistir à caminhada, e não tem ninguém aqui pra me dar socorro.
Calçou os chinelos; tocar os pés no piso frio de cerâmica seria fatal. Bom, conseguir sair da cama já era alguma coisa. Caso não resistisse e desaguasse ali mesmo, no caminho, paciência. Não podia era fazer xixi na cama, não no colchão novo comprado há dois meses.
Estou acordando, pensou. Já consigo me lembrar de coisas práticas, como o preço do colchão. Faço assim: inspiro profundamente, me levanto num átimo, e seja o que Deus quiser. O que não posso é ficar aqui, sentada, aguardando o dilúvio.
Conseguiu. Agora só faltava se concentrar no equilíbrio. De pernas juntas, não dava: o corpo, pêndulo invertido, inclinava-se. Ousou separar os joelhos. Arrastou o pé direito, parou. É, não parecia impossível. Em dez passos, no máximo, estaria lá, fazendo tudo no lugar certo.
Seguiu sua dolorosa via crucis apoiando-se na parede, guiada pelo tato. Abrir os olhos já seria pedir demais. Sentada no vaso sanitário, o queixo tocando o peito e as mãos segurando os joelhos, entregou-se. Ah, que alívio!
Um pensamento passou raspando: devo ter tomado um barril inteiro de chope. Mas foi só isso. Pensar era uma atividade completamente fora dos seus propósitos naquele instante, e ficou ali, sentada, aguardando não sabia o quê, até que acordou com o movimento brusco da cabeça em direção aos joelhos. Estou mal, preciso voltar pra cama.
A volta foi mais fácil e rápida. Apesar de ainda estar escuro, voltou como foi, de olhos fechados, apoiando-se nas paredes de um caminho conhecido até um local conhecido e desejado. Logo estava de novo deitada e entregue ao doce dever de dormir que exige uma ressaca.
Ah, que bom ter uma cama! Lembrou-se de uma amiga que ensinava a agradecer por tudo: obrigada, meu Deus, pela cama; obrigada, meu Deus, por ter conseguido chegar ao banheiro a tempo e salvar o meu colchão. Era bom estar em casa, sua própria casa, sua própria cama, os seus inúmeros travesseiros dando-lhe a sensação de aconchego, como se estivesse acompanhada, abraçada por um homem bom e carinhoso.
Suspirou. Aquele era o problema. Os homens tinham sumido, estavam todos em contrato de locação. Por temporada, seis meses, um ano, e alguns desses contratos eram renovados por tempo indeterminado. O mercado não estava fácil, a demanda bem maior que a oferta.
Faltava o travesseiro mais macio, aquele que usava entre as pernas, com a desculpa a si mesma de que servia para amortecer o atrito entre os ossos dos joelhos magros. Jogou o braço para trás, tateou, achou. Apertou os dedos na fronha e puxou. O travesseiro estava preso em alguma coisa, e ela, sem forças. Deixou pra lá. Dormiu.
Uma hora depois acordou de novo. Que droga! Por isso não gosto de beber cerveja: quando a gente começa a fazer xixi, não pára mais. Mas difícil tinha sido a primeira vez, agora já tinha a prática: era jogar os pés pra fora da cama, dobrar o braço, erguer a cabeça apoiando o corpo no cotovelo esquerdo, pronto: já estava sentada. Calçar os pés nos chinelos, arrastar-se até o banheiro, livrar-se de mais um barril de chope, voltar guiada pelo tato até sua cama doce cama e apagar até que tudo começasse novamente.
Mas que porra é essa? Esse travesseiro hoje está a fim de me sacanear. É só a gente não estar nos melhores momentos e até os objetos se aproveitam. Passou a mão pra trás, achou o fugitivo e puxou. Ele não veio. Fez um esforço maior. O travesseiro continuava preso em alguma coisa. Outra tentativa. Ele se recusava a obedecer. Virou-se e abriu os olhos. Santo Deus, que ressaca braba! Os olhos tornaram a fechar, e uma cena se desenhava por trás das pálpebras. De que uma ressaca não era capaz!
Mas, espera aí: desta vez não precisou de esforço para abrir os olhos, só de coragem pra acreditar. Piscou devagarinho, o corpo todo paralisado. Ainda estava escuro, e as cortinas fechadas impediam a primeira luz do dia dentro do quarto, mas não tinha nenhuma dúvida: aquilo ali, deitado em sua cama, era um homem.
O pavor foi tanto que até os olhos movimentou com cuidado. Na posição em que estava não tinha uma visão panorâmica, mas era suficiente para constatar que o homem estava nu, deitado de bruços, e era grande: seus pés varavam o limite do colchão.
Foi arrastando a cabeça lentamente sobre o travesseiro, procurando o resto do homem. Tronco forte, musculoso, os braços semi-esticados para cima, as mãos tocando a cabeceira. Estava com o rosto virado para o outro lado. Ela piscou. Fixou o olhar nos cabelos dele. Agora, mais acostumada à pouca luminosidade do quarto, conseguia distinguir alguns detalhes. Detalhes que não lhe diziam nada.
E agora? Conferiu mais uma vez o estranho confortavelmente esparramado ao seu lado. Nada do que via lhe lembrava coisa alguma, e entrou em pânico. E se ele acorda agora e me agarra? Um homem desse tamanho, não vou poder com ele. Tenho que sair daqui, não posso ficar esperando que as coisas se resolvam por si. Tenho que tomar uma providência. Meu Deus, quem é esse homem? Como ele veio parar aqui?
Aos poucos, foi se controlando. Começou pela respiração. Inspirar: um, dois, três, quatro; expirar: um, dois, três, quatro. Agora, erguer o corpo cuidadosamente, pra ele não acordar: apoiar-se no cotovelo esquerdo, mexer as pernas até atingir a beira da cama, jogar os pés pra fora, torcer a cintura. Sentada na pontinha do colchão, os pés tocando os chinelos, vinha a pior parte: levantar a bunda. O estrado sempre rangia um pouco, será que ele ia ouvir? Chegando na porta do quarto, tirou a chave da fechadura. Saiu. Fechou a porta. Deu duas voltas na chave.
Mais segura, agarrou-se ao telefone:
– Alô… – disse a amiga, bocejando do outro lado.
– Você não sabe o que me aconteceu – ela sussurrava.
– Espero que seja uma coisa muito boa, ou muito ruim, pra eu poder te perdoar por me acordar de madrugada.
– Não é madrugada. São sete da manhã.
– Pra quem dormiu às cinco, é plena madrugada. Diga lá.
– Você não vai acreditar. Tem um homão dormindo na minha cama.
– O quê, senhora?! Hum… muito boas falas. Quando eu conseguir acordar, você vai me dizer se é folclore ou…
– Não brinca, não. Quando eu acordei, vi aquele homem do meu lado. Não tenho a menor ideia de quem seja.
– Nossa… foi assim, é? De dar amnésia?
– Olha aqui, eu estou falando sério, não iria te incomodar por nada. Não sei como esse cara foi parar lá.
– Espera ele acordar e pergunta pra ele.
– E se for um assaltante? E se ele quiser me matar?
– Acorda, Alice! É claro que não é assaltante, nem estuprador. Onde ele está?
– Lá, dormindo na minha cama. Tranquei ele no quarto.
– Hum… quer tomar posse…
– Deixa de brincadeira. Estou em pânico, não sei o que eu vou fazer com ele.
– Se eu não estivesse com tanto sono, ia aí pra ver de perto. Mas você pode chamar um vizinho pra te ajudar.
– Está louca?!
– Olha, não é bom você estar sozinha quando esse cara acordar. Não tem aí aquele casal que é tão teu amigo? Então. Você pede pro teu vizinho ir lá no quarto, abordar o sujeito e saber qual é a dele.
– Ah, é? E o que é que eu digo pros vizinhos, hein? Que eu acordei, olhei pro lado, tinha um homem nu na minha cama, que eu não sei quem é, nem como foi parar ali, me faz o favor de tirar ele de lá. É assim?
– É. Pode ser assim, mesmo.
– Acho que liguei pra pessoa errada.
– Outra opção é chamar a polícia.
– E amanhã viro manchete das páginas policiais: Cardiologista Encontra Homem Nu Dormindo em sua Cama. A 36a DP registrou uma ocorrência inusitada na manhã de ontem. A médica cardiologista Maria Alice, 39, residente no Solar Toulouse Lautrec, Jardin Versalles, bairro nobre da cidade, compareceu à delegacia para denunciar a presença de um homem com aproximadamente 35 anos, 90 kg e 1,85m de altura em sua cama. Segundo a doutora, o homem foi encontrado nu, dormindo de bruços, e não se sabe sua identidade nem procedência. O delegado afirmou que está investigando os fatos e promete uma solução para o caso dentro de, no máximo, 24 horas.
– Veja como são as coisas. Você teve aquela participação fabulosa no congresso, expôs o resultado de todos aqueles anos de pesquisa, e a mídia não te deu a menor bola. De repente, esse cara pode ser um bom gancho pra você divulgar o que interessa.
– Agora já chega! Sei que você gosta de fazer piada, acho isso gostosíssimo quando a coisa é sem importância ou quando se trata dos outros. Mas agora sou eu, sua amiga Alice, e você já teve seus momentos de glória. Vamos falar a sério?
– Vamos. Esse cara não caiu do céu, Alice. Você levou ele pra casa.
– Não queria admitir, mas é verdade.
– Então. Onde você achou ele?
– Não me lembro.
– Não é possível, minha amiga. Você se esqueceu, mas vai se lembrar. Onde você esteve ontem?
– Eu saí com o grupo da terapia.
– Ai, ai, complicou um pouquinho.
– Depois da sessão a gente foi tomar um chope.
– O terapeuta foi também?
– Foi.
– Ai, ai, complicou mais.
– Você tem implicância com ele.
– Implicância, não. Só que você está há cinco anos nessa terapia de grupo, e eu não vejo melhora nenhuma.
– Como, não vê?! Eu estou recuperando meu feminino…
– …que estava subjugado pelo seu superego, sei.
– Já avancei um bocado e obtive grandes resultados.
– Por exemplo: levar um homem desconhecido pra casa e no dia seguinte se esquecer pra não ter que encarar a merda.
– Não é nada disso.
– Claro que é!
– É que eu bebi muito, não sabia o que estava fazendo. Não é trabalho do meu inconsciente. Eu não me lembro mesmo.
– Então vamos fazer um esforço conjunto de reconstituição dos fatos. Vamos lá. Vocês saíram da terapia e foram pra onde?
– Praquele bar da orla onde a gente comemorou o aniversário de Aninha.
– Hum. Quem estava no grupo?
– Eu, Marly, Anderson, Jorge, Agamenon, Teresa e José.
– Vai recompondo a cena, mentalizando a mesa, a posição das pessoas. Visualizou?
– Visualizei.
– Agora se lembre do que vocês estavam falando.
– Sexo.
– Sempre o sexo. Rolou ainda aquele papo dos pais como modelo e responsáveis pela castração da libido?
– Não é bem assim, mas rolou.
– Quer dizer que a sessão continuou no bar. Sim. E vocês bebendo todas.
– Só chope. Que eu me lembre.
– Muito bem. Quem bebeu mais que todo mundo?
– Provavelmente eu.
– Muito bem. Em que momento o cara se aproximou?
– Eu não me lembro.
– Mas você tem que se lembrar! Ele não apareceu na sua cama por obra e graça do Divino Espírito Santo. Você levou ele pra sua casa e botou na cama.
– Mas eu não me lembro, porra!
– Então ligue pra um dos seus colegas e pergunte.
– Não posso. Está todo mundo num workshop de autoconhecimento, e eu deveria estar lá.
– A que horas termina isso?
– Às seis da tarde.
– É, não dá pra esperar. Faz uma coisa: toma um banho, põe uma roupa, vai lá e pergunta.
– Não posso. Não posso entrar no meu quarto, o cara…
– Então lava a cara no tanque, pega uma roupa na corda, veste e se manda pra esse tal de workshop. Teus amigos têm que saber o que você fez.
– Não posso interromper os trabalhos com uma questão pessoal. Cada um pagou cento e cinquenta dólares, o facilitador é o maior cobra no assunto, viveu na Índia não sei quantos anos, passou uns tempos com os monges do Tibete, se eu faço uma coisa dessas, eles me matam.
– Então, você vai ter que se contentar comigo. E agradeça a minha boa vontade.
– Obrigada.
– De nada. Amiga é pra essas coisas. Faz o seguinte: agora que você já está acordada, me deixa na linha e vai lá. Dá uma olhada pra ver se o cara é real.
– Você está pensando que eu inventei essa história toda?
– Não… é só pra dar uma conferida.
– E se ele acordar?
– Você fecha correndo a porta de novo, ou então encara de uma vez e tira todas as dúvidas com ele.
– Não tenho coragem.
– Vai ter que ter. Vai lá, estou te esperando. Não desliga.
Deixou o fone em cima da mesa, levantou-se afastando a cadeira com todo cuidado. Inspirou profundamente, estufou o peito, esticou o queixo e partiu para sua empreitada de vida ou morte. Junto à porta do quarto, balançou: e se ele estivesse acordado? Não podia compreender como tinha feito uma coisa daquelas. Que papelão eu fiz ontem diante dos meus colegas de terapia? Qual o tamanho do meu vexame? Por que ninguém fez nada pra me impedir?
Colocou a chave na fechadura, girou, abriu a porta com cuidado. O homem continuava lá, na mesma posição. Mas, para chegar ao guarda-roupa, precisava dar a volta na cama. Passou pelo lado esquerdo, o seu lado, percorreu toda a extensão do pé da cama, tomando cuidado para não esbarrar nos do sujeito, que venciam o colchão. Com apenas dois passos, chegaria ao guarda-roupa e pegaria o vestido e a calcinha de que precisava para sair, mas não resistiu à curiosidade de ver que cara ele tinha.
Estava se aproximando – tinha que chegar bem perto porque boa parte do rosto estava enterrada no braço -, quando ele deu um longo suspiro, virou de barriga pra cima, encarou-a por uns tormentosos segundos, cobriu os olhos com o braço e apagou novamente.
Ela quase desmaiou de susto. Imóvel diante daquele gigante adormecido, agora deitado de costas e exibindo outras partes do corpo, Alice sentiu suas pernas tremerem e temeu não conseguir arredar pé. Mas fez tudo que era necessário, deixou o quarto em silêncio e, por garantia, deu duas voltas na chave.
– Alô… – sua voz quase não saiu.
– Alice! Você quer me matar de medo? Onde você estava esse tempo todo? Levou duas horas só pra ver se o homem estava lá.
– É claro que ele está. Eu estava tentando ver a cara dele, aí ele acordou de repente, me olhou, mudou de posição e dormiu de novo. Então eu aproveitei pra pegar uma roupa no armário, saí e tranquei ele lá de novo.
– Muito bem, Alice. Agora preste atenção: eu sei que você não está em condições de dirigir, então eu passo aí e pego você. Você acha que o cara vai acordar agora?
– Acho que não.
– Então faz o seguinte: toma um banho, se veste e, quando estiver prontinha, você vai lá no quarto, destranca a porta e sai logo de casa. Me espera lá embaixo. Já, já eu chego aí.
Meia hora mais tarde as duas seguiam de carro para o local do workshop:
– Mas Alice, eu já te disse mil vezes que nós não vamos interromper os trabalhos dos teus coleguinhas de grupo. Nós vamos esperar que dê um intervalo. Uma hora eles vão ter que dar uma paradinha, né? A gente vai pra lá e fica esperando, porque em algum momento eles vão ter que almoçar.
Era um evento grande, em um hotel cinco estrelas. No saguão, as duas esperavam. Alice, escondida atrás de óculos escuros, chorava também os cento e cinquenta dólares perdidos por um porre de chope. Agora tinha que estar ali e dar satisfação a todo mundo, quando perguntassem por que ela só havia chegado na hora do almoço.
– Que foi que aconteceu, Alice?
– Poxa, Alice, foi o máximo. Você não sabe o que perdeu.
– É, gente, não deu mesmo. E vocês devem imaginar por quê, né? É por isso mesmo que eu vim aqui, pra conversar com vocês. Ontem, sabe, eu estava bebendo muito…
– É, menina, ontem você estava demais.
– Que foi que eu fiz? – ela agarrou a manga da camisa do amigo. – Me conta, que foi que eu fiz?
– Você bebeu, bebeu… olha, Alice, não sei o que te deu ontem, mas você estava uma esponja, parecia até que não era você.
– E aí, eu fiz o quê?
– Nada, só bebeu. A gente pediu até pra você maneirar, mas você se chateou e começou a reclamar de policiamento, castração, essas coisas, aí a gente deixou pra lá. De repente, você se levantou e disse que ia embora. A gente ainda tentou impedir, todo mundo achava que você não estava em condições de dirigir, mas você bateu pé que estava bem e se mandou.
– Vocês se lembram de alguém estranho ao grupo ter se aproximado?
– Não, por quê? Aconteceu alguma coisa?
– Alice, você está com seus amigos, conta pra gente: que foi que aconteceu?
Todos olharam para ela, preocupados, aguardando.
– Olha, gente, na verdade não aconteceu nada de mais. Eu bebi horrores ontem, e nem sei como cheguei em casa. Hoje acordei com uma ressaca terrível, não me lembrava de nada, então vim procurar vocês pra saber se eu fiz alguma besteira.
– Que a gente visse, não.
Ela se levantou:
– Está bem. Vão almoçar, porque o tempo é todo contadinho, e vocês têm muito trabalho pela tarde. Eu já vou indo.
– Você não vai ficar? Você pode falar com o mestre e participar dos trabalhos da tarde. Pelo menos você não perde toda a grana. Afinal, são cento e cinquenta dólares…
– Não, não. Deixa pra lá. Estou com a cabeça a ponto de explodir.
As duas entraram no carro caladas. Entreolharam-se.
– Voltamos à estaca zero – disse a amiga. – Vamos almoçar por aí, dar um tempo pro seu homão acordar.
– Não é meu homão.
– Ô, e é de quem, então? Esta noite, querida Alice, você queira ou não queira, ele foi seu. Falar nisso, por acaso você estava pensando em repetir a dose e deixou ele trancado lá?
– Não. A porta ficou só encostada.
– Me diz uma coisa, Alice: você não se lembra de nada, mesmo?
– Não.
– Nem fazendo uma forcinha?
– Não.
– Tudo bem que você não se lembre de como o conheceu. Provavelmente você saiu do bar onde estava bebendo com seus amigos e parou em outro, onde pudesse beber sem culpa, e foi aí que conheceu seu homão.
– Já disse que ele não é meu homão.
– Mas, e em casa? Não é possível que você não se lembre, ao menos, se foi bom ou se foi ruim. Ah, sinceramente, não consigo me conformar com tanta falta de memória.
– Você não consegue? E eu? E eu?!…
– Calma, calma, não se fala mais nisso. Vamos comer uma saladinha, você vai se sentir melhor, depois a gente vai pra minha casa. Quando você quiser, eu levo você pra sua. OK?
– OK.
No fim da tarde, quando já era impossível prorrogar mais o momento de enfrentar os fatos, Alice voltou para casa. O quarto estava vazio, a cama desfeita. Passou a mão sobre o colchão no lado direito da cama:
– Ele estava aqui, deitado deste lado.
– Felizmente já foi embora. Quer trocar o lençol? Eu te ajudo.
– Não, não. Não precisa.
Realmente, pensou a amiga, esta pode ser uma providência sem nenhum sentido. Alice olhou atentamente para a cama, buscando algum sinal. Depois correu os olhos pelo quarto. Se houvera um sujeito, não deixara vestígio.
– Você vai ficar bem, Alice? Quer que te faça um chá?
– Eu estou bem, não se preocupe. E me desculpe ter causado tanta chateação.
– Não foi nada. Hoje foi você, amanhã talvez seja eu. Quem garante que no meu próximo pileque não acabo tropeçando num homão e levando pra casa? Mas olha, Alice, se isso acontecer, eu não vou me esquecer, não. Eu vou é aproveitar.
Sozinha, sentada na beira do seu colchão novo, Alice se perguntou se estava em seu juízo perfeito. Depois deitou-se encolhidinha no seu lado da cama, o esquerdo. Mas não resistiu. Arrastou o corpo, esticou-se de bruços no lado direito, o nariz encostado no lençol. Enquanto se recriminava por tanta falta de coragem, podia jurar que sentia um leve cheiro de homem em sua cama.