CAPÍTULO 11.
ESPINHOS PARA KENAKÊ
Nem tudo foram rosas nas vidas de Kenakê e Kalbe; houve momentos em que as crianças adoeceram e os dois passavam noites inteiras junto às esteiras de palha rogando aos deuses pelos pequenos seres com febre ou dor …
Houve fases difíceis quando Kalbe se ausentava com os outros guerreiros para alguma luta entre tribos vizinhas. As mulheres teciam, cozinhavam e cuidavam da casa e dos filhos enquanto em seus corações a saudade reinava. Kenakê costumava durante estas épocas ficar sentada no terreiro, cercada dos filhos, cantando, enquanto se acompanhava com um instrumento rudimentar que seu povo usava. Mace vinha com o filho e Jode também fazer parte do grupo. Cantavam todos, mas quando a melodia falava de amor, quem estava perto dela via seus olhos brilhantes de lágrimas, que ela a custo continha e sua voz perdia a limpidez, saindo trêmula e emocionada… ela se deixava então ficar parada olhando a lua, que, indiferente e muda. Passava, soberana no céu. Depois, com um suspiro profundo, ela voltava a realidade e procurava distrair os filhos, a sogra e a cunhada cantando e tocando até muito tarde quando a brisa da madrugada convidava-os a entrar …
Mas Kalbe não lhe saia da cabeça; em seus pensamentos via-o lutando, às vezes ferido e sua angústia era real, palpável. E quando os guerreiros chegavam e a tribo toda explodia de alegria, Kenakê abraçava e beijava seu guerreiro terna e apaixonadamente…
Uma tarde seu filhinho menor, Taja Tunga, chegou de um banho de rio dizendo que a cabeça doía. Kenakê pôs a mão nele e verificou que sua pele estava muito quente.
— Você tomou sol, Tunga; está pelando!
— Minha cabeça dói… minha goela dói … repetia o menino gemendo.
Kenakê deu-lhe um alimento quente, cobriu-o, pois ele tiritava de frio, acomodou-o e ficou observando o filho. O menino passou uma noite horrível, delirando, com diarréia, gemendo. Ela colocava panos úmidos em que envolvia o pequeno corpo. Trocava os panos, limpava-o a todo instante. A madrugada veio encontrá-la insone, angustiada e Tunga não apresentava melhoras. Poemka foi chamado junto com os feiticeiros das duas tribos; ela deu religiosamente todas as ervas recomendadas. Mas Tunga não melhorava. O filho de Mace também adoecera e Kenakê ia e vinha de uma palhoça para outra, cuidando dos dois, pois o sobrinho ela considerava como filho.
Tunga estava melhor embora muito enfraquecido e Kenakê podia então dedicar-se mais ao filho de Mace. Num crepúsculo, quando o céu ficava róseo e alaranjado, Mace entrou correndo na palhoça de Kenakê e abraçando-a em pranto pediu:
— Venha comigo, irmã, meu menino está morrendo…
E juntas viram o pequeno ser partir. Mace desmaiou e adoeceu dias depois. Kenakê adoeceu também. Sem os seus cuidados ou porque estivesse muito enfraquecido, o pequeno Tunga teve uma recaída e noutra madrugada qualquer, seu coraçãozinho não bateu mais…
Kalbe chorou sozinho sua perda porque Kenakê, com febre alta, delirava… falava em terras distantes, seres estranhos, plantas exóticas, rios de água cor de ouro…
Kalbe sentiu-se perdido: e se Kenakê, fraca e doente, partisse também?
Quando Kenakê voltou à vida, haviam-se passado duas luas… ela retornou magrinha, olhos fundos, sem aguentar sequer a se erguer sozinha da esteira!
Foi aos poucos readquirindo a saúde; quando tiveram de contar que Tunga havia partido, seu coração quebrou o primeiro pedaço… e Kenakê chorou tanto que Kalbe pensou que nunca mais ela reaprendesse a sorrir.
Mas o sol nasce todas as manhãs trazendo conforto e esperança. Kenakê foi melhorando, foi ficando mais forte, até que voltou a sorrir e a cantar.
Várias pessoas morreram naquela epidemia.
Uns dois anos depois, mais ou menos, Kalbe voltou de uma guerra, nervoso, cansado, inquieto. Até para fazer amor com Kenakê ele estava distraído, distante.
Ela atribuiu isto a ao desgaste da luta em que ele fora ferido e ficara por algum tempo perdido no mato sozinho.
Mas ela terminou compreendendo que algo diferente ocorrera ao marido. Era como se ele houvesse voltado, mas deixado no lugar onde vivera algo de si.
Qual seria? O coração? Um lampejo de ciúme e amor próprio ferido atravessou o pensamento de Kenakê. Kalbe já não era mais o mesmo. Duas noites antes, dormindo a seu lado, ele pronunciara com carinho um nome estranho:
— Assim, não, Magáli, deixe que eu ensino a você.
— Quem é Magáli? Perguntou à queima roupa Kenakê, uma noite em que Kalbe, distante como sempre, sentado à porta da palhoça olhava o céu, como se procurasse lá a razão da sua tristeza.
Kalbe virou-se para ela, os olhos espantados, perguntando:
— Magáli, quem é Magáli?
A moça pensou em recuar; mas sua intuição feminina fê-la observar a reação que aquele nome trouxera ao marido. Com doçura, aproximou-se dele, sentou-se a seu lado no terreiro e de maneira segura falou:
— Não sei; você disse esse nome em sonhos há duas luas passadas…
— Ah! Bobagens… coisas de sonho…
Meio sem graça, ele puxou Kenakê para si beijou-a. mas a moça sentiu que seus beijos haviam perdido o calor dos outros tempos… com o coração apertado, ela falou:
— Kalbe, nós dois somos um só ser… não podemos nem devemos esconder nada um do outro… você não me ama mais?
Kalbe olhou-a profundamente. Parecia ir ao âmago do coração da esposa para sentir o que lá se passava… tremia ligeiramente a voz, quando respondeu com outra pergunta:
— Por quê?
— Seus beijos me disseram… seus olhos tristes e distantes estão a falar de outro ser, de outros beijos… estou errada? Ela perguntou e seus olhos eram ansiosos e tristes. Meu corpo já não lhe dá prazer? Quer tomar uma concubina? Você tem direito a quatro! O que eu quero é que você seja feliz!… mas não posso suportar que não me ame mais. Se isto acontecer, eu me mato: declarou ela com veemência.
— Que absurdo, Kenakê, minha leoazinha! Amar mesmo, só a você, esteja certa disto! E ele era sincero.
— Sim. E desejar? Insistiu a moça; há outro alguém?
Kalbe baixou a cabeça com tristeza. E sua atitude confirmou a suspeita do coração de Kenakê.
— Quem é ela? Quis saber a esposa.
— Magáli… disse ele suspirando. Pertence a tribo dos Chafis…
— Uma mulher de tribo inimiga, então? Perguntou Kenakê confusa. Neste caso, ela não poderá ser sequer sua concubina… isto o faz sofrer, meu pobre querido?
Kalbe confirmou com a cabeça.
Kenakê acariciou-o, puxou sua cabeça para seus seios negros e rijos num gesto maternal. E Kalbe aconchegou-se a ela soluçando. Algum tempo assim ficaram: as idéias passavam pela cabeça de Kenakê com uma velocidade incrível, ela sentia-se perdida naquela torrente de emoções. E se perdesse o seu amor? E se a coisa fosse mais séria que uma simples paixão?
— Prefiro morrer! Concluiu Kenakê.
Depois de ter chorado o bastante para desabafar, lá no terreiro dos fundos da palhoça onde ninguém poderia vê-lo, Kalbe achou-se no dever de confiar seu segredo à esposa. Falou lentamente, medindo as palavras, evitando magoá-la. Kenakê ouvia-o praticamente bebendo suas palavras. Seu coração estava triste, muito triste.
— Quando fui ferido na última luta quase em território dos Chafis, desmaiei. Quando voltei a mim, estava deitado numa palhoça estranha, perdida em meio à floresta e uma mulher de voz meiga, jovem e bonita, olhava para mim, sorrindo.
— Guerreiro Huari, finalmente você está vivo! Já estava desesperanda!
– Olhei-a espantando, pensando que era um sonho, um passeio nos jardins de Olorum.
— Quem é você? Perguntei. Tem certeza que não morri? Olhei em torno para conhecer o lugar onde me encontrava.
— Claro que não morreu! Se morresse não estaria falando comigo! Sou Magáli, filha de Tióla, chefe dos Chafis. Estava prometida ao mais forte guerreiro Chafi, Vulque, mas…
— Mas… o que? Perguntei surpreso.
— Fiz amor com você quando estava inconsciente, quando delirava, com febre porque tinha os ferimentos inflamados e purulentos e eu o cuidava… você se revolvia na esteira e murmurava um nome de mulher, um nome doce…
— Kenakê. Repeti emocionado.
— É… esse nome…
— É minha esposa; eu a amo e somos felizes, disse convicto.
— Eu o amo também, explicou a moça com simplicidade.
— Mas se você é noiva, pertence a uma tribo inimiga da minha, como deixou que eu , na minha inconsciência a maculasse? Como eu vim parar aqui? Eu não entendia aonde aquela mulher queria chegar…
— Eu disse que estava prometida a Vulque, mas não disse que o amava… a moça explicou com um suspiro.
— Você está louca? Perguntei apavorado. Seus guerreiros logo virão e nos matarão: você não tinha o direito de agir assim! Respondi eu, revoltado com a tranquilidade dela.
— Não tema: ninguém conhece esta palhoça perdida no meio do mato. Jamais poderão nos descobrir aqui.
—Por favor, conte-me como me encontrou.
— Ela narrou então, conta Kalbe a Kenakê, que me encontrou perto do rio ferido, desmaiado e delirando. Com dificuldade pegara-me e levara-me para seu refúgio naquela palhoça escondida. Lá cuidara dos ferimentos com ervas cicatrizantes que conhecia. Alimentou-me e velou-me o sono por duas luas. Ia furtivamente à aldeia e de lá escapava para me cuidar sempre que podia… no dia em que eu, inconsciente procurava você, ela se deixou possuir e gemeu de prazer nos braços de um guerreiro estranho, inimigo ferrenho de seu povo.
Kenakê chorava baixinho; Kalbe acabara de falar e pegando seu queixo com a mão trêmula, perguntou:
— Você pode me perdoar, Kenakê?
Ela não respondeu logo. Levantou a cabeça, pousou nele os olhos magoados e depois falou:
— Sei que você tem direito a ter outras mulheres e tenho de me habituar com isto. Mas você próprio me ensinou a ter seu amor só para mim… e dói saber que seu amor não é só meu, agora… suspirou a moça. Mas, eu compreendo: nossos filhos cresceram, meu corpo modificou-se, nossas emoções não são iguais às de antes… essa moça é tudo que eu não tenho, concluiu a moça suspirando.
— Não é isso, querida, reagiu ele. Sozinho na floresta por muitas luas, sem ter você, essa moça entrou na minha vida como um veneno e agora a saudade esta me machucando… Ela é inimiga, jamais poderá ser minha concubina; viver longe dela, sem seu carinho, seu perfume, está sendo tão difícil… oh! Kenakê, me ajuda! E Kalbe soluçava, abraçado a esposa que o ouvia entristecida. Abrir mão de você também não quero, porque é você que amo! É só paixão, coisa do momento, passa… será que você entende? Perguntou ele com os olhos molhados, fitando a esposa com ternura.
— É difícil, mas tentarei! O que não faço por amor a você, Kalbe? E acariciava a cabeça do homem por quem de bom grado, daria a própria vida.
E Kalbe passou a sumir de vez em quando por um tempo. Saía apreensivo, cabisbaixo, apenas dizia a Kenakê que ia à cachoeira sozinho. Voltava com os olhos grandes brilhando, mas com expressão triste. Kenakê percebia que ele ia à palhoça ver Magáli. Silenciava e o recebia sorridente como sempre. Mas os seus beijos não tinham o calor de antes e o sexo entre os dois perdera muito daquela beleza.
Kenakê chorava sozinha na beira do rio, meditando sobre o enfraquecimento do seu amor. Estava sentada com as pernas cruzadas e a cabeça entre as mãos. Seu corpo balançava ritmicamente ao sabor dos soluços; ela nem percebeu a chegada de Mali que, em silêncio se instalara ao seu lado e observava a amiga captando sua tristeza e desespero. Algum tempo assim passaram as duas. Depois, cansada e refeita pelo pranto, Kenakê decidiu-se a entrar n’água; isto pensando, tirou a roupa e mergulhou. Imediatamente Mali fez o mesmo e foi encontrar a amiga perto da cachoeira. Kenakê olhou-a espantada e contente. Um sorriso triste surgiu naquele rosto cansado.
— Mali, que bom rever você!
— Por que chorar tanto? Perguntou a amiga. Tem medo que Kalbe não a ame mais?
— Tenho! Respondeu Kenakê e sua voz era um sussurro. Ele me habituou a tê-lo só para mim, não posso mais dividir seu amor… você me compreende? E além de tudo…
— Além de tudo Magáli pertence a tribo inimiga, não poderia ser, sequer, sua concubina …
— Você sabe tudo! Falou admirada Kenakê.
— Sei, sou encantada. Gosto de você e tudo que lhe diz respeito me interessa. Não tema: Kalbe ama você e daqui a algum tempo, você voltará a ser a única em seu pensamento! Disse Mali com segurança.
— Como sabe? Ele está apaixonado! Dá dó ver como ele fica triste, horas a fio, pensando…
— É uma simples paixão: forte, poderosa agora… mas logo passa, você verá! Confie em mim! Sei do futuro.
— Obrigada Mali… obrigada! Estou mais tranquila, agora!
Rápida como chegara, a sereia desapareceu nas águas do rio em mergulho profundo. Kenakê ficou um tempo meditando.
Passaram-se algumas luas e Kalbe continuava triste, pensativo, distante…
— Até quando aguentarei este desamor, meus deuses? Se perguntava Kenakê.
CAPÍTULO 12.
KALBE É SAGRADO REI DOS HUARIS
Quene morrera e Kalbe deveria ser sagrado rei. Os preparativos estavam movimentando a pacata aldeia dos Huaris. Kalbe tornara-se mais amoroso e alegre, beijava Kenakê com ardor e demonstrava desejá-la quase como antes… Seus beijos voltaram a ser ardentes e os dois ficavam novamente abraçados, juntos, conversando baixinho, mesmo depois do amor…
Kenakê se perguntava frequentemente:
— Será que a paixão acabou?
Chegou afinal o grande dia: a aldeia amanheceu toda enfeitada e colorida. Um caminho de flores atapetava o chão onde o futuro rei deveria passar. Vários dias Kalbe ficara trancado na palhoça dos reis, apenas recebendo a visita dos feiticeiros e anciãos. Meditava em suas futuras responsabilidades e em tudo que estaria por vir … Em seus pensamentos frequentemente se cruzaram Kenakê e Magáli. Sempre a primeira vencia com a ternura e compreensão. Kalbe já sabia como se decidir; mas a esta altura, sua paixão saciada, não queria magoar a moça que lhe salvara a vida, mesmo a troco da própria felicidade.
Kenakê banhada, perfumava-se cercada de mulheres. Também ela teria que estar pronta cedo para ir ao encontro do rei; seriam sagrados juntos soberanos da pequena comunidade. Ela estava nervosa, com aquele sorriso triste que agora lhe emprestava um ar de sofrimento ao rosto cansado. Não era a Kenakê de antes que irradiava felicidade.
Ela estava linda em uma túnica branca, alta, com porte majestoso. Caminhava lentamente, cabeça erguida, olhar parado fixo na imensidão da floresta.
À sua frente a comissão de crianças; após sua passagem, os velhos anciãos. Quando chegou à palhoça, o grupo de guerreiros fazia alas para a passagem de Kalbe. Kenakê fez sua reverência simples e, lado a lado, os dois vieram juntos para o centro do terreiro, onde as poltronas de palha haviam sido colocadas. Ali Kalbe seria coroado rei. A multidão jogava flores despetaladas à passagem dos dois e os gritos de viva Kalbe! Viva Kalbe! Viva os reis! Os acompanhavam em todo o trajeto. Eles sorriam a todos, virando-se constantemente para que ninguém ficasse sem vê-los, sem um sorriso, ou um olhar dos seus soberanos.
A cerimônia foi longa e cansativa: o sol escaldante, fazia escorrer o suor das criaturas e Kenakê ansiava para que tudo acabasse e ela pudesse descansar um pouco. Afinal o feiticeiro e o mais velho homem da tribo, trazendo uma criança, coroaram Kalbe rei e Kenakê sua rainha. Mal a coroa prendeu em sua cabeça, Kenakê estremeceu, viu tudo rodando em sua mente e caiu desmaiada.
Foi um reboliço na aldeia. Ainda bem que a cerimônia estava no fim. Os tambores tocaram forte, as pessoas cantaram e dançaram, enquanto levavam a rainha para seus aposentos. Pouco tempo depois Kalbe soube, surpreso e feliz, que ia ser pai novamente!
Kalbe encontrava-se sempre com Magáli. Já não sentia mais a mesma atração pela moça; dir-se-ia que a gratidão tomara o lugar da desenfreada paixão que o devastara. Ele ia ao encontro de Magáli sem entusiasmo, mais por obrigação do que por desejo. Agora era o homem satisfeito, os prazeres conhecidos, o amor perdido… sentia remorsos de agir assim com as duas, pois reconhecia que ambas o amavam ternamente e seriam capazes, até mesmo, de dar a própria vida para vê-lo feliz.
Magáli o esperava ansiosa como sempre, em pé, na porta da palhoça; mas nesta manhã ela não sorria. Kalbe compreendeu que alguma coisa não estava bem. Saberia a moça que Kenakê estava grávida? Mas ele jamais mentira sobre suas relações com a esposa; nem jamais admitira a idéia de abandoná-la. Não seria isto então. O que seria?
Foi apreensivo e triste que Kalbe beijou-a quando chegou à porta. Perguntou logo:
— Por que está triste, Flor do Mato?
— Nada… não é nada … apenas uma ligeira preocupação.
— De quê? Perguntou Kalbe, olhando em torno, ansioso.
— Não é isto, ninguém me seguiu, fique tranquilo! Olhe Kalbe, não adianta lhe enganar mesmo… disse a moça suspirando. Você descobre tudo!
— Tudo o que, Flor?
— Tudo sobre as pessoas. Estou preocupada sim: meu sangue menstrual não vem há três luas e …
— Magáli! Eu nem tinha pensado nisto! Disse Kalbe nervoso.
— Engraçado, não é? Há tanto tempo juntos, só agora que a rainha engravida, eu também… sua voz tinha acento triste.
— Você sabia de Kenakê? Perguntou Kalbe admirado.
— Ouvi comentários na tribo.
— Não quero que sofra, Magáli; sempre protejo a rainha, mas ela é minha esposa, você sabe.
— Sei, sei… nem me importava em ser sua concubina, não me preocupo com isto. Minha tristeza agora é comigo. Como dizer a meu povo que uma de suas virgens engravidou do seu maior inimigo? Como olhar meu pai no rosto, com a minha barriga crescendo e o prometido esperando a festa de casamento?
Kalbe baixou a cabeça. Magáli tinha razão. Se ela pertencesse a uma tribo amiga, ele simplesmente a tomaria como concubina e tudo terminaria bem. Mas… logo os Chafis, inimigos milenares dos Huaris!
— O que podemos fazer? Perguntou Kalbe tolamente.
— Não sei… a moça começou a chorar baixinho quase num lamento.
— Não chore assim! Pediu Kalbe emocionado, abraçando-a. Tenha calma que juntos encontraremos uma solução para nosso caso.
Ele sabia que não falava a verdade e suas palavras soavam falsas a seus próprios ouvidos.
Abraçados passearam pelo mato vizinho, conversando. Quando Kalbe percebeu que Magáli estava mais tranquila, convidou-a para voltarem para suas casas. Ele sentiu que o beijo de despedida já não tinha mais o antigo fogo; a paixão chegara ao desgaste final. Magáli também percebera, perguntou com voz triste:
— Você não me ama, não é Kalbe? A paixão passou… seus olhos negros e grandes fitavam o rei com ansiedade.
— Claro que gosto de você, Magáli. Mas estou preocupado… não posso deixar você e uma criança inocente sofrerem por minha causa, não é justo!
— Uma mulher sabe quando seu homem deixa de amá-la e quem sabe? Até quando nunca a amou… paixão é diferente… é um fogo que queima, incendeia, enlouquece e logo depois … passa! Na verdade, eu sei, bem lá no fundo do meu coração: você só ama a Kenakê, a mim, não! E jamais amará a outra mulher, só a ela! Como invejo Kenakê! E tenho raiva dela.
Magáli fez um gesto com as mãos significando enforcar alguém. Kalbe estremeceu.
— Não diga isto, pelos deuses! Kenakê é uma mulher extraordinária! Sabe de nós dois, conversa comigo, compreende e, apesar de me amar profundamente, sempre me dá força para que eu não sofra e nem você seja ferida nesta refrega em que o destino nos colocou … ela chora e sofre, mas jamais pronunciou uma palavra sequer de raiva contra você! Por favor, tire minha mulher deste jogo!
Magáli fitou Kalbe; seus olhos tinham uma expressão triste derrotada. Parecia que ela o via pela primeira vez; de repente, ela teve uma sensação incômoda: Kalbe era um estranho para ela. Onde o vira? Onde o conhecera? Por que lhe dera o seu amor, sua virgindade, seu corpo, sua alma? Quem era aquele rei, imponente, orgulhoso e belo, tão apaixonado por uma mulherzinha Huari como ele, que até para falar nela se inflamava todo? Quem era aquele rei?
Numa fração de segundos a moça reviu sua tribo, seus pais, seu noivo, sua família, seus amigos. Viu Kenakê na imaginação e ela lhe parecia como uma mulher velha, murcha, feia e desdentada… ela olhava para Kalbe, mas enxergava além, muito além.
Kalbe perguntou preocupado:
— Que houve, Magáli? Magoei você? Disse absolutamente a verdade, perdoe se não foi aquilo que gostaria de ouvir.
— Não, você tem razão… sou uma tola sentimental, ela falou, voltando à realidade. Não se preocupe, está tudo bem comigo.
— Vou pensar toda a noite em nosso caso; amanhã, a esta hora estarei aqui para juntos tomarmos uma decisão.
Ela fitou-o longamente, sem dizer palavra.
— Não me diz nada? Perguntou ele preocupado.
— Não há o que dizer… esperarei… respondeu Magáli com um sorriso forçado.
— Até amanhã então, disse Kalbe, preparando-se para partir.
— Até amanhã, respondeu Magáli, correspondendo ao beijo do homem amado. Só que não venho aqui; vamos nos encontrar na grande cachoeira, lá no alto dos Tremembés.
— Por que lá tão longe? Estranhou Kalbe.
— Porque lá é território neutro, lembra-se? Assim, poderemos resolver tudo sem maiores preocupações.
Kalbe compreendeu que ela tinha razão. Concordou e despediram-se, Magáli pediu num sussurro:
— Vamos fazer amor outra vez? Só mais uma vez?
Kalbe sentiu-se embaraçado: sentia ternura, gratidão, piedade e respeito por aquela mulher; mas, desejo, sobretudo naquele momento, não! Mas, como explicar o tumulto de emoções que lhe ia n’alma naquela enrascada toda? Sorriu meio sem jeito, voltou-se para a palhoça, abraçou-a e começou os jogos do amor. Magáli foi, sobretudo ardente; agia como se aquela fosse sua última vez: gemia e ansiava nos braços fortes de Kalbe como uma pantera no cio! Seu corpo ardente parecia todo em brasas! Ela beijava, mordia, gania, prendia Kalbe pelos cabelos, desesperada, como se quisesse ficar com ele todo de uma vez… seu apetite não tinha fim … Kalbe estava cansado, quando afinal, já quase crepúsculo, após um dia em que só haviam comido frutas e um pedacinho de caça que ele trouxera escondido na túnica, ela, cansada e saciada, sorriu para ele, um ar de vitória como se perguntasse:
— Kenakê é capaz de amar assim?
Mas não era esta a pergunta que dançava na mente de Magáli e foi por pensar demais na mulher amada que Kalbe não compreendeu o drama da outra!
Muito tempo ainda ficaram abraçados conversando. Kalbe sabia dar ao final do ato físico do amor uma doçura como ninguém; mulher que ele possuía jamais saía insatisfeita dos jogos amorosos e ele as mimava mais ainda no aconchego do “gran finale”! Magáli, enroscada no seu corpo másculo fazia com ele planos para um futuro que ambos sabiam impossível. Quando viu que o sol descambava no horizonte, colorindo o céu de rosa e alaranjado, desvencilhou-se dos seus braços amorosos, dizendo:
— Está na hora, querida. Amanhã recomeçaremos.
Magáli olhou-o com ternura; parecia querer guardar seus traços para copiá-los no filho que ia nascer. Olhava calada para Kalbe e em seus olhos havia uma prece muda. Havia toda uma confissão de amor. Tomando o seu queixo com a mão Kalbe perguntou com carinho:
— Não ficou satisfeita, querida? Foi quase um dia inteiro acabando e recomeçando!
— Não, não fiquei… queria que você ficasse em mim indefinidamente … sorriu Magáli ao ver a cara espantada de Kalbe. Estou brincando, disse sorrindo. Estou satisfeita! Mas… saudosa, muito saudosa! E seus olhos tinham lágrimas que teimavam em escapulir.
— Não chore mais! Pediu Kalbe. Amanhã estaremos juntos e com calma resolveremos nosso problema; você já me devia ter dito que seu sangue lunar não estava vindo … teríamos encontrado uma solução com mais calma; agora terá que ser a toda pressa. Logo, este moleque estará aí dando chutes e pontapés; será mais um guerreiro para os Huaris!
Ambos sabiam que isto não podia ser verdade: jamais os Huaris aceitariam o filho de uma mulher dos Chafis. As palavras do rei soavam trêmulas, inseguras. Magáli compreendeu e tomou a decisão:
— Vai agora querido. Adeus! E pulando em seus braços, deu-lhe um forte abraço, apaixonado, como se não o quisesse soltar mais.
— Confia em mim, querida, sussurrou Kalbe em seu ouvido.
— Sim, murmurou ela. Eu amo você, nunca esqueça isto. Eu amo você! E os dois se deram um longo e apaixonado beijo de despedida.
CAPÍTULO 13.
A SABEDORIA DE MALI
Kalbe voltou para a aldeia triste e preocupado; ele sabia que não amava aquela mulher e que a paixão passara: sentia ternura e gratidão. Toda aquela paixão avassaladora desaparecera com o tempo e a convivência; mas justo agora ela engravidara dele. Porque agora? Só os deuses sabiam. Minha Kenakê tem sofrido tanto, logo agora que eu queria reconstruir nossa vida, retornar as nossas noites de amor, esperar o nascimento do bebê que nos uniria mais, ver nossos filhos crescendo, sagrar Kalila príncipe herdeiro, enfim, recolocar tudo nos eixos para que a felicidade voltasse a brilhar nos olhos doces de Kenakê!
Encontrou Kenakê com Mace que retornavam de um passeio na beira do rio. Notou a barriguinha da mulher já mostrando o filho que viria. E sentiu uma ternura imensa invadir-lhe o coração. Um sentimento de erro, de traição, o tomou-o todo e Kalbe esperou as duas que entravam neste momento na aldeia pelo lado oposto. Mace cumprimentou-o afetuosa e Kenakê abraçou-o esfregando-lhe o nariz. Kalbe puxou-a para si e apertou-a de encontro a seu peito. A moça fitou-o preocupada:
— Vai haver guerra? Perguntou.
— Não, não vou partir. Não posso mais abraçar minha leoazinha? Disse Kalbe, afagando seus cabelos crespos; amo você Kenakê, amo muito!
— Está na hora de ir andando… despediu-se Mace sorrindo. Desse jeito, vocês dois vão povoar o mundo.
Kenakê sorriu, seu sorriso triste de agora, acompanhou a cunhada com o olhar até que ela entrasse em sua palhoça. Mas não se desvencilhou dos braços fortes de Kalbe, onde sempre seu coração queria estar.
Abraçados, os dois entraram na palhoça, onde os filhos faziam algazarra tomando a refeição da noite. Depois de alimentados, Kalbe ajudou Kenakê nos arranjos da casa. Os rapazes saíram para passear com os outros amigos da tribo; as meninas ficaram pelo terreiro conversando com as outras meninas. Kalbe pediu a Kenakê:
— Leoazinha, vamos conversar um pouco andando por aí? Estou abafado, preciso confiar algo a você.
Kenakê olhou-o preocupada. Kalbe lhe pareceu angustiado, suas mãos tremiam ligeiramente. Kenakê pensou por uns momentos e respondeu com naturalidade:
— Vamos; já está tudo em ordem.
Saíram juntos pelo terreiro afora, onde a luz mágica da lua cheia clareava tudo tornando as árvores, as pessoas e a floresta quase irreais. Kalbe abraçou Kenakê ternamente e lá se foram os dois conversando. Havia uma pedra próxima à entrada da aldeia, uma pedra grande, onde Kenakê gostava de ficar conversando enquanto pegava e esmagava pequenas folhas que por ali nasciam. Kalbe costumava pegar algumas flores e dá-las à esposa que ficava aspirando seu perfume e beijando-as. Foi para lá que se encaminharam naquela noite. Kenakê ouvia calada, deixando que o marido desabafasse. Ele falava com emoção, falava da sua paixão que aos poucos, vinha percebendo, desaparecera.
Kenakê ouvia; às vezes discretamente enxugava uma lágrima furtiva, mas logo se controlava. Quando Kalbe contou que Magáli estava esperando um filho dele, ela não pode conter um grito de dor:
— Oh! Deuses! Por que isto também! E agora, Kalbe!
Ele baixou a cabeça. Sabia que havia ido longe demais. Como impedir que Kenakê sofresse tanto?
— Agora não sabemos o que fazer! Ela está prometida a um guerreiro Chafi. É filha do rei. Não pode aparecer grávida do rei Huari; será morta por crime de traição. Não posso trazê-la para a aldeia como concubina porque seremos ambos mortos, eu próprio destronado, toda minha família arrasada por crime de traição. Não tenho o direito de permitir que vocês, que são inocentes, sofram com o meu erro; sozinho deverei pagar pelo que fiz. Mas você conhece as leis… desaparecer até o último rebento, para que não medrem mais traidores na tribo. Terei o direito de permitir isto? Terei o direito de permitir que dois inocentes, mãe e filho, paguem pelo meu erro? Oh! Kenakê estou perdido. E não amo Magáli. Passou, acabou, não resta mais nada.
Kenakê chorava baixinho. Mantinha a cabeça entre as mãos e seu corpo às vezes estremecia por conta da emoção. Kalbe pedia súplice:
— Ajude-me, Kenakê, só você pode conhecer o meu segredo. Ajude-me!
Algum tempo Kenakê escutou e chorou; Kalbe esperava impaciente. Depois, com o rosto banhado em pranto, ela olhou fixamente o marido e lentamente, medindo as palavras, respondeu:
— Kalbe, francamente, eu não sei o que aconselhar; é uma situação difícil. Amanhã, quando o sol nascer, irei até o rio pedir conselho a Mali. Acho que ela, com sua sabedoria de encantada, saberá dizer o que fazermos diante de problema tão grave.
— A lua está cheia, leoazinha, não quer vir agora?
— Agora, assim, com a noite já adiantada? Perguntou Kenakê amedrontada.
— Sim, agora. Iremos com cuidado. A luz da lua está clara, iremos enxergando tudo.
— Está bem, concordou a moça. Que seja agora!
Na praia do rio os dois sentaram-se lado a lado e Kenakê baixou a cabeça, segurou-a entre as mãos e se deixou ficar quieta, meditando. Não demorou muito tempo e o canto seu conhecido se fez ouvir. Kalbe não ouvia absolutamente nada e por isso estava sentado, olhando fixamente a mulher porque sabia que só ela seria capaz de aconselhá-lo.
Kenakê levantou a cabeça e procurou Mali com o olhar: lá estava ela no rio, chamando-a para ir ao seu encontro.
— Vou até ela… explicou ao marido.
Kalbe concordou com a cabeça e ficou olhando-a despir-se e completamente nua, entrar na água fria da cachoeira.
Kenakê saudou Mali e foi logo explicando o motivo de sua aflição. Quando acabou Mali apenas comentou:
— O encanto de Magáli acabou; seu homem voltará a ser só seu, amando-a como dantes… quanto ao problema, não se preocupe: a infeliz já o resolveu.
— Como? Quis saber Kenakê intrigada.
— Diga ao rei que ele saberá amanhã quando o sol nascer na cachoeira dos Tremembés.
— Obrigada, minha amiga! Como poderei pagar um dia a sua ajuda? Perguntou Kenakê agradecida.
— Com sua amizade: ser amigo é o maior presente que se pode dar à alguém! Explicou Mali com sua sabedoria.
Kenakê fez o gesto de esfregar o nariz, mas não tocou na encantada. Esta desapareceu como sempre, deixando o seu coração mais confortado, com a esperança de que tudo voltaria ao normal e, sobretudo com a certeza do amor de Kalbe. Este a esperava ainda sentado na areia.
— Então? Perguntou, ao vê-la chegar com o rosto mais tranquilo.
Kenakê repetiu as palavras de Mali literalmente.
— Ela resolveu, resolveu como? Vou saber amanhã na cachoeira? Não estou gostando nada disso! Disse Kalbe e um estranho pressentimento tomou conta do seu coração.
— Não me parece coisa ruim, querido. Mali estava tranquila… ponderou Kenakê.
— E será que encantado fica nervoso? Eles não são humanos, leoazinha, veja bem!
— Tem razão, concordou Kenakê; espero que tudo termine bem… suspirou.
— E eu também! Disse Kalbe, levantando-se, abraçando a mulher com carinho e voltando à aldeia. Obrigada querida, pelo apoio que me dá!
Kenakê sorriu e olhou profundamente o seu marido. Aquele olhar significava:
– Sangra o meu coração saber que você amava a outra, mas o meu amor por você é tão grande, que posso amar por nós dois… ah! Como tenho sofrido!
Kalbe correspondeu a seu olhar, mas só viu nele muito, muito amor; não compreendeu o quanto magoava a esposa, fazendo-a compartilhar das dores do seu coração.
CAPÍTULO 14.
TRAGÉDIA E DOR
Kalbe não dormira naquela noite; Kenakê, a seu lado, percebia os movimentos do marido e seu coração enchia-se de mágoa.
— Ele ainda a ama… pensava, com o coração contorcendo-se de dor. Será que um dia passará este amor?
— Acordada ainda, Kenakê? Perguntou Kalbe, ansioso por desabafar.
— Como posso dormir se vejo você sofrendo, meu querido?
— Não confunda as coisas… estou inquieto, porque não sei como Magáli possa ter resolvido sozinha um problema tão sério… isto me preocupa. Mas, amor, só tenho a você! Disto fique certa, leoazinha! Por ela tenho amizade e gratidão. Foi uma paixão violenta, mas passou, leoazinha, passou!
Kalbe falava com convicção e Kenakê sentiu-se mais aliviada: conversaram até amanhecer, quando o sono e o cansaço os venceram…
Cedo, Kalbe já estava de pé usando sua túnica de caça. Pé ante pé, muito de leve, saiu sem despertar a esposa que dormia com ar preocupado, com uma ruga que vincava sua pele negra, na testa.
Kalbe depressa tomou o rumo da cachoeira dos Tremembés; seu coração ia pesado, ele tinha pressentimentos estranhos. O sol estava quente quando ele afinal chegou à grande cachoeira; com o seu espírito voltado para o belo, sentiu a emoção que sempre o envolvia quando se encontrava naquele lugar de rara beleza! O rio vinha tranquilo em seu curso e despencava repentinamente com toda a força de uma altura de 80m, numa torrente branca, onde os raios de sol sempre faziam as cores do arco-íris. O volume d’água sendo grande, a espuma subia branca e majestosa com aquele ruído forte e vibrante da natureza e aquele cheirinho de mato fresco, de terra, de água, de vida!
Ele caminhou contornando a água e foi parar ao lado da queda onde havia uma praia, cheia de pedras grandes, onde costumava conversar com Magáli, nos velhos tempos…
Uma tanga sua conhecida boiava na água, ao sabor desta, Kalbe chegou perto, imaginando o que Magáli estaria fazendo arriscando a vida em local de correnteza tão forte.
— Estará brincando de esconder comigo? Perguntou a si mesmo.
Encaminhou-se para as pedras e… um grito surdo de desespero lhe saiu da garganta. Parecia um animal ferido. Ele rapidamente chegou à parte mais funda do rio, onde as pedras se tornam perigosas e inclinadas para o precipício. E a visão que teve fê-lo parar estarrecido!
Magáli morta, balançava ao sabor da correnteza, presa que estava em duas das maiores pedras do rio. Seu corpo ensanguentado e manchado, dizia da sua queda daquela altura… a água lavava indiferente aquele corpo inerte e seu rosto tinha uma terrível expressão de desespero.
Kalbe tentou pegá-la e tirá-la do lugar; com grande esforço e cuidado, segurou-a, carregou-a no colo e a levou rígida para o meio do mato. Deitou-a no chão atapetado e ficou alisando sua cabeça numa prece muda; balbuciava às vezes:
— Por que, Flor do Mato, acabar com sua vida? Juntos, nós acharíamos outro meio…
Mas no fundo do seu coração, ele sabia que aquela era a única saída para o seu drama.
Rezou sozinho por ela; depois de muitas horas ali, começou a cavar uma sepultura profunda. O sol já estava declinando no horizonte quando Kalbe terminou seu trabalho; volta e meia, pegava Magáli, beijava-a e ficava chorando. Seus soluços deram algum alívio. Ele pegou o corpo da moça, colocou-o na sepultura, fez um fogo e queimou-o. Cobriu o rosto com as mãos para não vê-lo contorcendo com o fogo. Depois, chorando ainda, cobriu com terra a sepultura. Neste momento uma pressão suave em seu ombro fê-lo parar de soluçar e olhar temeroso o intruso que atrapalhava aquele momento de dor. Kenakê estava triste olhando-o com todo o amor que seu coração possuía.
— Meu pobre querido! Balbuciou e, tomando sua cabeça entre as mãos puxou-o para seu próprio coração, onde ele soluçou como uma criança.
Já era noite fechada quando os dois voltaram para a aldeia; Kenakê teve o cuidado de plantar uma muda de arvore no local e cercá-lo de pedras brancas. Assim, sempre saberiam onde poderiam vê-la e reverenciar-lhe a memória…
Voltaram juntos, sempre abraçados, ambos mudos. Que palavras traduziriam os sentimentos que os angustiava naquela situação?
O tempo passou, as cicatrizes ficaram; Kalbe deixava-se ficar sentado atrás da palhoça, pensando… relembrava a guerra com os Chafis, que fora desencadeada pela posse da terra além da cachoeira dos Tremembés que pertenciam aos Huaris. Os Chafis, belicosos e violentos, haviam se apossado delas e viviam criando problemas para sua tribo. Como rei, Kalbe teve de aceitar o chamamento da tribo inimiga e partir para a guerra. Deixara Kenakê saudosa como sempre e seu coração fora tristonho. Os Huaris ganharam a batalha final, mas Kalbe fora ferido no último momento, o que não foi percebido pelo seu povo. Todos se retiraram e Kalbe ficou caído, naquela mesma praia da cachoeira onde ele encontrara o corpo de Magáli. A moça constantemente ia lá apreciar a natureza. Quando viu o jovem guerreiro apaixonou-se por ele. Kalbe relembrava agora o que ela contava sobre noites e noites em que ele delirava e ela o cuidava, insone, ajoelhada, trocando panos aquecidos, colocando ervas cicatrizantes.
Em vão os Huaris voltaram para procurar seu rei por toda floresta, em cada trilha, em cada espaço.
Kenakê chorava constantemente e já se imaginava viúva quando, numa tarde morna de primavera ela se encontrava sentada na porta da palhoça conversando com Mace, Jode e seus filhos, Kalila gritou:
— Mãe, lá vem o pai!
Kenakê virou-se incrédula e viu efetivamente Kalbe que entrava na aldeia, caminhando lentamente, magro, pálido, com um sorriso triste no olhar…
Ela dera um grito de alegria e correra para o marido chorando e rindo… naquela hora ela sentiu que o abraço de Kalbe não era tão ansioso quanto o seu.
Kalbe revia em sua mente o reboliço da sua volta. Soubera das buscas sem êxito por toda a floresta que seus guerreiros haviam dado. Do desespero da sua família. Da decisão dos anciãos de que Tizo, seu primeiro irmão, assumisse o poder, já que Kalila ainda não alcançara a maioridade.
Quando Kenakê pensara que tudo voltaria ao normal, houve aquele pesadelo de Magáli.
Agora Kalbe revia a moça da tribo inimiga em seus braços, beijando-o apaixonada. Seus jogos amorosos, sua paixão que lhe queimava a carne, atormentando-o quando voltava para casa ficando longe do objeto dos seus sonhos, suspirava, olhando o céu e pensando em tanta amargura para o doce coração de Kenakê …
Kalbe foi aos poucos vencendo a tragédia e a vida parecia voltar ao normal. Sua criança nascera: uma menina e o chorinho de criança nova trouxe alegria à palhoça. Mas ele não podia esquecer aquele outro filho que não tivera o direito de nascer porque a mãe despencara do alto de uma cachoeira em meio a um mundo d’água para o abismo da morte, assassinado antes de ver a luz da vida…
A menina mais nova de Kenakê quando começou a andar apresentou fraqueza nas pernas e, como era verão, Poemka aconselhou o ar da praia. Kenakê há tempos desejava mesmo sair um pouco com a família para esquecer tudo. Arrumaram as coisas e numa manhã de sol, puseram-se a caminho do mar…
Realmente o ar marinho, os banhos de sol e mar pareciam dar força e saúde à pequenina. Os outros também estavam em ótimo estado de espírito e mais felizes. O casal mesmo, ficava horas a fio na praia, trocando confidências, palavras carinhosas e pouco a pouco, Kalbe voltava a ter a mesma relação com Kenakê que tivera antes. E Kenakê aprendera de novo a sorrir feliz, deixando ver seus lindos dentes brancos e as covinhas do rosto.
Um dia Kalbe foi à caça com Kalila, Ugatu e alguns amigos na mata próxima ao povoado. Era um dia lindo de sol, eles saíram cedo quando vinha rompendo a madrugada. Kalbe passava a noite em jogos amorosos com Kenakê; ela ria deliciada e dizia:
— O mar fez o amor voltar com toda força hein, meu Leão?
— Ah! Minha Leoazinha ardente, meu amor! Nosso amor sempre esteve presente, Leoazinha!
E nos braços um do outro se amaram, como se aquela noite não devesse acabar mais…
Os filhos crescidos, Kalila homem, sagrado príncipe, eles só tinham agora uma preocupação que era a caçulinha da família. Kalila já estava prometido para casar com uma menina da tribo, sobrinha de Mace, as duas meninas também estavam prometidas. Breve só ficariam os dois e a pequena Tajin.
Kenakê dormia ainda quando Kalbe saiu com o filho e o cunhado, devagar, sem fazer ruído, para não acordar os que dormiam. Kalila ia todo orgulhoso ao lado do pai, sentindo-se um caçador. Iam reunir-se ao grupo amigo.
Já na porta Kalbe voltou e deu um beijo carinhoso na face de Kenakê que, dormindo, sorria… ela se virou, espreguiçou, mas não acordou, tão cansada estava da noite de amor que tiveram.
Kalbe não sabia porque, mas, de repente, sentiu um aperto no coração: era uma estranha sensação de desconforto, uma impressão de que não voltaria para casa … durante todo dia, a sensação desagradável tomou conta do seu coração.
— O senhor está estranho, pai. Está sentindo alguma dor? Perguntara Kalila na hora em que pararam para almoçar.
— Nada, meu filho, não é nada! … respondera evasivamente Kalbe.
E o dia se passara sem novidades.
CAPÍTULO 15.
O NAVIO NEGREIRO
Um navio diferente singrava as águas do porto e já se encaminhava para a atracação. Dois homens bem aparentados debruçados no convés conversavam animadamente. Tinham aparência de que eram importantes. Eis o diálogo:
— Devemos trocar pelas armas trazidas o maior número de negros possível, Joaquim. Temos excelente mercado assegurado! Não podemos desprezar a sorte.
— Na verdade, Manoel, este negócio de tráfico de escravos me dá náuseas; é a última viagem que faço para terras da África. Já enriqueci e agora vou cuidar das minhas terras no Brasil!
— Tão depressa assim, homem de Deus? Pois eu quero arrebentar de ficar rico… voltarei quantas vezes forem necessárias. Das minhas terras cuidam meus filhos; p’rá que os tenho? Enquanto eu venho buscar na fonte a mão-de-obra. Assim escolho o que melhor existe.
— Lá isto é verdade, Manoel. Mas quanto a mim, estou satisfeito; vou voltar para o interior da Bahia e lá quero envelhecer tranquilo, tomando banho de rio, chupando frutas tropicais e amando minhas cativas…
Manoel riu, um riso cínico. Joaquim era famoso por suas conquistas e seus passeios na senzala. Porém era um bom senhor e seus escravos tinham fama de bem tratados.
Os dois observavam a atracação com interesse, mas sem preocupação. Depois da demora natural alguns homens da terra subiram a bordo e logo procuraram os dois homens que estavam conversando.
— De quantos homens precisam? Foi perguntando um deles que parecia ser o mais importante.
— O máximo que possam arranjar; temos armas e munições para cobrir nosso pedido.
— Deixe-me ver.
Encaminharam-se para uma cabine e cuidadosamente verificaram se a informação estava correta.
— Preferências? Perguntou o recém-chegado.
— Homens jovens e fortes para a lavoura, mulheres jovens e bonitas aqui para nosso amigo, disse Joaquim com ar de troça.
— Para o serviço da casa quero gente bem apresentada; a mulher é exigente… Explicou Manoel.
— Queremos também menores para o serviço doméstico. Há muitas encomendas neste sentido, disse secamente Joaquim.
— Vamos então pessoal, caçar os negros! Ordenou o homem, separando cuidadosamente as armas e munições.
Despediu-se e saiu.
Em terra foram reunir-se a outros homens e saíram a procurar a caça; o navio demoraria no porto o suficiente para abastecer, colocar os cativos e… zarpar!
Mace estava na praia brincando com Kenakê e os filhos. As ondas fortes faziam com que eles mergulhassem e voltassem à tona bebendo água; Kenakê sorria como antes, segurando a filha pequena em seus braços.
Depois voltavam para a areia branca para aquecer ao sol. Kenakê olhava curiosa para as pedras grandes que formavam como uma proteção para a praia. De repente, ela perguntou a Mace, colocando a mão direita em concha sobre a testa:
— Veja que lindos, Mace, eles estão brincando na pedra, pulando como cabritos e jogando água uns nos outros.
— Eles, quem, Kenakê? Naquela fundura! Disse mace espantada.
— Aquelas crianças ali! Apontou Kenakê.
— Não estou vendo criança nenhuma, respondeu Mace colocando as mãos em concha para ver melhor.
— Nem eu, mãe, disse Inaê.
— Ninguém vê? Perguntou Kenakê intrigada. Vejam que gracinhas… são lindos! E levados! Se não fosse tão longe para me ouvirem, ia gritar para terem cuidado e virem para praia! Olhem ali, que belezinhas.
Mace, olhava, olhava e nada via. De repente, bateu na testa e exclamou:
— O que você está vendo, minha irmã, são os encantados do mar.
— É mesmo, mãe! Admirou-se Suian Mali, sua filha mais velha, já agora uma linda menina de 11 anos, alta e de corpo bem contornado fazendo prever em que belo tipo de mulher ela floresceria.
— É isto então, são encantados! São danadinhos e não tem medo do mar… que vontade de dar-lhes umas boas palmadas! Como são graciosos!
Kenakê ria divertida das diabruras dos elementais marinhos. Eles pulavam e gritavam, balançando seus corpinhos pequenos, molhavam-se e voltavam para a pedra e lá ficavam ao sol, brincando… Eram muitos, enchiam as pedras com as cores das roupinhas coloridas e bizarras. Lindo, lindo, o que Kenakê via… e ela se deixava ficar extasiada, contemplando a visão lírica que só a ela era dada a graça de perceber… e os outros riam das suas descrições, emocionados com o poder que imaginavam que ela tivesse.
Quando voltaram à casa almoçaram e descansaram um pouco. Mace resolveu então ir ao porto trocar algumas coisas em mantimentos.
— Não precisa, ponderara Kenakê. Os meninos vão pescar à tarde e os homens foram caçar. O que temos em casa dá ainda para uma porção de tempo.
— Fico preocupada de que a comida acabe; também estou saudosa do meu marido. Assim posso matar as saudades me distraindo. Vamos comigo, Taja Kiriê e Taja Kiriã? Pediu Mace, olhando para os gêmeos de Kenakê que logo concordaram com o passeio da tia.
Kenakê ficou a trançar umas cestas com as filhas mais velhas; preparava já o enxoval de Suian que deveria casar-se no início do outono. Elas executavam o trabalho com muita rapidez e conversavam e riam, sentadas no chão da palhoça, em frente ao mar. Kenakê volta e meia parava e ficava olhando as ondas que iam e vinham em seu marulhar constante e exerciam uma fascinação sobre seu espírito sensível.
Mace saiu quando o sol baixara e chegou logo à rua do cais, onde se faziam as melhores trocas. Os meninos, muito arteiros, embarafustaram pela loja para ver as mercadorias novas e Mace, não os vendo, calculou que a seguiriam. Despediu-se do dono da loja e avisou que iria em outro armazém.
Saiu tranquilamente e caminhou para perto do cais. Andava com elegância e sua beleza e seu porte de rainha chamavam a atenção. Estava quase na porta do armazém. Alta, negra, bela, traços delicados, olhos cinzentos iguais aos de Kalbe, ela era a própria encarnação da deusa negra da beleza. Gingava com graça. Já era crepúsculo e ela pretendia ser rápida nas compras para voltar ainda com uma réstia de sol. Quando ia entrando no armazém, três homens fortes a pegaram com grosseria, amordaçaram-na e a puxaram para o cais. Debatia-se com quanta força tinha, mas debalde tentava gritar por socorro. Aqueles homens das vendas eram indiferentes às barbaridades do tráfico, porque também eles recebiam altas propinas para calar as ignomínias que se faziam por lá…
Quando os gêmeos estranharam a demora da tia, um dos donos do armazém respondeu cinicamente:
— Voltem para casa… ela certamente cansou de procurá-los e não quis esperar mais; é quase noite!
Eles foram encontrar Kenakê arrumando o jantar.
— Cadê sua tia? Ela perguntou.
— Ué! Ela não está aqui, mãe? Perguntaram os dois espantados.
— Aqui não: ela não saiu com vocês, meninos?
— Saiu… Mas a tia demorou nas compras, a gente foi espiar o mercado de passarinhos, explicou Taja Kiriã.
— Vai ver que ficou conversando com alguma amiga… ponderou Kenakê.
Mas Mace não voltou naquela noite nem na manhã seguinte. Kenakê saiu à tarde com os gêmeos e procurou Mace em todo canto. A moça parecia ter evaporado. Ninguém a vira depois do por do sol… comprara os gêneros, é certo, estava tudo separado. Kenakê podia levar… disseram à guisa de explicação.
Kenakê sentiu um aperto no coração; foi ao cais com os filhos grudados nela, um de cada lado, e apenas viram um navio sinistro, escuro e feio, que se afastara rumando para o outro lado do mundo… de seu bojo lhe chegava um canto desesperado, um terrível lamento, de dor, de mágoas, de saudade.
Kenakê não sabia quantos seres queridos choravam aquela música de dor.
Dois dias antes, Kalbe, Ugatu, Kalila e seus amigos caçavam nos arredores. Haviam parado para fazer uma ligeira refeição e estavam sentados numa clareira, comendo, o apetite aumentado pelo esforço da caminhada. Conversavam e riam despreocupados e felizes contando coisas engraçadas e dando gargalhadas enquanto lascavam com os dentes a carne da caça por eles próprios preparada. Tão entretidos estavam que não perceberam os homens que chegaram e pularam no meio da clareira como loucos. Kalbe levantou-se e com voz enérgica interpelou os recém chegados:
— Que significa isto? Não vêem que estamos nesta clareira?
Os homens nem sequer responderam. Brutalmente, foram amarrando um a um, como se bichos fossem; embora lutassem e berrassem, eles eram numerosos e trataram de levá-los para longe dali… os homens lutavam e gritavam desesperados. Ugatu falou:
— Ao menos respeitem nosso rei! E apontou Kalbe.
— Rei? Perguntaram os homens debochando. Ele terá o reinado que merece: E gargalharam.
Armados até os dentes, fortes, em número duas vezes maior que Kalbe e os seus companheiros, conseguiram levá-los para bordo do terrível navio negreiro.
E um doloroso pesadelo começou para Kalbe, o rei!
Kenakê não sabia que naquele canto de despedida que ela ouvia, misturada às vozes dos outros cativos, estava a voz do seu amor, do filho, dos cunhados e de muitos amigos…
Ela não sabia que aquele canto era um doloroso adeus!
CAPÍTULO 16.
KENAKÊ CHORA NOVAMENTE…
Vários dias Kenakê passou chorando, esperando. Mace não voltara; depois os dias passaram e o marido, o filho mais velho, o cunhado e os amigos que haviam ido à caça, não retornaram também.
Ela procurava, enviava pessoas para ver na mata se havia algum indício da passagem deles. Ia ao cais toda a tarde perguntar sobre Mace. E nada.
Uma tarde em que estava sentada na beira da praia rodeada dos filhos e chorando, o irmão de Ugatu, Danka, que também fora caçar, apareceu assustado, ferido, ensanguentado, escondendo-se, como se fosse um ladrão. Seus olhos espantados fitaram Kenakê como se ele nunca a tivesse visto antes.
A moça assustou-se quando Suian Mali gritou:
— Mãe, olha o Danka!
— Oh! Deuses, não é possível! Exclamou Kenakê parando de chorar e levantando-se de um salto. Correu para ele e, emocionada, perguntou:
— Cadê os outros? Kalbe, Kalila, Ugatu?
— Eles os levaram! E caiu desmaiado aos pés de Kenakê aturdida e desesperada.
Danka despertou três dias depois, ainda nervoso e fraco. E relatou a Kenakê o horror a que assistira quando os homens armados, cruéis, levaram todo o grupo, só os deuses sabem pra onde! E soluçava revoltado.
— E como você conseguiu salvar-se? Perguntou Kenakê fungando.
— Nem sei… aproveitei um momento de distração dos homens, enquanto lutavam com Kalbe, enfurecido como um leão e disparei a correr adoidado pela mata; subi numa arvore e esperei: quando não havia mais ruído nenhum, várias luas depois, desci e corri para avisar a vocês.
— Meus deuses! Para onde os teriam levado? Perguntara Kenakê desamparada. Já sei: vou até o cais procurar saber o que houve…
— Não senhora, não deve fazer isto… ponderou Danka. Vamos deixar passar um tempo e depois iremos todos juntos. Se nada encontrarmos, voltaremos para nossa tribo, de onde nunca deveríamos ter saído.
— É verdade, suspirou Kenakê e fui eu que fiz tudo para mudarmos um pouco a fim de ver se as coisas melhoravam.
— Você tentou, mãe, para o bem da gente; não se culpe agora! Os deuses sabem que você só quer nosso bem… disse Zungali.
Quando dias mais tarde saíram para investigar, um dos vendedores, velho amigo de Kalbe, com os olhos rasos d’água, explicou:
— Por favor, não digam a ninguém que eu falei, posso morrer por ter falado demais!
— Nada diremos, eu juro! Afirmou Kenakê ansiosa.
— É o tráfico de escravos! Disse o homem com relutância. Levam nossos homens em navios terríveis e os vendem como escravos numa terra chamada América; chamam a ela, Estados Unidos e Brasil… eles os pegam como bichos, amarram, quem parte naqueles navios, não volta mais… nunca mais.
— Por que, é tão longe assim? Perguntou Zungali, com um fio de voz.
— Do outro lado do mundo… suspirou o velho.
Kenakê apenas soluçava. Sua voz morrera na garganta.
— E Mace? O senhor soube da minha cunhada? Perguntou Danka emocionado.
— Ouvi dos vendedores que ficam mais perto do cais que eles a levaram quando ia entrando num armazém para trocar mantimentos… mas, pelos deuses, não falem nada! Se falarem, sou um homem morto!
— E há quanto tempo partiu o maldito navio? Insistiu Danka.
— Coisa de um mês… respondeu o homem empalidecendo, pois neste momento entravam no seu armazém dois dos homens do tráfico. Tinham ambos a maldade estampada no rosto e foram entrando e com arrogância ordenando a troca de mantimentos. Chutavam os potes, gargalhavam. Fediam a bebida.
Kenakê sentiu náusea. Despediu-se e saiu.
Naquela mesma tarde, juntaram as suas coisas e cautelosamente, voltaram para sua tribo.
E Kenakê chorou tanto que seus olhos secaram e ela desaprendeu a sorrir.
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Mace ainda estava amordaçada e amarrada. Jogada no porão do navio em meio a uma multidão de irmãos de raça, todos suados e cheirando a urina e fezes, vômitos e cuspe, a moça sentia náuseas terríveis e desconforto além da dor: doíam-lhe o corpo e a alma. Pensava no marido, no irmão, na família. Para onde estava sendo levada? E por que? Não haveria engano? Ela nunca fizera mal pra ninguém.
No segundo dia da viagem apareceram uns homens sujos e mal encarados, que chegaram perto dela com gargalhadas e dichotes debochados.
— Com que então você é princesa, hein? Cuidado, ela pode machucar-se! E riam, enquanto puxavam com brutalidade as cordas e a mordaça.
Se por um lado aliviava a dor, por outro, o nariz de Mace, agora livre das amarras, recebia em cheio aquele odor horrível da estranha mistura de excrementos.
Procurou mexer os braços dormentes pelo aperto das cordas. Mexeu as pernas e logo compreendeu apavorada que não lhe restava espaço para movimentos o porão estava apinhado de gente! Os negros haviam sido jogados como animais, uns em cima dos outros ali mesmo faziam suas necessidades fisiológicas em cima dos companheiros, numa promiscuidade total.
O navio jogava muito e Mace não se contendo mais, vomitou. Nada comera desde que fora raptada e seu estômago vazio, com o balanço forte do mar, não suportara mais. No fim da tarde os homens mal encarados trouxeram latões imensos e foram dando tigelas com um caldo quente, sem gosto nem cheiro que lembrasse algum alimento conhecido. Pedaços de carne dura boiavam nele… os negros famintos, bebiam sem sequer sentir o gosto.
— Horrível! Pensara Mace. Que saudade da comidinha gostosa de Kenakê! Uma dor aguda encheu o peito da moça.
— Que pensaria a cunhada do seu sumiço? Que estaria fazendo agora? E o marido, que pensaria quando voltasse da caçada? E os sobrinhos? Será que os gêmeos haviam sido amarrados também? Ela tinha de saber! Mas, como?
Passeava seus olhos pelo porão na busca desesperada dos sobrinhos.
— Que os deuses permitam que eles tenham escapado! Dizia para si mesma, quando não encontrava os rapazes em meio aquela sofrida multidão.
Só então Mace se deu conta de que estava muito longe de casa… e de que não voltaria mais, à sua terra e ao seu povo … baixando a cabeça, segurando-a com as mãos trêmulas, Mace chorou copiosamente toda a tragédia da sina que a acometera …
*****
Não muito longe dali, do outro lado do porão, Kalbe, Kalila, Ugatu e seus amigos acordavam agora depois de tanta pancada. Amarrados, amordaçados, haviam sido jogados também no porão, da mesma forma que no lado de Mace. Kalbe sentia uma terrível dor de cabeça, consequência certamente das pancadas que recebera, pois lutara valentemente até o fim, como um leão! Fora ele quem mais apanhara, portanto. Gemia quando acordou.
Kalila perguntou timidamente:
— Pai, para onde nos levam? Você está bem?
— Meu filho! Não podemos sumir os dois! Quem será o rei? E desmaiou…
— Pobre pai… não haverá mais reis dos Huaris …
— Não diga bobagens, menino, repreendeu o tio. Nós voltaremos logo que compreendam que nada sabemos da arte de navegação! … Iludiu-se Ugatu.
— E para onde estamos indo? Insistiu Kalila, aterrorizado.
— Não sei… e os olhos negros de Ugatu vasculharam o porão infecto onde estavam. Mas tenho certeza que quando souberem quem somos, nos mandarão de volta e este horror se acaba.
Mas ele próprio não tinha tanta certeza assim.
Era difícil saber o tempo, pois ali tudo era escuridão. Deviam, ter se passado vários dias; o navio jogava ainda e parecia que nunca mais chegaria em terra firme.
*****
Mace tinha os olhos inchados de chorar; o corpo doído da posição forçada, o coração magoado da situação crítica em que se encontrava. Os homens que chegavam para trazer os alimentos, mal cheirosos e grosseiros, nada explicavam a ninguém; debalde os negros perguntavam desesperados sobre o que iam fazer e qual o seu destino.
— Nada sabemos, respondiam; apenas nos mandam alimentar vocês.
— Nem o nome do lugar do nosso destino? Insistiam os pobres viajantes.
— Nem isto e, ponto final! Não gostamos de perguntas! Respondiam praticamente jogando a tigela de caldo ralo em cima dos pobres homens.
— Não sei o que pensar… gemia Mace cujo corpo doía todo. Acho que é um sonho mau… quando despertar, vou rir muito com Kenakê desta viagem maldita!
*****
— Para onde estamos indo, pai? Continuava perguntando Kalila, cada vez mais angustiado com a situação nova e desagradável.
— Não sei, filho. Infelizmente, nada sei.
E Kalbe em seu desespero voltava a pensar em Kenakê, nos filhos e no seu povo. Ficava horas a imaginar para onde estava indo, para que lugar tão distante que demorava tanto, para que inferno tão miserável que os fazia sofrer daquela forma. Seu corpo doía todo, a cabeça, de tanta pancada, estava sempre latejando… Kalbe e Kalila não enjoavam, mas muitos ao seu redor vomitavam e o cheiro no porão a cada hora que passava, era mais e mais insuportável.
Kalbe lembrava Kenakê quase num delírio. O que pensaria sua pobre querida? Sozinha, abandonada à própria sorte, naquela praia tão linda, de ondas fortes e areia branquinha e fina? Ele revia os banhos de mar, revia sua última noite de amor, Kenakê em seus braços, gemendo e gozando… Kalbe teve um estremecimento: isto não aconteceria jamais!
— E a tribo? Pensara. Com ele e Kalila desaparecidos o Conselho de anciãos certamente escolheria Taja Zungali, pois não poderia ficar sem um rei!
E só então Kalbe compreendeu o significado do nome que Mali dera a seu segundo filho: pequeno peixe que desponta para o poder! Ele e somente ele, seria o rei! Ela o sabia! Pobre Kalila jamais seria sagrado soberano do seu povo… não nascera para o poder mas para a escravidão.
Tudo ficou claro na mente de Kalbe; ouvira falar sobre homens brancos que buscavam negros para países longínquos e os colocavam nas lavouras, vendendo-os e com isso ganhando muito dinheiro. Esses homens tornavam-se escravos e nunca mais retornavam à pátria… Kalbe guardou consigo o horror da sua compreensão; olhou para o filho com carinho; imaginou seus sonhos de um futuro livre e feliz. Reviu em sua mente Acoeté, a menina que lhe havia sido prometida e só então, combalido e triste, Kalbe chorou.
Kalila acordou sobressaltado com os soluços do pai.
— Pai, um guerreiro Huari não chora! Repreendeu o rapaz. Ainda mais o rei! Kalila tinha muito orgulho pela realeza de sua família.
Mas Kalbe nem o ouviu; deixou que sua dor se esvaísse no pranto, deixou que sua mágoa se tornasse água, que seu coração recebesse o conforto dos deuses. Chorou tanto que seu rosto inchou. Kalila pensava que aquele choro era apenas de saudade e não desconfiou o futuro doloroso que os aguardava.
*****
Mace ouviu uns gemidos que cada vez eram mais fortes. Virou-se com dificuldade e observou uma mulher que se contorcia de dor; quis levantar para confortá-la, mas caiu pesadamente em cima de um homem jovem.
— Desculpe, falou, tentando continuar por cima dos outros em direção à mulher.
— Não importa, disse ele calmamente. Nada mais importa! E virou-se para o outro lado.
Mace com muita dificuldade foi vencendo aquela barreira humana imunda, mal cheirosa e desiludida até chegar à mulher que gemia. A pobre criatura, grávida, com uma barriga enorme, toda contraída, estava prestes a dar à luz.
Mace olhou horrorizada em torno de si… homens, mulheres, jovens e maduros, estavam espalhados pelo chão, imundos, não havia espaço sequer para a mulher parir. Tudo era sujo em torno. Não havia panos, apenas trapos. Mace teve um momento de desespero. Pensou em Mali, entretanto, e resolveu enfrentar a situação como se uma força estranha estivesse a ajudá-la… Pediu que as pessoas mais próximas fizessem um esforço para afastar-se. Acomodou a mulher que agora gritava alto. Pegou um pano imundo que alguém por ali perdera e tentou acalmar a mulher.
— Quantos filhos já teve? Imaginava que muitos pela abertura da vulva, pela idade da mulher e pela flacidez do seu abdômen.
— Dez… disse a mulher entre um grito e outro.
— Então vai ser fácil, tenha coragem! Ele está chegando! Disse Mace emocionada.
Efetivamente, a cabecinha negra surgia, apontando no canal do nascedouro. Mace instintivamente ajudou à mulher, protegendo seu períneo com cuidado. Algum tempo depois o bebê recém nascido berrava, saudando a vida: aquele bebê já nascia escravo!
Mace limpou-o com carinho e devolveu-o à mãe que o fitava sorrindo, no milagre do amor materno. Mace abraçou-a emocionada e ia voltando ao seu lugar, quando uma mulher tomando-lhe a mão beijou-a dizendo num murmúrio:
— Obrigada irmã na dor. Obrigada!
Horas mais tarde o bebê berrava e Mace viu a mãe dar-lhe o seio com infinita ternura. Lembrando-se do filhinho que perdera, Mace mais uma vez chorou desconsoladamente.
****
Kenakê quando perdeu definitivamente a esperança de rever o filho e o marido, reuniu o Conselho dos Anciãos. Zungali completara a maioridade no início do ano, já ejaculara e fora considerado homem. Ficou combinado então que ele fosse considerado príncipe herdeiro e logo depois, sagrado rei. Seu casamento foi combinado também apressadamente e Acoeté, a prometida de Kalila, linda e desabrochando para a vida na candura dos seus 11 anos foi-lhe dada em casamento, em cerimônia simples como requeria a situação.
Kenakê aproveitou e casou também as duas filhas maiores, diminuindo assim suas responsabilidades.
Luta deixava a tribo e a família para passar longas tardes confortando Kenakê. Esta entregava-se ao trabalho de maneira furiosa e incontrolável. Tentava esquecer, mas seu pobre coração partido cruelmente, continuava despedaçado.
Nem uma notícia, nem uma palavra dos seres queridos. Uma manhã de sol ela foi até ao rio conversar com Mali. Kenakê envelhecera, engordara, era outra mulher.
— Mali, você que é encantada e sabe tudo, diga, por favor, para onde levaram minhas pessoas queridas?
— Minha rainha muito amada, como dói ter que dizer as palavras que vou falar agora! Lembra-se quando Zungali nasceu?
Kenakê fitou-a sem entender. Mas respondeu chorando:
— Lembro…
— Falei que seu nome seria “aquele que desponta para o poder”, não foi?
Kenakê agora se recordava claramente.
— Foi, respondeu fungando. Um lindo nome.
— É que nós sabíamos que ele é que seria o rei! Respondeu simplesmente Mali fingindo afagar de modo simbólico os cabelos de Kenakê.
— Compreendo agora… disse a moça estremecendo. E por que não me contou antes, Mali?
— Você não teria sido feliz como foi, com esta sombra triste vagando em seu coração! Não ajuda nada sofrer com antecedência. O sofrimento tem que ser encarado no exato momento em que aparece; a pessoa encontra sempre forças para lutar com ele. Creia, foi para resguardá-la que me calei.
Kenakê chorou ainda desconsoladamente na areia; quando levantou dali, compreendera tudo: era mais sábia e mais triste.
CAPÍTULO 17.
A LONGA VIAGEM
No lado do porão em que estavam Kalbe, Kalila, Ugatu e seus amigos o mau cheiro também era insuportável; era tão escuro que eles nem sequer sabiam se era dia ou noite. A comida era cada vez pior, mas, a conselho de Kalbe eles procuravam alimentar-se bem para não enfraquecerem muito e perderem as forças caso precisassem lutar… ninguém sabia sequer para onde iam, os homens mal encarados que traziam a comida além de grosseiros, jamais davam qualquer informação. Apenas Kalbe desconfiava da real situação, mas ele, ponderando como sempre, se abstinha de qualquer comentário.
Houve um dia em que um meninote de uns 13 anos adoeceu com febre e diarréia. O cheiro fétido já entranhara tanto nos narizes que ninguém se incomodava mais. O doente delirava, gemia; sua mãe desesperada velava o tempo todo, naquele espaço exíguo, transtornada, temendo perder o filho.
Kalbe com muita dificuldade levantou-se e foi até perto dela, tentando consolá-la. O garoto assim ficou dias e dias gemendo, delirando; Kalbe colocava a mão na testa quente e ajudava à mulher que, ajoelhada, tentava limpar o filho com os poucos trapos de que ainda dispunha…
Alguns dias depois o menino piorou muito; pálido, abatido, com aspecto de cadáver, ele parecia prenunciar a morte. Kalbe chamou os homens que traziam a comida e pediu que providenciassem um lugar confortável para o garoto e a mãe dele. Algum lugar onde ao menos a pobre infeliz pudesse esticar as pernas para cuidar do seu doentinho. Eles olharam com indiferença, mas um deles respondeu:
— É… vamos falar com “seu” Joaquim… se ele der direito… negro num é gente, num tem direito não!
Kalbe espantou-se: aquele homem branco achava que os de sua raça eram bichos? Pela cor da pele? Isto não fazia sentido, que homem louco! Pensou.
Só muito mais tarde o homem mal encarado voltou com a resposta.
— “Seu” Joaquim disse que leve a muié p’ra cima, Cardoso, falou rispidamente com o outro que ficara aguardando a resposta; e o menino. Que pena! Eu sabia até a quem vender esta mão de obra! Este negrinho ia ser de grande valia em casa do barão Limeira…
Kalbe ficou revoltado com o que ouvia. Então a pena era porque não podia empregar o menino no trabalho? E a vida humana, não contava? E a dor materna? Os brancos serão todos maus assim? Perguntou-se ele. Então, que bom ser negro! Pensou com orgulho e neste momento seu coração envaideceu-se de sua pele, de sua raça, de todo o seu ser…
Afinal removeram os dois lá para cima e o próprio Joaquim foi ver a situação do doentinho. Mandou que lhe aplicassem remédios, mas talvez, por estar muito enfraquecido, dias depois, o garoto morreu… foi enrolado num lençol sujo, rasgado e jogado no mar. Sua mãe chorava baixinho sua desesperança; nem forças tinha mais para gritar, tão grande era seu sofrimento! Logo depois, um dos homens chegou para ela, dizendo:
— Aproveite bem a brisa do mar, minha velha, porque logo, logo, você vai descer e ficar junto aos outros. Onde já se viu negro no meio dos brancos?
A mulher olhou-o, olhos inchados de chorar, cheios d’água. Eles traduziam uma mágoa profunda. Ela carregou toda a sua revolta naquele olhar, mas nada disse. Depois baixou a cabeça e murmurou:
— Estou pronta para voltar para junto do meu povo! Fico feliz em estar perto deles. Já não tenho filho, não tenho mais nada.
Passando a mão de leve no rosto, secou os olhos e suspendendo a cabeça tomou o caminho da escada que a reconduziria ao porão.
— Mulherzinha orgulhosa, comentou um dos homens em português, de modo que a mulher não compreendesse.
— Respeite a dor de uma mãe, rapaz, ponderou o outro benzendo-se.
— Você é religioso? Zombou o primeiro, rindo.
— Sou e tenho mãe! Respondeu o outro.
— Pois eu, nem sou religioso, sou ateu, como não conheci mãe; foi uma filha da puta qualquer que me pariu e depois jogou meu corpo num orfanato; de onde eu fugi, aos nove anos… cresci no caís com marinheiros e prostitutas.
O homem cuspiu após uma baforada de charuto, um cuspe escuro. O outro escutava calado. Depois, com um suspiro, comentou:
— Eu, não! Tenho mãe e compreendo a dor desta mulher. E tive pai, que morreu de morte natural, dentro de casa. Tenho família; estou nesta vida para sobreviver e ajudar a criar meus irmãos menores. Não gosto de maltratar ninguém.
— É por isto que Joaquim não deixa você cuidar diretamente dos negros, você não sai do convés, exclamou o homem barbudo que fumava cachimbo. Tem o coração mole.
— Talvez seja… quando desembarcar vou procurar um trabalho mais digno. Não suporto mais os navios negreiros! O gemido desta gente, seu sofrimento, seus lamentos, não gosto deste trabalho! Quando desembarcar, vou escolher outras navegações.
— Você é um tolo camisolão, disse o barbudo. Nos navios negreiros corre dinheiro, seu besta! Os patrões pagam bem… em outras coisas você não tira os trocados que consegue aqui… por mim, é navio negreiro até morrer! Negro não é gente, rapaz, eu nem ouço os lamentos deles! Não sabem o que fazem, não se preocupe. Choram porque são uns rufiões… bem, vou levar a mulher de volta.
E o homem barbudo, gordo e pesado, afastou-se em direção à mulher que pacientemente esperava no alto da escada.
Desceram juntos, ela na frente; quando chegaram lá em baixo, o homem pegou seu braço e guiou-a pelo porão. Quando ela entrou naquele lugar infecto, seu nariz, habituado agora à brisa do mar, recebeu em cheio o mau cheiro e ela fez um ar de nojo.
— Não gosta, minha gostosa? Perguntou o homem gargalhando.
Ela fitou-o longamente e não disse nada. Baixando a cabeça entrou resoluta, passando com cuidado entre seus irmãos de raça que, apinhados, maus cheirosos, se amontoavam uns nos outros numa confusão total.
— Este é o meu povo! Pensou a mulher com orgulho. Prefiro apodrecer aqui do que ficar um só minuto no conforto, longe deles.
E a mulher sentou-se quase no mesmo lugar de onde saíra.
— Foi melhor para meu filho morrer agora! É preferível morrer do que ser escravo! Meditava ela, pois ouvira as conversas no convés sobre a futura venda deles quando chegassem ao Brasil, que, imaginava, era lugar tão longe que talvez nunca lá chegassem.
*****
No lado do porão em que ficara Mace, a criancinha que nascera também estava doente. A mãe amamentava com carinho, mas o bebê chorava sem parar. Algum tempo ficara assim. Depois os vômitos e a diarréia tomaram conta da criaturinha e uma febre alta castigava o corpo da criança e da mãe. Os dois tremiam de frio; Mace levantava-se com frequência para confortar a criaturinha e dar-lhe o alimento, porque ela nem mais tinha forças para segurar a tigela com o caldo.
Alguns dias se passaram naquela agonia. Outras pessoas caíram doentes com os mesmos sintomas; Mace ouviu os homens barbudos que vinham trazer a comida comentarem qualquer coisa como:
— Eles estão adoecendo em número muito grande; parece ser uma epidemia.
— Epidemia? Que será isso? Pensava sua cabeça cansada. Será o nome da doença?
Um dia, a mulher morreu. Mace orou para seus deuses e esperou os homens chegarem para transportarem o cadáver.
— Estamos muito ocupados agora, disse o homem com rispidez. O convés está repleto de doentes, quem morreu pode esperar.
Mace compreendeu, apavorada, que os corpos iriam ficar ali mesmo, até, sabem os deuses quando!
Já não se suportava o cheiro da decomposição, pois agora eram cinco os cadáveres, quando os dois homens chegaram acompanhados de mais uns quatro, trazendo uma maca de hospital para transportar os corpos. Foram jogados n’água como estavam porque não havia panos e, a esta altura eles estavam vestidos em trapos.
— Que belo banquete para os tubarões! Gargalhou o barbudo.
— Carne de negro doente dá indigestão! Debochara Joaquim.
Depois do cansaço, fome, mau cheiro, eles afinal sentiram que o navio diminuía a marcha; havia uma correria diferente pelo tombadilho; Mace ouviu gritarem palavras que ela não entendia.
— Que estará acontecendo? Pensou.
Eles gritavam em português e queriam dizer:
— Terra à vista! Pois acabavam de chegar ao Brasil, seu destino…
Logo depois da atracação, os homens desceram, tocando os negros como se eles fossem rebanhos de animais imundos. Eles não conseguiam enxergar depois de tantos dias na escuridão; seus membros dormentes pela posição forçada se negavam a obedecê-los e ali mesmo, travaram conhecimento com seu novo e cruel companheiro: o chicote!
Foram aos empurrões, em grupos, descendo para o caís. Logo Joaquim mandou que os levassem para seu palacete no Pelourinho, onde mandou que se lavassem e lhes deu roupas decentes de alvejado. Alimentou-os e mandou que descansassem porque iriam ao mercado. Foi exatamente neste momento, em que entravam no mercado de escravos, que Mace olhou e reconheceu Kalbe, Kalila e Ugatú. A moça deu um grito que não sabia se era de dor ou de alegria: já não estava só em seu tormento numa terra tão distante! Eles quiseram vir ao seu encontro, surpresos com seu grito, mas estavam acorrentados, presos uns aos outros… Kalbe controlando-se disse à irmã:
— Assim que pudermos, falaremos. Não sei o que está acontecendo conosco, mas logo saberemos, minha irmã. Por que você veio? E Kenakê e os outros?
— Kenakê ficou em casa… eu saí para trocar mantimentos… acho que de nossa casa só vim eu para este suplício…
Kalbe fitou a irmã com ternura; mas seu coração sentiu-se aliviado; ao menos, sua mulher e seus filhos não sofreriam a humilhação que ele estava passando!
— Ao mercado com os negros! Gritaram os homens.
Eles foram colocados lado a lado, acorrentados. Mantinham-se de cabeça baixa, esperando. O que? Eles não sabiam! Cumpriam ordens, simplesmente…
O leiloeiro chegara. Chegaram os nobres, os donos de terras, os compradores de escravos… iam-se amontoando. Olhavam os negros com ar de mofa, de superioridade. Escolhiam com dichotes e até mesmo com palavras obscenas…
— Primeiro D. Francisco! Avisara o leiloeiro. Ele é dono de navios, carece ter regalias…
Os homens chegavam, apalpavam os músculos dos homens, olhavam seus dentes, suas pernas, seus braços; nas mulheres, eles às vezes beliscavam seios e nádegas, em meio às gargalhadas dos demais… D. Francisco fora atraído pela beleza de Mace. Devasso, dado à luxúria, ele sempre escolhia as melhores negras para sua senzala. Aproximou-se dela e observou-a.
— É uma negra bonita, disse, antegozando seus prazeres. Apalpou seu corpo, os seios rijos e pequenos, passou a mão com prazer pelas nádegas bem contornadas e olhando bem nos olhos da negra decidiu:
— Esta é minha!
A moça estremeceu; não entendia aquela língua, mas detestara aquele homem que a pegava como se ela fosse um animal à espera da troca!
Ugatú e Kalbe tentaram desvencilhar-se das correntes para protegê-la, mas logo braços fortes obrigaram-nos a ficar quietos. Kalila nem falava, nem ouvia, parecia anestesiado.
— Dizem que ela é princesa! Disse o barbudo com um muxoxo.
—Será rainha na minha senzala! Concluiu D. Francisco com ar debochado.
Puxou Mace e a moça foi, olhos súplices, fitando o marido que cada vez se afastava mais. D. Francisco fez um sinal para ela e mandou que o barbudo falasse em ioruba com Mace:
— São seus amigos? São homens fortes, servem para a lavoura. E o mais jovem serve para criado de dentro.
— São meus parentes: o mais alto é rei, os outros são príncipes! Disse ela com orgulho.
— Quero os três! Sentenciou D. Francisco para ser agradável à mulher por quem estava fascinado.
E foi assim, por um milagre da sorte, que a família ficou reunida com o mesmo senhor.
Os escravos escolhidos iam ficando num canto, separados. D. Francisco comprou ainda uma dúzia deles, os mais fortes e melhores. Comprou uma garota de seus 15 anos, mais ou menos, por quem Mace se encantou: ela lhe lembrava Suian Mali…
E o leilão continuava.
— Quem dá mais? É forte, tem belos dentes. Vejam! Dou-lhe uma, dou-lhe duas.
Mace viu, horrorizada que compravam à toa, separando mãe e filhos, marido e mulher, irmão e irmã.
Compreendeu então que em toda a grande desventura, eles haviam tido sorte: ficaram com o mesmo senhor, ficaram juntos na sua dor!
CAPÍTULO 18.
O LEILÃO IGNOMINIOSO!
O leilão durou um dia inteiro; Mace esperava cansada, encostada no muro branco, as lágrimas correndo de seus olhos doces, olhar distante, triste…
Quando o último negro foi vendido e tudo terminou, os escravos separados por seu futuro senhor, foram arrebanhados e seguiram cada qual o seu destino. D. Francisco, o barão de Limeira, comprara duas dúzias de escravos. Chamou os escravos antigos e um dos feitores e começou a juntar sua gente. Mace, Ugatú, Kalbe e Kalila encontravam-se nesse meio.
Dali seguiram para uma carroça; havia várias carroças paradas perto do caís. Mace olhava o mar azul e uma saudade profunda da sua terra invadiu seu coração.
— Onde estariam agora Kenakê e os filhos? Olhando o mar do outro lado do mundo? Ela não podia deixar de admitir que era bonito, muito bonito, aquele mar azul, aqueles barcos ancorados, o forte no meio d’água…
Tudo era estranho para ela, e Mace a custo resignou-se com seu destino. O que poderia aguardá-la no futuro?
Nem um gesto, nem uma palavra trocara com o marido, o irmão, o sobrinho. Temia que fossem separados se fosse conhecido o parentesco. Ela vira senhores que riam quando os escravos choravam por serem separados da família. Um deles dissera debochando:
— Qual família, nada! Negro é igual a bicho, nem sabe quem é a puta da mãe!
Ela não entendera o português, mas um dos homens do navio traduzira para o tal que os vendera. E Mace, horrorizada, compreendera. Então todo cuidado foi pouco e não demonstrou emoção ao ver a escolha dos seus entes queridos. Felizmente o barão de Limeira arrematara os vinte e quatro primeiros, todos eles fortes e saudáveis e no meio deles estavam os seus.
Logo as carroças foram enchendo-se de negros que apinhados desconfortavelmente foram se acomodando como podiam. Iniciaram uma viagem pela cidade. Mace gostou da colônia, das mulheres de saias rodadas, indo até ao chão, das cadeirinhas seguras por escravos, dos homens brancos que passavam bem vestidos e perfumados, das crianças que brincavam, das pedrinhas que enfeitavam o chão e das casas coloridas e altas, feitas de um material que ela nunca vira antes. Nada entendia daquela língua e sentia um desespero horrível imaginando como iria viver ali sem falar uma palavra com eles e sem ser entendida por ninguém.
Os recém-chegados não falavam quase nada; cada qual mergulhara em sua tristeza, em sua saudade.
Mace às vezes olhava para Ugatú e nesse olhar ela traduzia todo seu amor… ele correspondia com ternura e uma tristeza palpável, mas não se falavam: sabiam o preço que poderiam pagar por isto! Chegaram à uma casa grande, cercada de mato e flores por todos os lados e fechada por um grande portão de ferro que a separava do barulho da cidade. Mace jamais vira coisa tão bonita!
— Vamos, disse o feitor, brandindo o chicote. Venha você! e apontava um jovem negro. Depois duas negras, quase meninas. Depois mais dois negros, estes fortes e adultos. O coração de Mace estava apreensivo; até que levaram Kalila… o rapaz perguntou bobamente:
— Pai e você?
— Anda, menino, vamos! Ordenou o feitor. E Kalila, o futuro rei dos Huaris, tomou sua primeira chicotada!
— Não quero deixar meu pai, meus tios! Berrou Kalila desesperado.
— Para onde levam meu filho? Perguntou Kalbe levantando-se com sua altura descomunal e em toda sua elegância. Por que não podemos ficar juntos?
— O senhor quer que ele fique na cidade para servir aos filhos rapazes. Criado de casa, respondeu o feitor com secura, brandindo o chicote.
— E não nos veremos mais? Perguntou Kalbe aterrorizado, sem saber que atitude tomar para defender o filho.
— Vê, os rapazes vão sempre à fazenda. O senhor é o mesmo. Até deram sorte! Pai e filho na mesma família é muita sorte, negro! Vamos! Berrou, ao ver que Kalila olhava o pai em desespero.
— Vá, meu filho; vou tentar conversar com o senhor para conseguir ficar junto de você.
Mas Kalbe não acreditava na possibilidade do que dizia; ele sabia já o quanto era triste sua situação.
Kalila desceu e o coração de Kalbe sentiu um aperto. Será que ainda veria o filho? Mace compreendeu seu pensamento e chorou silenciosamente lágrimas amargas de desespero e dor. Ao passar por ela, Kalila esfregou o nariz no seu e pediu:
— Reza, tia, p’rá gente voltar p’rá casa!
— Rezo, meu filho, você vai ver, um dia a gente volta! … mas ela também não acreditava no que dizia.
Quando Kalila desapareceu, levado pelo feitor da cidade, os portões se fecharam. Kalbe sentou-se de novo na carroça agora mais vazia, escondeu a cabeça nas mãos e chorou copiosamente sua desdita. Mace levantou-se e suplicou:
— Não chore, meu irmão, não percamos a esperança.
Levaram mais de dois dias na viagem para a fazenda. Era mato, cobra e bichos pequenos que viam pelos caminhos. Rios e lagoas, tudo lembrava a África tropical… Mace agora estava sentada junto a Kalbe e Ugatú. Juntos no espaço, na dor e na saudade.
— Esta paisagem lembra nossa terra… cismou Mace, apoiando a cabeça no ombro forte de Ugatú. A impressão que tenho é que, na beira do caminho chegaremos à nossa aldeia e Kenakê estará à nossa espera de braços abertos… e o pesadelo acabará.
Ao ouvir o nome da mulher amada, Kalbe abriu lentamente os olhos como se voltasse de um sono letárgico. Fitou a irmã com expressão dolorida:
— Meu pobre irmão, foi só um sonho! Mace explicou. Veja! Falou, tentando animá-lo. Não parece nossa terra? Estas árvores altas, estas montanhas verde-azul, estes rios cantantes… pensei por uns momentos que estávamos voltando para lá.
— Talvez, um dia… filosofou Kalbe. Quem me dera ouvir de novo a voz de Kenakê, sentir seu perfume, dormir ao seu lado, poder amá-la, tê-la em meus braços.
Mace fitou o irmão.
— Quem sabe, um dia? Disse à guisa de consolo.
— É… talvez… e Kalbe novamente fechou os olhos e sonhou…
Muito tempo se passara até chegarem à Cachoeira, cidade do interior baiano, onde o barão de Limeira tinha sua fazenda com um dos maiores engenhos de cana-de-açúcar da região. Desde o caminho eles podiam ouvir o barulho do riacho que corria cantando e se adentrava pela fazenda em rodeios graciosos. A casa grande era amarela, com muitas janelas em guilhotina e um grande portão na frente. Havia do lado direito um outro portão que dava acesso à uma escada a qual levava ao interior da casa. Logo uns moleques negrinhos e brancos misturados acorreram para ver quem chegava. Uma negra, gorda e risonha, apareceu à porta limpando as mãos no avental. Logo pôs as mãos em concha nos olhos e espiou.
— É os iscravo qui istá chegando! Berrou para dentro. Virge Nossa Senhora! Parece qui o sinhô comprou a África toda! Vem vê Merencia, vem… oi Bastiana, vem vê.
Logo uma porção de negros chegava à entrada da propriedade para receber os recém chegados. A carroça parou e o feitor desceu, ordenando, chicote na mão:
— Descendo… aqui é o ponto final. O negro intérprete explicou aos negros recém chegados que era ali que ficariam.
Desceram e a mulher que chegara primeiro fez as honras da casa.
— Vamos chegando, estamos em casa! Ela falava no mais puro nagô. Os negros passavam um a um, olhavam para ela, mas não se sentiam em casa. Maria, este o seu nome, foi mostrando os cômodos, a senzala, o riacho para o banho, o mato. Depois o feitor distribuiu o serviço. Não teriam descanso apesar da viagem extremamente estafante.
— Negro tem força, não cansa, explicara o feitor.
Mace ficara negra de dentro, isto é, arrumaria a casa e ajudaria na cozinha. Ugatú e Kalbe iriam para a lavoura.
— Eles são fortes e saudáveis, darão descendentes a gosto… comentara o feitor.
— Você acha então que o barão vai usá eles cuma reprodutô? Perguntara o negro intérprete.
— Mas claro, Zé. Você acha que o patrão não aproveitaria a raça? E soltou sua gargalhada debochada. A negra princesa já está no papo do barão; ou tu num viu como ele comeu ela com os olhos? E desandava a rir.
— Queria ver minha gente como gente, feitô… é muito triste ser cuma bicho.
— Deixa de bobagens Zé… com essa de reprodutor tu num pode reclamar… teu quinhão é largo.
— Dividido cum barão… disse Zé com um sorriso triste. Queria tê minha muiê p’rá mim, seu feitô.
— Isto só porque o barão comeu a Emetéria; que diabo tem aquela negra que te deixa tão baratinado?
— Nóis se gosta, seu feitô, respondeu Zé estremecendo. E o barão…
— Besteiras… ele só usa o que é dele… tu já viu iscravo tê amô? Tu é besta mesmo, ein Zé?
— Iscravo é gente cuma todos, feitô! Revidou Zé com um muxoxo. Bem, deixa a Emetéria p’rá lá e vamo cuidá dos novos qui chegaro…
Mace olhava tudo assombrada. A casa grande, as salas que lhe pareceram imensas, os quartos, a cozinha que era tão espaçosa com 2 fogões de lenha, armários, toda aquela parafernália de panelas de barro, caldeirões, chaleiras etc. Maria mostrava tudo com paciência explicando em sua língua nativa as coisas da casa, falando sobre os patrões. Mace ouvia embevecida. Ali ela iria viver, quem sabe, para sempre! O que ocorreria agora a eles, Olorum?
Maria depois passou ao jardim, cheio de flores perfumadas, bem cuidadas, que eram o orgulho da senhora baronesa. O jardineiro era um negrinho de seus 14 anos, magro e alto, que ia e vinha ligeirinho, plantando, arrumando, colhendo, revolvendo terra no jardim, na horta, no pomar…
Depois o curral e finalmente a senzala: Mace e Kalbe espantaram-se quando compreenderam que era ali que iriam morar doravante. Naquele espaço igual sem separação, branco e frio, amontoavam-se os negros serviçais da fazenda. Havia, entretanto roupa limpa nas esteiras e roupas alvejadas para todos os negros. O barão de Limeira era famoso por sua maneira de tratar os escravos; dava-lhes conforto e limpeza, alimentação farta, porque raciocinava que o homem bem alimentado produz mais. Não gostava de feitores malvados e os castigos para os negros não eram aplicados a toa como na maioria das fazendas. Talvez por isto, suas colheitas fossem mais fartas e suas fazendas prosperassem sempre…
Mas dona Francisquinha, sua mulher, era excessivamente ciumenta, embora fingisse não perceber as idas do marido à senzala; mas, ai da negra que enfeitiçasse o barão!
Mace, Kalbe e Ugatu olhavam a senzala, aquele jeito de viver em grupo, como se um mundo novo se abrisse diante deles. Não que sua vida tribal fosse muito diferente; mas eles tinham liberdade em sua terra… podiam ir e vir livremente, sem o pavor do chicote, sem a figura sinistra do feitor a segui-los, espreitá-los e sem o direito de falar ou pensar…
Mace ficara linda em sua veste de algodão alvejado, com o pano igual na cabeça; ela iria ser “de dentro”; ajudar na limpeza da casa e da cozinha. Ela partiu para seu primeiro dia de trabalho assustada, sem saber o que iria encontrar. Mas, vaidosa e feminina, a todo momento se olhava para ver o efeito que a roupa nova fazia em sua pele lisa e escura…
Kalbe e Ugatú partiram madrugada ainda para o mato a fim de lavrar a terra e plantar cana de açúcar. Na fazenda Pitanga existe ainda, escondidos no mato os destroços do engenho que lá havia naquele tempo…
Eles lavravam a terra e seus músculos fortes retesados, apareciam sob a pele a cada golpe da enxada, em cada giro que o corpo dava para revolver a terra que cultivavam; e as primeiras gotas de suor do rei umedeceram as terras da Bahia, em Cachoeira.
CAPÍTULO 19.
KENAKÊ AVÓ: KALBE KALILA E KALBE!
Kenakê afinal compreendera que jamais voltaria a ver Kalbe, Kalila, Mace e Ugatú; já se conformara com o inevitável. Agora dedicava-se a criar os filhos, cuidar da pequena Tunga, sempre franzina e doentinha, e receber o primeiro neto que Acoeté, mulher de Zungali, estava esperando. Desde a véspera a menina sentia contrações e Kenakê e Luta, aguardavam ao lado dela na cabana dos reis. Tudo ali trazia para Kenakê recordações doídas de Kalbe e ela ficava olhando as paredes do quarto onde seu amor passara tantos momentos importantes para eles e para a tribo… ela o revia na investidura de rei, ela o revia saindo da palhoça, esbelto e forte, cercado dos anciãos, caminhando com aquela elegância que o distinguia dos demais guerreiros da tribo; ele pensando, meditando, sozinho na palhoça, no tempo em que se apaixonara por Magáli, quando ficava noites e noites ali, procurando uma solução… ela vinha às vezes, ficar um pouquinho a seu lado, ele a abraçava e ficavam os dois, calados, lado a lado, sem dizer palavra que ela até ouvia as batidas do seu coração…
Era madrugada, ainda escuro, quando Acoeté gritou mais alto e a curandeira de partos olhou para a menina e a examinou; Acoeté gemia e suava, dando de quando em vez gritos abafados, que confrangiam o coração de Kenakê. Ela levantava-se então da esteira e dizia de modo carinhoso:
— Coragem, filha, logo nosso futuro rei estará aqui a seu lado!
Acoeté forçava um sorriso, mas logo voltava a gemer. A parteira agora trabalhava com destreza. O nenê estava chegando! Kenakê viu a pequena cabeça negra apontando no canal de parturição; e viu quando a mulher segurou-a, rodou a cabeça, puxou os ombros e com uma segurança de mestre trouxe o bebê em suas mãos todo misturado com líquido amniótico e sangue… e o choro da vida encheu a palhoça e espalhou-se por toda a aldeia.
— É um menino! Dissera a parteira.
— Nasceu o herdeiro! Dissera a anciã que transmitiria a notícia ao povo. É um menino!
Kenakê segurou o neto em seus braços e uma ternura imensa encheu seu coração. Ela própria levou-o para lavá-lo e enrolar no linho dos reis. A mãe de Acoeté acompanhava-a com mudo respeito: compreendia o que se passava no coração da rainha. Ela chorava e lembrava Kalbe. Quando voltaram com o bebê, Zungali estava ao lado da esposa; acariciava os cabelos dela e os dois cochichavam.
— Decidimos chamá-lo de Kalbe Kalila, disse simplesmente ele. É uma homenagem ao pai e ao meu irmão…
Kenakê notou que os olhos de Acoeté brilharam de modo diferente; Kenakê compreendeu que a menina ainda amava Kalila. E seu coração ficou mais triste.
— Pobrezinha! Pensou ela. Deve sofrer como eu!
Nesse mesmo ano, Suian Mali teve seu primeiro filho. Desde cedo Kenakê e Luta velavam ao lado da esteira, acompanhando o trabalho de parto da menina. Suian teria uns 13 anos de idade e apesar de ser alta e bela, seu corpo era quase de criança; ela agitava-se e gemia, mas Kenakê a acariciava infundindo-lhe forças com palavras doces e maternais. Acoeté vinha também encorajar a cunhada. Era noite fechada, quando outro menino nasceu. Kenakê tomou-o também das mãos da parteira e levou-o para dentro a fim de prepará-lo e levá-lo para a mãe. Seu coração enternecia-se vendo a vida que voltava a seu lar.
Naquela criança pequenina, havia seu sangue e o de Kalbe, havia o fruto do seu amor… pois Suian fora fruto dele numa daquelas noites em que se dera toda ao homem amado. Agora ele estava longe, muito longe. Aonde? Numa terra a que chamavam de Brasil… vivendo como escravo… como seria sua vida? Como ela poderia contar a ele que dois netinhos seus já moravam em sua palhoça? Se Kalbe estivesse ali, ela o abraçaria e diria:
— Kalbe, veja! Mais um fruto do nosso amor! E ele certamente a puxaria para o quarto real e faria com ela aquele jogo amoroso de que os dois gostavam tanto! E a madrugada encontraria Kenakê jogada em seus braços, dormindo enroscada nele, sonhando rindo, relembrando seu amor.
— A vovó está feliz, hein? Perguntou Luta, percebendo a tristeza no rosto da amiga, tentando distrair seus pensamentos. Ela bem sabia onde estava o coração de Kenakê.
Esta sacudiu a cabeça como para afugentar seus sonhos:
— Muito feliz! Dois netinhos em tão pouco tempo!Vou me dedicar a eles, Luta, você vai ver! Vamos ver crescerem estes moleques!
— Mãe, nós também queremos que nosso filho tenha o nome de Kalbe; Kalbe somente para diferenciar do filho de Zungali, explicou Suian agora calma e sorridente.
— Está bem, minha filha. É uma homenagem justa a um pai maravilhoso como vocês tiveram.
— Tiveram não! Reagiu Suian. Temos! Um dia o pai voltará vitorioso e forte. Meu pai é um rei!
— Que os deuses te ouçam! Concordou Kenakê, o coração feliz, sonhando no milagre da volta do homem amado.
Quando no ano seguinte Acoeté e Suian tiveram outro filho, Terê Mali, a segunda filha mulher de Kenakê, teve uma menina. Kenakê sentia uma afinidade estranha com a aquela criança e quanto mais ela crescia linda e forte, a avó mais se babava com ela: era a sua cópia perfeita!
Assim, com os filhos e netos, já agora cinco, a vida de Kenakê seguia calma como o riacho onde ela continuava a tomar banho e a conversar com Mali.
— Você me traz notícias de Kalbe? Pedia Kenakê angustiada.
— Vou até lá com minhas irmãs, dissera Mali que acompanhara a viagem de Kalbe, noticiando tudo à amiga.
Naquela manhã Kenakê fora até à beira do riacho esperar a amiga. Deixou-se ficar com a cabeça entre as mãos aguardando.
Mali chegou e seu canto trouxe Kenakê à realidade e ela mergulhou no rio ansiosa pelas notícias.
— Viu Kalbe e Kalila? Foi logo perguntando.
— Vi Kalbe… disse Mali. Ele mora numa cidade chamada Cachoeira, que fica num lugar chamado Bahia no país chamado Brasil. Trabalha numa fazenda de cana. Está abatido e triste; eu o vi debruçado no rio Paraguaçu, pensando em você e sonhando com a liberdade.
— Ele não sentiu sua presença? Quis saber Kenakê.
— Não me viu nem me ouviu, ficou inquieto, estava pensando em você, em seu povo, em sua aldeia.
— Oh! Meu Kalbe! E Kalila?
— Kalila não estava com ele. Pelos seus pensamentos Kalila parece que mora na cidade, mas com o mesmo dono. Ele tem vontade de fugir com o filho para cá.
— Mas… como? Será possível fugir? Perguntou Kenakê sentindo um raio de esperança em seu coração.
— Não sei… acho difícil! Como atravessaria o oceano? Ele tem que pagar muito dinheiro para vir num navio… só se viesse como marinheiro. Mas os negros daqui, lá são escravos… não sei não… não encontro saída para ele.
Mali monologava. Kenakê sonhava com a volta do marido e do filho, nem ouvia mais as palavras da amiga. De repente, ela virou-se para Mali e pediu emocionada:
— E se você os trouxesse em seus braços? Pediu.
— Impossível! Explicou Mali; Atravessar o oceano? Nenhum encantado poderá fazer isso! É longe, muito longe! São dias e noites de viagem, Kenakê! Nenhum encantado, nem todos juntos, poderiam realizar esta façanha… minha pobre querida, você pensa então que se eu pudesse não teria roubado os dois do navio para trazê-los de volta a você?
Kenakê olhou para ela e sorriu, um sorriso triste.
— Mas posso continuar sonhando, não é? Perguntou.
— Se algum dia houver alguma possibilidade, eu tentarei, dentro das minhas limitações. Olorum é quem comanda o destino dos humanos e você sabe disso! Só posso agir dentro das determinações dele… agora, devo ir… até breve.
— Obrigada Mali, volte sempre… você me traz tanta alegria…
— Voltarei sim, esteja certa! E sempre que possa irei ver os seus queridos… fique tranquila!
****
Kalila entrara na casa seguido do negro intérprete. Ficara espantado com o luxo das salas, dos móveis, das roupas dos seus senhores. O barão de Limeira era considerado um bom senhor de escravos; em suas terras não se maltratavam escravos, como nas propriedades próximas. Em sua casa havia muitos para o serviço doméstico e Kalila seria um deles.
— Você ficará encarregado dos rapazes, cuidando dos aposentos, dos pertences e da arrumação que necessitem, dissera o negro intérprete a quem logo Kalila aprendeu a chamar Felipe.
Kalila olhara a família sentada na sala: uma moça, loura e delicada, como ele jamais tinha visto alguém, usava um vestido azul, comprido e esvoaçante, enfeitado de flores e tocava um instrumento que ficava no canto da sala e de onde saía uma música como ele nunca tinha ouvido igual. Quando os escravos entraram, ela parou e virou-se para ver os recém chegados. Havia duas negras e Kalila. Felipe explicou:
— Sinhô, aqui estão os nego de dentro, cunforme o sinhô feitô falou.
O barão levantou-se, tomou a bengala e adiantou-se para eles. Felipe mandou que se ajoelhassem e tomassem a benção ao senhor. O barão chegou perto da primeira mulher e ordenou:
— Esta servirá na cozinha, a senhora não pediu, senhora baronesa?
D. Francisquinha virou-se na cadeira com ar de enfado.
— É… Benta tem reclamado uma ajudante. Esta me parece forte e ativa; precisamos de gente trabalhadeira por aqui. As mucamas são preguiçosas… e, olhando de soslaio para o marido: as mucamas, frutos de seus passeios à senzala…
O barão fez ouvido de môco. Não discutia com a esposa suas façanhas amorosas. Não tinha ela o conforto de que carecia? Roupas e jóias caríssimas e perfumes franceses? Que poderia desejar mais uma mulher?
— Esta mais jovem, será criada da sinhá-moça. Venha cá mais perto! Ordenou o barão.
Felipe traduziu a ordem e imediatamente a negra caminhou em direção à moça.
Esta a examinou da cabeça aos pés. Olhou os dentes, o corpo, cheirou-a, passou as mãos pelo rosto negro, fitou-a com bondade e disse ao pai com sua voz mansa e arrastada:
— Fico com ela, papai. Me agrada…
Felipe ensinou a escrava a fazer uma mesura e ela obedeceu meio sem graça, fazendo os gestos desajeitados.
— É sua então, Mariana, o pai falou, beijando a filha.
— Obrigada, papai querido, respondeu ela com vários beijos estalados na face do barão.
— Tenha modos de moça, Mariana; você não toma jeito mesmo; Observou D. Francisquinha, como sempre encrenqueira.
— Deixe a menina, senhora baronesa! Deixe minha flor beijar este rosto velho e enrugado! O barão falou rindo da expressão marota da filha. Agora vamos ao rapaz. Diga a ele, Felipe, que servirá aos dois rapazes: Paulo e Eduardo. Paulo, o mais velho e Eduardo, o mais jovem…
Kalila recebeu com tristeza a notícia de que seria empregado de dois rapazes. Eduardo parecia ter sua idade. Os rapazes aproximaram-se e o examinaram ligeiramente. Kalila teve a sensação de ser animal, como nas feiras da África, quando ele e o pai compravam búfalos e cabras… sentiu náuseas e um aperto no coração pela saudade dos tempos que não voltariam nunca mais…
— Obrigado, papai. Queremos o rapaz. Que nome vamos dar a ele? Perguntou Paulo.
— Vamos batizar esta leva na Santa Missão que vai ser realizada daqui a dois meses, explicou o barão.
— Escravo meu tem que ter logo nome cristão! Vou batizá-lo de Tomaz. Como se chamava na África?
Felipe fez a pergunta e ele logo respondeu:
— Taja Kalila, que significa: pequeno peixe, fruto de um grande amor… diz que era príncipe herdeiro em sua terra e seu pai era um grande rei! Tem orgulho de sua raça!…
— Um príncipe! Comentou Eduardo com voz branda. Coitado, que sorte ingrata!
— Cuidado com os comentários! Reclamou D. Francisquinha. Seu pai comprou-o num leilão legal. Ninguém tem culpa de que ele seja príncipe ou, sei lá o que…
— Está bem, mamãe. Nós o trataremos como amigo. Seja bem-vindo, Taja Kalila, disse Paulo com emoção.
— Seja bem-vindo, Tomaz, repetiu Eduardo ao mesmo tom bondoso do irmão.
Começou para Kalila uma vida nova: trabalhava com devotamento, pois encontrara dois senhores bondosos que o tratavam com brandura; foi mais fácil assim suportar a força da escravidão: perdera a pátria, a família, o amor, a liberdade! Mas não o maltratavam nem o humilhavam, e ele tinha farto o pão!
CAPÍTULO 20.
A FAZENDA PITANGA. – KALILA REVÊ KALBE
O tempo foi passando. Kalbe frequentemente saía da fazenda e ia até à praça do mercado com os outros escravos fazer as compras do senhor. Nestas ocasiões ele se punha a cismar na beira do rio Paraguaçu que corria sereno, majestoso, indiferente a dor do nosso herói. Foi numa dessas ocasiões que Mali o encontrou; Kalbe não viu Mali, mas um pressentimento, uma sensação estranha da presença apoderou-se dele e aumentou sua solidão, seu sofrimento. Foi a primeira vez que Kalbe pensou em fugir; quando voltaram para a fazenda e eles já falavam e entendiam regularmente o português, ele comentou em nagô com Mace e Ugatú que tinha planos de fuga.
— Fugir para onde, meu irmão? Perguntara Mace, arregalando os grandes olhos cinzentos.
— Voltar para casa! Respondera convicto Kalbe. Não nasci para ser escravo.
Mace e Ugatu entreolharam-se e fitaram o irmão com ternura.
— Cuidado Kalbe! Estamos acorrentados. Não vamos fazer tolices… recomendara Ugatu.
Chegara afinal o dia das Santas Missões. Na grande praça de Cachoeira erguiam-se as barracas enfeitadas de papel colorido; fogueiras davam um tom espectral com a luz tremulante das chamas: era noite de São João. Nas quermesses vendiam canjica, bolos de milho, de aipim, cuscuz de tapioca, de milho, pamonhas, amendoim cozido. Bebia-se quentão e licor de jenipapo. Os escravos passavam vendendo comidas e brindes. Havia a compra de sortes. A família do barão passeava em meio ao povo. Outros nobres da terra e as famílias mais abastadas ficavam por ali, conversando, comprando, participando dos sorteios. No dia seguinte haveria missa com batismo dos escravos novos e entre eles Kalbe, Kalila, Mace e Ugatu.
Kalila ia atrás dos senhores nas rodadas pela praça, silencioso, cabisbaixo. Volta e meia olhava as pessoas, os negros que já estavam há mais tempo na terra e falavam a língua dos brancos. Olhava as mucamas e sua carne jovem fervilhava de desejos… onde andaria Acoeté, com sua graça e seu amor?
A mucama de sinhazinha Mariana, também recém chegada da África no mesmo navio negreiro, trocava olhares promissores com ele; Kalila lembrava da noiva, tão jovem e bonita e a mucama perdia em suas comparações. Também ele amava profundamente Acoeté e sabia ser correspondido por ela… como estaria a moça em sua ausência? Certamente com o coração despedaçado como ele próprio. Mas um dia teria de casar-se e… a este pensamento os olhos de Kalila encheram-se de lágrimas. Com quem seria? Sentiu um mal estar e uma dor profunda, quase palpável, penetrou em seu peito, machucando… saber que o amor, a alma, os desejos de Acoeté seriam satisfeitos por um homem que não era ele… Eles desde que eram pequeninos se juraram amor… oh! Que vontade danada de voltar, rever sua terra, sua mãe, a família, a doce prometida! Mas Kalila sabia muito bem que este era um sonho impossível!
— Kalila, está gostando desta festa dos brancos? Perguntou uma voz conhecida.
O rapaz virou-se e percebeu a mucama que estava respeitosamente atrás de sua dona que conversava e ria com os irmãos e outros jovens amigos.
— É tudo tão diferente, Macaê, que não sei lhe dizer se gosto… só as comidas se parecem… respondeu evasivamente Kalila com receio de ser compreendido pelos senhores. Sinto muita saudade da minha terra e do meu povo.
— Lá isto a gente sente… mas aqui é tudo colorido, bonito! A sinhazinha dá gosto ver… quanta coisa bonita!
— Que nunca será sua! Comentou com sarcasmo Kalila.
— Sim, eu sei… mas em nossas aldeias não conhecíamos metade das coisas que vimos aqui… tudo tão limpo e bonito! Veja que roupas a sinhazinha usa! Nunca vi coisa igual.
— Você está que está, gostando da terra onde é escrava, mais do que da terra onde foi livre?
— Não é isto, Kalila! Ah! Você não compreende.
— Não compreendo mesmo, não senhora! Respondeu o rapaz rispidamente.
— Acho bonitas estas palhoças onde eles vendem coisas: colares, enfeites, comidas… são nossas comidas, vê? Preparadas por negros como nós.
— E você acha que os negros estão aqui para que? Para cozinhar, trabalhar, lavar roupa, acompanhar seus senhores que nem nós, para carregar peso enfim, para servir.
Macaé percebeu que o rapaz estava amargurado. Mudou a conversa:
— Amanhã, na Missão, que nome você tomará?
— O nome cristão de Tomaz. E você? Gostei do meu.
— Gostei do seu; eu vou me chamar Catarina, respondeu a moça com orgulho. Minha sinhazinha disse que é nome de rainha e de santa!
Kalila olhou para ela com piedade; eles já falavam alguma coisa de português, entendiam algumas palavras. Macaé cedo adaptara-se à cultura luso brasileira e parecia deliciar-se com tudo. Kalila, não! Ele reagia fortemente e só tinha um desejo: voltar à sua terra!
Era tarde quando os senhores resolveram voltar para a fazenda. A quermesse acabara e poucos rapazes e moças haviam ficado conversando na praça.
Na volta, Kalila e outro negro carregavam a liteira de Paulo, enquanto Eduardo era carregado por outros dois.
Mariana seguia na frente em sua liteira preferida e Macaé ia a pé, acompanhando a senhora.
A madrugada vinha surgindo e a claridade facilitava a caminhada pelo mato. A trilha era limpa; logo chegaram ao riacho Pitanga que banhava a fazenda. A travessia era difícil, pois a ponte era precária, de tábuas de madeira. Kalila procurava pisar com cuidado porque qualquer desastre, ele fora informado, significava chicotadas de acordo com o humor do feitor na hora do castigo.
Chegaram sem problemas à casa grande. Quando os escravos se recolheram, Kalila foi para a senzala e teve a grata surpresa de rever o pai acocorado num cantinho, conversando com Ugatu e Mace.
Foi um reencontro de emoção; ficaram a relembrar os Huaris, relembrando sua aldeia e sua gente. Falaram em Kenakê.
— Ela não vai viver feliz sem o pai! Afirmou Kalila e ele tinha razão.
Ficaram conversando mesmo depois da luz do lampião haver se apagado. Os quatro relembravam a terra distante, os riachos, suas crendices, suas comidas.
A madrugada vinha chegando, em azul e rosa, quando Ugatú pediu carinhosamente a Mace:
— Vamos, filhote de pantera, ver o sol nascer?
Mace fitou no marido os olhos cinzentos. Sua sensualidade aflorou e um fogo vivo perpassou nesse olhar. Respondeu mansamente:
— Vamos… e levantou-se da esteira num pulo elástico que bem lembrava as panteras de sua terra.
E no mato baiano, os dois se abraçaram, se beijaram e cultuaram seu amor… os murmúrios de delírio foram amortecidos pela doce canção do riacho que passava tranquilo, indiferente a tudo, cantando, cantando.
A família do barão passava as férias na fazenda, tanto no inverno nas férias de junho, quanto no verão. E agora era tempo de Santo Antonio, São João e São Pedro, as festas juninas. O padre de Cachoeira havia escolhido a época para as Santas Missões quando casava e batizava os escravos, em grupos. Kalbe e os seus iriam receber nomes cristãos. O barão não podia ser considerado um mau senhor; em sua família e em suas fazendas os castigos não eram tão severos quanto na maioria delas e seus filhos não praticavam os horrores da maioria dos senhores. Sua esposa, porém, não perdoava as negras bonitas que dormissem com seu marido; se fossem feias, ela nem se apercebia. Mas ai! Delas se tivessem um belo corpo, ou traços mais ou menos delicados! A ira da senhora não tinha limites.
Paulo e Eduardo eram rapazes bem educados, estavam em preparativos para estudar na Europa, viviam preocupados em namoros, festas e serenatas. Mas em meio dessa vida um tanto normal para moços de sua idade havia um grande segredo: eram ambos abolicionistas! Mas era um segredo tão bem guardado, que o barão nunca desconfiou: como é lógico, tratavam bem a seus escravos particulares, na casa de Guetu e Kalila; aquele havia sido criado com eles pois nascera na fazenda. Era o Felipe que já vimos recebendo Kalila.
Mariana, a mais nova, não era o que se poderia chamar uma moça bela; caprichosa, vivia num lar onde reinava, soberana e voluntariosa. Mas não tinha coração maldoso; suas escravas não eram maltratadas a não ser que irritassem a moça. Ainda assim, ela se limitava a repreendê-las. A recém chegada ela chamou de Catarina; ela se afeiçoava as negras e sua mãe Nair não desgrudava pé da moça, fazendo-lhe todas as vontades… ela e os irmãos adoravam a negra a quem carinhosamente chamavam mãe Nair.
Mariana tinha traços delicados, era elegante, gostava de vestir-se bem, era vaidosa, tinha cabelos louros e sedosos e olhos grandes, cor de mel. Sua voz era doce, cantava e tocava piano, acompanhando-se com desenvoltura. Bordava e pintava com capricho. Quando na fazenda, gostava de nadar no trecho do rio que chamavam limeira, com os irmãos, os primos e os vizinhos, rindo e brincando; estava sempre sorrindo ou cantando. Ela era a alegria da casa.
O barão era um homem de índole boa, um português bonachão e guloso, alegre, gostava de dar festas em suas casas, tanto da cidade, como das fazendas, uma em Cachoeira, outra no sertão. Era mão aberta, gastava a rodo para ver a família com conforto. Exigia limpeza e cuidados nas casas e tratava a esposa com gentileza, mas sem amor. Seu casamento fora por interesse, pois d. Francisquinha, filha única de um rico comerciante, dono de várias fazendas no interior da Bahia, apesar de não ter beleza de rosto e corpo, era dona de rico dote e moça prendada… E o barão ficou mais rico e poderoso com o casamento a ponto de comprar o título, que era o orgulho de sua vida! Era uma relação fria, mas respeitosa, aos modos da época… Ele guardava para si o direito de ter prazeres extraconjugais nas senzalas com as negras bonitas e no meretrício, para onde se dirigia quando estava com as carnes exigindo algo que sabia não conseguir em casa.
Nos padrões da época, o barão de Limeira, tinha uma família feliz.
O dia do início das Santas Missões amanhecera cheio de sol; na fazenda, um clima de festa enchia o ar. Uma correria de negros, grandes caldeirões com comida eram colocados no fogão de lenha e quando cozinhavam era substituídos por outros. Um cheiro gostoso de comida bem feita enchia a casa. Pernis, lombos assados, arroz, feijão com carnes defumadas e linguiça, saladas de todos os tipos para todos os paladares e doces, de fruta, de leite, de batata doce, de abóbora… bolos de milho, de fubá, tapioca, cuscuz, canjica, pamonha, etc. A mesa ia sendo posta como num encantamento. Os escravos de dentro iam e vinham trazendo coisas, arrumando e d. Francisquinha, mandando, gritando. Os convidados eram muitos e Paulo, Eduardo e Mariana riam a bom rir com as conversas dos amigos vindos da capital. Era clima de festa para todos.
Durante a missa, os escravos vinham, lado a lado, vestidos com suas túnicas brancas de algodão alvejado, ajoelhar-se na frente. E foi assim que Kalbe passou a chamar-se Mateus, Kalila, Tomaz, Mace, Benedita, Ugatú, Tertuliano e Macaé, Catarina. Naquela manhã, começou uma nova vida para eles. Daí em diante passaram a ser cristãos, a ter de acreditar em um único Deus, o deus do senhor! Mas lá bem dentro, no fundo dos seus corações, continuaram a crer em seus deuses, do fogo, do mar, etc. que na mistura das crenças originou a religião afro-brasileira, com sua magia, suas lendas, seus orixás e sua riqueza de detalhes.
Kalbe chorou de emoção por ver que até sua fé lhe era roubada.
— O que nos restará, oh! Deuses da minha Terra? Perguntava-se ele olhando fixamente o altar com tudo aquilo tão desconhecido, com aquelas figuras de homens e mulheres brancos, que nada diziam ao seu coração! Ele ouvia aquelas palavras estranhas que o vigário pronunciava e os gestos que ele até achava bonito, abrindo e fechando os braços e olhando o céu.
Quando acabaram as Missões, eles não eram mais pagãos: já batizados, eram cristãos!