CAPÍTULO 21.
TRABALHA, TRABALHA, NEGRO!
Kenakê cismava na beira do rio, embalando o pequeno filho de Suian, enquanto a moça lavava umas roupas agachada na margem do rio. De repente, um elemental pequenino pulou em frente dela; a moça assustou-se mas, depois, sorriu deliciada.
— O que você quer, criaturinha?
— Vim contar a você que vi seu marido, seu filho e sua cunhada.
— Oh! Deuses! E onde? Perguntou ela, tentando levantar-se com o neto abraçado a seu coração.
— No país a que chamam Brasil. Mali estava espiando eles lá e mandou que eu viesse logo contar o que vimos.
— E o que viram, pessoinha encantada?
— Eles estavam todos numa praça que dá para o grande rio Paraguassú. Usavam roupas limpas e hoje é dia de batizado.
— Que é batizado? Perguntou Kenakê intrigada.
— Não sei… mas eles falavam que agora iam ter nomes diferentes …
— Mudar de nome? Perguntou ela sem entender.
— Sim; teu marido agora é Mateus, teu filho é Tomaz, tua cunhada é Benedita, teu caminho é Tertuliano.
— Que nomes estranhos… por que isto?
— Não sei; estava numa touceira verde da beira do rio e ouvi quando aprendiam a chamar-se assim. Mali os observava e mandou que eu viesse até aqui e te contasse.
— Obrigada, disse Kenakê chorando. Muito obrigada.
— Ih! Mãe, chorando outra vez? Perguntou Suian, preocupada. Novamente, mãe?
A moça largou a roupa que estava lavando e veio para perto de Kenakê, procurando confortá-la.
— Saudade do pai? Perguntou, enquanto olhava para Kenakê, que soluçava com o neto agarrado a ela.
Kenakê concordou com a cabeça. E contou à filha o ocorrido; na simplicidade dos negros havia clima para acreditar na mensagem recebida por Kenakê.
— Que nomes diferentes! Comentou Suian. Que povo estranho! Agora eles perderam família, terra, fé e até o próprio nome!
— É… concordou Kenakê com um longo suspiro, enxugando os olhos com a palma da mão. E eu perdi meu amor, meu filho e meus irmãos…
Suian fitou a mãe com piedade; quanto tempo ela aguentaria carregando consigo aquela amargura? Kenakê estava triste, envelhecia e vivia constantemente chorando. Suas pequenas alegrias com os netos e a natureza não a faziam sorrir como antigamente. Kenakê era, agora, uma mulher amarga…
Suian vendo-a com aquele olhar perdido ao longe, o rosto banhando em lágrimas, a expressão de mágoa tão profunda, sentiu o coração apertado; pegando em sua mãe e carregando o filho, falou carinhosamente:
— Não chore tanto, mãe; as lágrimas que não a deixam ver o sol, se não secarem, a impedirão de ver as estrelas do céu quando a noite chegar.
Kenakê fitou Suian e um sorriso triste aflorou a seus lábios. Ver as estrelas… há quanto tempo ela não olhava o céu e meditava, olhando a beleza das estrelas e da lua? Já nem sabia mais.
*****
De sol a sol, Mateus e Tertuliano revolviam a terra retesando os músculos, abaixando e levantando os corpos reluzentes e negros. A enxada era seu instrumento de trabalho; as mãos feriam, calejavam, mas… o feitor os obrigava a prosseguir! Trabalhar, trabalhar, sempre sem descanso ou paz! À noite, na senzala, jogavam os corpos esbeltos e fortes nas esteiras e era um sono só, sem sonhos ou desejos, tal o cansaço que sentiam. Foi numa noite destas que o feitor entrou na senzala procurando Mateus e Tertuliano; vinha com a arrogância que lhe era habitual com aquele terrível chicote na cintura e a faca enfiada na bainha como a demonstrar que estava armado. Aproximou-se dos negros e falou sem rodeios:
— Ei, vocês…
Junto a eles havia um preto velho, chamado por todos carinhosamente pai Yôyô; o feitor chamou com grosseria:
— Anda, pai Yôyô! Explica a estes negros que devem amanhã bem cedo ir até à outra senzala quando o sol raiar. Sebastiana e Luzia estarão lá à espera; são negras bonitas! Explique! E sorriu, um sorriso cínico, de dentes sujos de fumo.
— A Bastiana, mia neta? Perguntou pai Yôyô estremecendo.
— A Bastiana sim, ela deve dar negros fortes para o patrão. Estes são gente boa… e sorriu sarcástico novamente.
Pai Yôyô traduziu para eles a ordem. Tertuliano pensou que não ouvira bem.
— Tenho esposa, pai Yôyô. Ela veio comigo. Vou tomar concubina, é isto?
— Não meu fio… eles usa a gente para ter nego forte e de boa raça sem tê de comprá.
— Sem escolher o par, pai Yôyô? Perguntou Kalbe espantado.
— Sem iscôia, fio… nóis é iscravo … explicou, cuspindo fumo que mascava. Mia neta, a Bastiana… e dizê qui na mia terra nóis era rei e princesa.
— Também sou rei na minha terra! Kalbe disse com orgulho. A mulher que eu cobrir terá de ser de família real!
— A Bastiana é… disse simplesmente pai Yôyô.
— Temos de nos reunir, pai Yôyô. Temos de inventar um plano de fuga; assim é que não podemos ficar! Disse Kalbe nervoso, quando o feitor saiu.
— Psiu! Fez pai Yôyô com um dedo na boca em sinal de silêncio. Paredes tem ouvidos! Este feitor num é dos pior, mas a gente nunca deve confiá…
— Vamo p’ro mato cunversá, pai Yôyô, disse Felipe, entrando entusiasmado na conversa.
— Vamo… disse pai Yôyô; será que nego veio inda tem força p’ra fugi, meu fio?
— Tem, pai Yôyô, a gente arruma tudo p’ro sinhô! Animou Felipe.
— Vamo conversá então…
E lá saíram os quatro para o silêncio do mato, onde, ladeando o riacho, procuraram o engenho, vazio aquela hora da noite … Sentaram-se e Kalbe Mateus organizou sua primeira tentativa de fuga.
*****
Na cidade, Kalila-Tomaz trabalhava o dia todo sem parar; cuidava das roupas dos patrões, ajudava-os a vestir-se, servia-os às refeições, arrumava seus quartos, guardava e catalogava cartas, recibos e documentos, enfim, era criado e secretário particular, com as limitações de sua pouca cultura.
Quando Mariana tinha tempo, ela mandava os criados sentaram na copa e ia ensinar-lhes a falar, a escrever, a ter modos de gente, como ela própria dizia. Chegava, sentava-se à cabeceira, mandava sua escrava Macaé-Catarina chamar os outros. Quando havia um bom número deles a moça, pacientemente, começava a ensinar como se comportar, como falar, como receber visitas. Sua voz meiga tornava as aulas agradáveis e os escravos sentiam-se gente, tendo alguém que se preocupava com eles… Kalila ficava de pé respeitosamente, bebendo as palavras de Mariana: ela era a primeira moça branca que ele conhecia e uma profunda simpatia começou a ligar o escravo à sua dona. Ele escutava avidamente as palavras que ela pronunciava e que o escravo tradutor traduzia.
A beleza e a elegância de Tomaz não passaram despercebidas a Mariana; seu porte esbelto sua inteligência e a tristeza dos grandes olhos cinzentos, os cabelos encarapinhados cortados rente, a boca bem delineada, os músculos atléticos, o riso largo e bonito, os dentes alvos e perfeitos, as covinhas do rosto que herdara de Kenakê, tudo fazia de Tomaz um belo homem; e o coração virgem de amor de Mariana, era terreno fértil para a emoção.
Tomaz era o primeiro a chegar nas aulas e o último a sair. Deixava-se ficar olhando Mariana, sentindo seu perfume, embevecido; para agradar à dona, ele estudava com afinco e com tanta garra, que seus progressos eram elogiados pela professora com tal entusiasmo, que o barão um dia comentou no serão:
— Negro não precisa estudar, minha filha; se me sai em escravo letrado, tenho prejuízo, perco o escravo!
— Não se preocupe, papai. Ensino o suficiente para que possam servir-nos a contento! Mas, faz pena, o Tomaz é um negro inteligente!
— Mas é negro e escravo! Não deve passar de simples criado; tem sorte de ser negro de dentro… respondeu o barão com arrogância. Na lavoura será de um valor inestimável, mas é ainda muito jovem… O pai e o tio são os melhores trabalhadores que tenho, vocês precisam ver!
— O tal que diz que é rei? Perguntou Paulo interessado.
— Sim, respondeu o barão. O tal que é rei…
— E o Tomaz é príncipe então? Perguntou Mariana divertida.
— Isto mesmo; e os tios são príncipes… temos escravos de sangue azul … pilheriou o barão.
— Coitados! Comentou Mariana. Perder a pátria, a família, o poder, o amor, tudo… Suspirou.
— Que é isto, Mariana? D. Francisquinha interveio. Escravo é selvagem, não tem sentimentos como nós!
— Será, mamãe? Mãe Nair, minha mãe preta, sempre me conta com saudades, histórias do marido e dos filhos que deixou na África quando veio para cá… existe amor e tanto em seu coração, que papai e mamãe sabem com que carinho mãe Nair nos criou dando o leite do seu próprio peito para que crescêssemos fortes e saudáveis porque a senhora, mamãe, não tinha leite para amamentar seus filhos.
D. Francisquinha mordeu os lábios com raiva. A filha tinha razão: quando Paulo nascera, ela não tivera leite. E o menino apesar de nascer forte, ia definhando, pois o leite de vaca lhe dava diarréia. Quando foram procurar uma negra para alimentá-lo, o barão encontrara Nair que acabara de parir, pois havia chegado grávida da triste viagem no navio negreiro. Seus peitos rígidos e jovens tinham leite farto e foi assim que Paulo cresceu forte e robusto. Ao dar seu leite, Nair lhes passara tanto amor, que os meninos a adoravam! Às vezes parecia, que até mais do que a mãe, a fria D. Francisquinha. Nair velara seu sono na saúde e nas doenças, embalara seus berços, amparara seus primeiros passos sempre com um sorriso bondoso, sempre com as mãos amorosas, sem cansaço ou queixas, com muito amor!
A filha que lhe nascera ao mesmo tempo que Paulo, era Salete, que acompanhava Mariana. Depois ela tivera um molecote, Felipe, escravo de dentro também. E quando sinhazinha nascera, Nair, já casada nas Santas Missões, parira duas gêmeas que hoje ajudavam na copa: Crispina e Crispiniana, duas negrinhas vaidosas e trabalhadeiras, que arrumavam a copa e colocavam a mesa.
Mariana adorava a sua mãe preta: era com ela que conversava, a ela pedia conselhos e com ela aprendera a amar aos negros, vendo neles uma raça toda amor… era o coração bondoso de Nair, doce como mel, que transbordara para o coração da moça branca, num pedido de graça para os seus.
Novamente chegava o fim do ano e a família deveria passar todo fim do ano em Cachoeira; o barão mandara que arrumassem as bagagens para partirem para a fazenda. O casarão do Pelourinho estava uma azáfama, escravos indo e vindo naqueles salões enormes, nos quartos, na copa e na cozinha. Tudo era escrupulosamente limpo e guardado. Alguns escravos ficariam para manter a ordem. No meio da tarde, Mariana escutou uma gritaria no centro do Pelourinho. Estava bordando em seu quarto, na cadeira de balanço, Catarina em pé aprendendo, Salete sentada no chão bordando também e Nair arrumando o quarto, guardando roupas e objetos pessoais de sua dona, pois nisso, ninguém mexia a não ser ela… Mariana mandou que Salete fosse espiar o que era a confusão; a escrava voltou com uma expressão de receio.
— O que é, Salete?
— Nego fujão, sinhazinha, apanhando no tronco… respondeu a moça chorando.
Catarina estremeceu, pensou em olhar, mas não falava ainda a língua da patroa. Salete pegou-a pela mão e disse:
— Venha ver, como escravo sofre! Posso levar, sinhá moça? Salete fez uma mesura graciosa com o corpo.
Mariana concordou com a cabeça. Ela própria não queria ver cena tão humilhante. Disse para Nair com um suspiro:
— Vou para os jardins do fundo, mãe Nair. Não suporto ouvir os gritos deste pobre homem! Não gosto de ver ninguém apanhando!
— Mia fia santa! Aprovou a negra e saiu do quarto já arrumado, benzendo-se. Valha-nos Deus!
Catarina chegou timidamente à janela que ficava na frente do grande prédio onde moravam e o que presenciou deixou-a apavorada: muitas pessoas, negras e brancas, dizendo palavras em voz alta que ela não entendia. Um negócio de madeira armado no meio da praça, um tronco, como lhe explicara Salete; três negros presos nos buracos daquela madeira e o feitor armado de chicote, batendo, batendo… O chicote feria e os negros estavam banhados de sangue e o cheiro do sangue enchia o ar. Os homens gritavam, a multidão apupava, era uma algazarra só… O feitor gritava bem alto que assim se castigava os negros fujões para dar exemplo. Que belo exemplo!
Catarina ficou longo tempo olhando, chorando, tremendo; aconteceria a ela o mesmo castigo se tentasse fugir? Mas, fugir para onde? Sua terra ficava longe, tão longe, como chegar até lá, se nem moedas tinha, nem a língua dos brancos ela falava? Que besteira destes negros! Será que eles não sabiam que era impossível fugir?
A surra continuou até que o último negro desmaiasse. A pequena multidão foi desfeita, os curiosos voltaram para suas casas. Era noite escura quando Nair, saindo sorrateiramente da senzala, foi até a cozinha. Preparou uma bacia com água morna, pegou uns unguentos feitos por pai João, seu marido, umas toalhas limpas e rumou acompanhada de João para o largo do Pelourinho. Iam com cuidado, apurando o ouvido para que ninguém percebesse seus passos. Qual anjo negro ela chegou perto de um dos fujões. Pai João trazia uma panela com caldo quente. Encheu um copo e foi dando aos negros semi-desmaiados. Falava aos seus ouvidos palavras de coragem e fé. Mãe Nair, com muito cuidado, limpava as feridas e passava unguento. Depois, como se os escravos fossem bebês, ela os embalou com canções de sua terra que falavam em paz e liberdade, em fé e esperança. O sol já despontava no horizonte, quando o casal piedoso recolheu-se às suas esteiras na senzala. Os escravos murmuravam agradecidos:
— Olorum te abençoe! Olorum te abençoe!
Logo cedo, Mariana chamou Nair:
— Você foi, mãe Nair? Como estão eles?
— Sofrendo, fia… pai João e eu demo cardo e tratemo as ferida deles; mas num tinha nenhum morto, não.
— Gente má, ein, mãe Nair? É, gente má! Detesto este feitor do visconde de Pedra Branca, eta, homenzinho mau!
— É memo, mia fia, o peste já gosta de mandá o chicote nos outro! Também estes abestalhados pensa qui pode fugi, mas fugi cuma e pra donde? Resmungava Nair, balançando a cabeça em sinal negativo. Só doido mesmo!
— Papai já acordou? Perguntou Mariana tentando esquecer o episódio.
— Já e sinhá tombem; nóis já vamo p’ras carroça e sinhazinha p’ra liteira. A fazenda é longe. Yayá num vai se arrumá?
— Vou; chame Salete e Catarina, mãe Nair. Pode mandar Tomaz ir botando as malas na carroça.
Tomaz chegou e cumprimentou a moça com aquele ar sério de que Mariana gostava tanto. Curvou-se e apanhou as malas com tranquilidade como se levantasse uma pena. Mariana deixou-se ficar olhando os músculos daquele homem, seus gestos felinos, sensuais e, de repente corou, quando percebeu que seu pensamento envolvia o rapaz em gesto de amor… imaginou se ele havia deixado noiva ou esposa em sua terra. Teria filhos? Quem sabe, tão jovem! Tomaz tremia ao executar a tarefa porque sentia forte a presença de sua dona e seu perfume suave. Mariana fingia não perceber a confusão do moço e continuava sonhando, buscando na África a fonte de todos os seus segredos. De repente pediu a mãe Nair que perguntasse a ele sobre sua vida antes de vir para o Brasil. Embora estranhando a pergunta, Nair obedeceu. Tomaz falava ligeiro em sua língua feita de sons. Sua voz de barítono soava agradável aos ouvidos da moça habituados a harmonia da música. E Tomaz falava e falava, entusiasmado, na aldeia, na mãe, nos irmãos, na noiva… contava como fora preso com o pai, o tio, os amigos… Nair ia pacientemente traduzindo para Mariana, que escutava emocionada o relato do rapaz. Quando Nair falou sobre a noiva, Mariana pediu:
— Pergunte como é ela, mãe Nair, como se chama, tudo!
Nair olhou para moça com ar preocupado. Mas nada comentou. Obedeceu mais uma vez e traduziu direitinho o que Tomaz falava.
— Ele diz que a noiva dele se chama Acoeté, Yayá. É negra, alta, bonita e tem olhos cinzentos também; é princesa da sua própria tribo que se chama Huaris. Ele diz que ela é muito bonita; gosta de tocar um instrumento que parece com a flauta de Yayá, feito de bambu e tem uma voz doce. Costumavam tocar e cantar juntos quando ele morava lá. Tomavam banho no rio, caçavam, pescavam e nadavam juntos. Ela é vaidosa e gostava de se enfeitar com as flores do mato e enfeites feitos na própria aldeia. Gosta de bichos e cria alguns deles. Eles estavam apaixonados e iam casar, quando ele veio para cá… ela é carinhosa, compreensiva e doce…
— Basta! Disse rispidamente Mariana.
Tomaz olhou surpreso e Nair compreendeu naquele momento, aterrorizada, que sinhazinha estava apaixonada por um negro escravo! Saberia ela o horror que aquele amor significava? Saberia ela estar apaixonada?
Nair calou-se e voltou para seus afazeres, arrumando as coisas de sinhá moça como se nada houvesse acontecido. Tomaz não entendera o que Mariana falara, apenas notou o tom da voz; e pensou que ela ficara irritada com sua estória tão tola…
Chegaram à fazenda dois dias depois já noite escura. Cansados, os senhores logo se recolheram e os escravos, após alimentá-los, foram também para a senzala. Mace recebeu Kalila com o carinho de sempre; Kalbe e Ugatú dormiam profundamente: cansados do trabalho do campo, deveriam no dia seguinte cobrir mais duas escravas para reprodução. Quando Mace contou isto a Kalila, ele ficou revoltado:
— Como se a gente fosse bicho, tia Mace?
— Isto mesmo, meu filho, como se a gente fosse bicho!
— Pobre pai, pobre tio! Que vida estranha estamos levando nessa terra!
Sebastiana era uma mulher alta, bonita e sensual; filha de reis, tinha o mesmo orgulho de Kalbe, da sua raça, da sua beleza. Seu corpo bem dotado, os seios grandes e rijos, sua ânsia de sexo até exagerada, haviam deixado Kalbe tonto e envolvido. Eles haviam se encontrado várias vezes depois daquele encontro determinado pelo patrão. Ambos estavam envolvidos; mas Kalbe falava a ela sobre Kenakê e o grande amor que lhe votava. Falava da aldeia, dos filhos. Sebastiana ouvia calada, mas com uma pontinha de ciúme como uma dor de faca afiada lhe penetrando o coração…
Ela era neta de pai Yoyô e da negra Maria Conga, aquela que cuidava da casa da fazenda e vimos recebendo escravos. O senhor a usava como mulher e como reprodutora desde os 15 anos quando chegavam escravos novos e fortes.
Sebastiana, Tiana ou Bastiana como a chamavam na casa não conhecia o amor; conhecia sim, a sensualidade desenfreada do barão, do feitor e dos negros que usavam seu corpo. Com Kalbe ela sentira que seria diferente: ele a tratava com carinho, esfregava seu nariz, a beijava, prolongava os jogos amorosos. Certa feita viu seus olhos cheios d’água, perguntou com sua voz harmoniosa:
— Por que você está chorando, Tiana?
— De emoção; nunca recebi antes carinho de nenhum dos homens que usaram meu corpo como mulher… respondeu ela em nagô. E soluçou, abraçada ao ombro forte de Kalbe.
Talvez por isso, ela compreendeu que sua vida estava ligada aquele homem para toda eternidade. Jamais sentira um prazer tão grande, jamais o ato do amor fora tão apaixonante: um amor maravilhoso, nascido do sofrimento, tomou conta do seu coração virgem; e aquela garota de vinte anos ficou perdida pelos encantos de Kalbe, o rei!
Naquela manhã de verão, Kalbe, Ugatú e outros mais, foram levados para a outra senzala a fim de enxertar as escravas mais férteis. Kalbe repetia sua ternura em Emerenciana; ele era terno por temperamento e a negra ficou apaixonada também.
Mas seu romance com Tiana continuava; Kalbe sabia que jamais amaria a alguém como amava Kenakê, mas aquela mulher sensual e cheirosa, que conversava várias horas com ele em sua língua nativa, enchia suas horas de tédio e transformava seu sofrimento em algo mais suportável.
Ugatú fazia o ato da reprodução sem rodeios; cumpria ordens. Temia que alguma escrava se apaixonasse por ele e tivesse de enfrentar problemas com Mace, embora soubesse que a mulher de bom grado aceitava suas concubinas na África. Ele não se dava a nenhuma talvez por não querer fazer elos.
Para diminuir a saudade e a dor, só um sentimento grande e delicado torna as criaturas felizes: o Amor!
Foi, pois, com os corações apaixonados que Kalbe e Kalila aprenderam a falar a língua dos brancos e a respeitá-los. Mas no coração de Kalbe, havia sempre vontade de fugir, de voltar para sua terra, de voltar a ser livre… E sempre que podia lembrava ao filho:
— Nunca se esqueça que você é um futuro rei! Um dia deverá voltar e assumir seu lugar!
— Nós voltaremos juntos pai, respondia Kalila, não com tanta certeza.
Kalila nunca comentou com ninguém sobre o que sentia pela sinhazinha. Ele sabia a loucura que isto era: era como desejar a lua por companheira.
CAPÍTULO 22.
O SACRIFÍCIO DE MACE.
Naquele verão o calor foi insuportável; a família ia constantemente tomar banho no riacho, passear no canavial, colher frutas no pomar. A baronesa passava quase toda manhã no jardim podando plantas, colhendo flores, enfeitando a casa. O negrinho jardineiro se via doido quando ela estava na fazenda. Tomava a toda hora cascudo ou puxão de orelha. Qualquer coisa errada e zás! A baronesa baixava o sarrafo!
Maria Conga estava feliz com o trabalho de Mace, Bené como todos já a chamavam; ela cozinhava gostoso, era muito zelosa na limpeza da copa e da cozinha. Aprendia depressa o que Maria lhe ensinava e dava gosto ver o almoço que ela preparava. Mace fora deitar-se tarde, cansada, arrumando a cozinha. Já estava quase dormindo, quando o feitor entrou na senzala e, com seus modos grosseiros disse abruptamente batendo o pé nela:
— Ei, você Benedita!
— Eu? Perguntou a moça quando Felipe traduziu as palavras do feitor.
— Você, sim; o patrão quer você amanhã o dia inteiro! E riu debochado.
— Para que? Perguntou Benedita pousando em Felipe seus olhos doces.
Felipe traduziu a pergunta.
— Ora essa! Que pergunta boba… para que havia o patrão de te querer, oh! Deuses… e gargalhou grosseiramente.
Felipe traduzia procurando não ferir os sentimentos da moça.
— Não tem jeito de eu não ir? Tentou proteger-se.
— Se não for, vai p’ro tronco apanhar até querer.
Benedita meditou uns segundos. Compreendeu que não era mais livre, era propriedade do patrão, comprada e sacramentada. Não queria ir para o tronco; já vira irmãos seus de raça urrando de dor no tronco, apanhando por qualquer falta que cometessem… ela iria sim, explicaria a Mateus e a Tertuliano e certamente eles se conformariam também.
— Estarei pronta logo cedo, respondeu secamente.
— Tome banho, fique bem limpa. O patrão não gosta de negras fedorentas, explicou ele com uma cara debochada. Lave esta cabeça com bastante sabão. Considere-se privilegiada, você foi a escolhida!
Benedita baixou a cabeça e virou-se para o lado da parede mergulhando em doces recordações do passado, quando era livre, caminhava à toa pela floresta, tomava seus banhos de Cachoeira, ia aonde queria… relembrou sua palhoça pequena mas aconchegante, seu filhinho perdido, sua família, Kenakê, os sobrinhos e soluçou… por muito tempo, tempo em que a dor da saudade, tomasse conta de seu peito numa enxurrada de mágoa.
Amanhecia já quando, finalmente exausta, ela adormeceu e sonhou… que estava de volta à sua terra e a seu povo.
Logo cedo levantou-se e começou a preparar-se. Havia conversado ligeiramente com o marido e o irmão; eles ficaram revoltados, mas nada podiam fazer. Tertuliano foi para o campo com o coração partido; Mateus foi conversando, tentando consolá-lo, mas também ele levava uma raiva incontida no coração!
O feitor veio buscá-la assim que todos os escravos seguiram para a roça e para a casa grande. Benedita parecia estar caminhando para o suplício; desde os 11 anos pertencera a Ugatú a quem amava ternamente. Jamais outro homem vira seu corpo ou a possuíra. Agora ela seguia para entregar-se aquele velho gordo, cheio de banhas, devasso e debochado. Uma náusea apertou-lhe o estômago e Benedita sentiu uma vontade louca de chorar.
Caminharam pelo mato um bom pedaço de tempo; ela ia distraída, vendo as flores do campo e por um momento viu-se de novo na África, como se caminhasse para sua aldeia… atravessaram o riacho, passaram pela cachoeira do japonês, que saltava indiferente, branca e límpida, cantando sua canção de força e vida… de dentro do mato surgiu uma pequena cabana, em cuja porta, estava o barão.
Benedita estremeceu e voltou à realidade: ali seria o lugar do seu sacrifício.
*****
Tomaz passava o dia trabalhando para os senhores. Quando eles jogavam ou conversavam na sala, ele se punha respeitosamente em pé atrás deles, espalhando moscas, atento a qualquer ordem ou mandado. Mas seus olhos e seu coração acompanhavam todos os gestos de sinhá moça que graciosa e gentil, ria e conversava com as amigas, mas sempre procurava o escravo com o olhar…
— Bonito este escravo, hein, Mariana? Perguntara um dia à queima roupa, Joaninha, uma de suas primas.
— Qual? Fingira-se desentendida.
— Ora, o dos meninos.
— Felipe, é sim um belo rapaz, continuou disfarçando embora seu coração estivesse em ritmo de emoção.
— Ora, Felipe eu já conheço há muito tempo! Falo no recém chegado, o Tomaz.
— Ah! É… é um rapaz bonito, disse com indiferença. Você precisa ver o pai dele. E a tia, hein, Paulo?
— É uma mulher bonita danada! Disse Paulo com admiração. Mas você sabe minha irmã que não sou chegado a escravas… eu, hein? E olhou sugestivamente para a prima por quem andava enfeitiçado.
— Não estou falando por mal, apenas solicitei sua opinião masculina! E a moça riu satisfeita por ter conseguido desviar a atenção de Tomaz.
— Parece que são negros de raça diferente; são sangue real, o pai dele é rei… explicou Eduardo que também vivia interessado na prima e estava preocupado com a apreciação dela a respeito da beleza do escravo.
— Exijo mais respeito, senhor meu primo, respondeu Joaninha fingindo-se agastada. Ninguém é proibido de admirar o belo.
Mariana compreendeu, apavorada, que seu coração já conhecia o amor: sentira ciúmes da prima e aquela sensação era tão desconfortante quanto palpável… seu coração não era mais virgem de emoções: amava e amava ternamente a um escravo! Estremeceu de terror ao assumir esta realidade!
Tomaz também já compreendera que estava apaixonado; ele amara Acoeté desde criança e preparara para ela seu coração, pois deveriam casar-se à época em que foi preso e trazido no navio negreiro. Sua palhoça já estava pronta e ele ficava a imaginar tudo o que fariam quando estivessem juntos. Acoeté estava na palhoça das noivas sendo ensinada a cuidar da casa e a ser mulher. Ela antevia as felicidades que os dois teriam juntos. Que estaria ela fazendo agora? Teria seu pai casado a menina com alguém, logo em seguida? De repente, Tomaz lembrou-se que Acoeté, sendo princesa, deveria casar-se com o futuro rei; e este era… oh! Era Zungali, seu irmão! Uma angústia invadiu seu ser. Como não imaginara logo! Claro: os Huaris não poderiam ficar sem um governante! Zungali era de fato e de direito, em sua ausência, o herdeiro do trono; e fatalmente Acoeté estaria agora nos braços do cunhado! Tentou afastar a idéia, mas de novo via a menina rindo deliciada, nos braços de seu irmão!
Ele relembrava agora que Zungali sempre achara Acoeté desejável, até que Kalbe resolvera prepará-la para esposa dele, Kalila. Zungali ficara triste, mas logo esquecera o fato e passara a desejar outras meninas com quem brincava e namorava; volúvel, ele logo esqueceu Acoeté, que morria de amores por Kalila… Naquela noite na senzala, ele perguntou a Mateus:
— Pai, quem ficou no teu lugar de rei?
— Filho, o Conselho de anciãos deve ter-se reunido e como desaparecemos eu e você, Zungali deve ter sido considerado príncipe herdeiro e logo depois, rei.
— E deve ter se casado com Acoeté? Perguntou ele, desejando que o pai respondesse outra coisa.
Kalbe ficou pensativo. Compreendera o que o filho estava querendo saber. Procurou responder sem ferir seus sentimentos:
— Pela tradição, sim; mas pode ser que ele tenha preferido outra virgem, na esperança de que você volte. Afinal, eles não sabem do nosso paradeiro.
Uma esperança surgiu no coração de Kalila.
— É… pode ser… mas se eles casaram, hoje já devem ter herdeiros…
— Não se martirize assim, meu filho! Você vai voltar um dia e assumir sua condição de rei! Os Huaris precisam de seu rei de volta! Você será sagrado rei! Lembre-se disto: nós voltaremos! E Mateus tinha pranto na voz.
— Mas quando, pai? Perguntou Tomaz emocionado.
— Quando, não sei; mas, um dia voltaremos!
A certeza de Mateus deixara Tomaz perturbado.
— Mas quando voltarmos, Acoeté será uma velha, cheia de filhos, amargurada porque perdeu seu amor.
Domingo ninguém trabalhava na lavoura; o patrão guardava fielmente o dia santificado. Ia à missa em Cachoeira com a família e os escravos, estes vestidos com roupas limpas, todos, respeitosamente através dos senhores.
Os barões iam na frente, Mariana atrás com os irmãos e primos; Tomaz olhava disfarçadamente para ela, não perdendo nenhum de seus movimentos; sinhazinha usava nesta manhã de domingo um vestido cor de rosa, com babados românticos, em bico inglês, saia rodada, ampla, que lhe cobria os delicados pés. Andava com elegância e desenvoltura. Conversava animadamente com Joaninha, ria e sussurrava, quando passavam por algum rapaz que interessava à prima. Mariana fingia bem seu interesse pela vida, pelos rapazes, pelo mundo. Ninguém, mas ninguém, mesmo, poderia desconfiar daquela louca paixão!
E Tomaz sofria em silêncio, observando a moça a comentar com a prima sobre este ou aquele rapaz que passava pela praça ou pelas ruas de Cachoeira, cumprimentando o barão e sua família.
A missa de domingo era de festa e demorava muito; com aquele calor louco que fazia no recôncavo, os escravos frequentemente eram mandados abanar os senhores, para que o calor ficasse um pouco mais suportável.
E Tomaz, enquanto abanava Paulo, olhava discretamente a sinhá moça que ajoelhada, o rosto envolto numa mantilha de renda espanhola branca, balbuciava suas preces movendo delicadamente os lábios, olhos fitos na virgem, como se conversasse com ela. Pedia que esta a fizesse esquecer aquela loucura, aquele amor doido.
— Que pedirá ela a seus deuses com tanta fé? Pensava Tomaz.
— Ajuda-me Nossa Senhora, minha doce mãezinha, a esquecer esta paixão tão louca quanto minha cabeça! E rezava nervosa a Salve Rainha até a palavra desterro acreditando que assim seu coração se libertaria daquele amor…
Após a Missa iam todos até a beira do rio passear. Era uma praça grande e as famílias tradicionais, os ricos fazendeiros, usineiros, criadores de gado, ali se encontravam. Foi numa destas manhãs de domingo, que o barão e o visconde de Pedra Branca, resolveram apalavrar o casamento de Mariana com Osmar, o filho mais velho do visconde. O rapaz era bem apessoado, dono de futuro brilhante, herdeiro das terras e do gado do visconde. Visto ser do gosto de ambas as famílias combinaram para logo mais à noite uma visita formal do visconde e sua família à fazenda Pitanga. D. Francisquinha ouvia feliz, pois já imaginava a filha casada com rapaz tão fino, estudado na Europa.
Enquanto os brancos decidiam o futuro dos filhos, os escravos passeavam pela beira do rio. O cais era alto e o Paraguassú bem largo naquela altura, separava as duas cidades: Cachoeira e São Félix. Mateus comentava com Tertuliano:
— Acho que é por aqui, por este rio, que devemos tentar nossa fuga, irmão! Disse com entusiasmo.
— Mas como? Perguntou o outro sem esperança. No mundo dos brancos não há troca como no nosso; tudo é com dinheiro e isto nós não temos!
— Como, não sei, mas não paro de pensar nisto um só dia! Acho que para sermos livres novamente, teremos de ter muita coragem e sangue frio… por aqui é o caminho.
Mateus olhava o rio largo e profundo meditando.
Tertuliano insistiu preocupado:
— Fugir nadando, meu irmão?
— Não sei; ainda não sei! Respondeu Mateus pensativamente. Só sei que escravos não seremos para sempre! Disse, erguendo a cabeça deixando perceber o orgulho que tinha da sua raça. E ao fugir, levaremos do cativeiro todos os nossos irmãos…
— Como, meu irmão? Tudo é tão protegido! Cheio de serras, cercado de rios profundos… não temos moedas e no mundo dos brancos nada se faz sem as malditas moedas.
— Calma, Tertuliano. Olorum mesmo nos mostrará o caminho!
— Confio em ti, Mateus! Cuidado! Aí vem Felipe e ele é escravo de dentro, não devemos confiar!
Efetivamente Felipe chegou juntando-se aos dois. Como se houvesse escutado a conversa, comentou baixinho, a voz tranquila, querendo ocultar sua emoção:
— Continue conversando como se num houvesse nada demais. Nós queremo avisar a ocês qui os negos istá tencionando fugi e formá um quilombo, lá p’ra riba dos monte, num lugá descampado, cheio de mato, muito depois da cachoeira do japonês que os brancos não disbravou…
Mateus e Tertuliano olharam o negro surpresos, fingindo-se desentendidos. Mateus recuperou-se da surpresa mais depressa e perguntou inocentemente:
— Fugi? Falava em português como Felipe. Fugi p’ra donde? E com a mão larga e comprida apontava o rio e as serras ao fundo.
— Lá, dispois daquela serra, tem o lugá qui istou falando… manhã, depois da janta, nóis vai reuni na senzala os nego tudo, p’ra caprichá na fuga! Num pode falhá, senão dá tronco! Disse o negro com determinação.
— Felipe, tu acha qui nóis pode confiá em tudinho?
— Craro, tudo é nego iscolhido!
— Psiu! Disse Tertuliano. Evem o feitô!
******
Tomaz só tinha olhos para Mariana e esta por mais que fizesse, não conseguia deixar de olhar para o rapaz, ver o que fazia, com quem conversava. Procurava com cuidado disfarçar seus sentimentos. Sabia o que aconteceria a ambos se uma coisa daquelas caísse no conhecimento dos pais. Mesmo que ela jurasse ser ele inocente.
CAPÍTULO 23.
A TENTATIVA DE FUGA
Kenakê estava na beira do rio com as filhas, noras e netos. Era uma manhã de sol, quente e alegre. Ela estava sentada na pedra grande enquanto observava os netos correndo e brincando na areia. Seu pensamento voltava-se para Kalbe, relembrando seu corpo, seu porte esbelto, seu sorriso, as horas de amor que haviam passado naqueles lugares de tão suaves e queridas recordações para ambos.
Tão absorta estava que nem se apercebeu que Mali chegara e ficara observando a amiga com ar preocupado. Kenakê assustou-se quando se virou e fitou Mali.
— Notícias de Kalbe, minha irmã? Perguntou ela com naturalidade, como se falasse com uma amiga comum.
— Sim, ele está bem… ouvi ontem uma combinação de fuga com Ugatú; estavam ambos na margem do rio … qualquer coisa nova, volto a avisar …
— Espere, por favor, não se vá! Pediu Kenakê. Estavam sozinhos os dois? Como está ele? Está pálido, magro? Mace não estava com eles? E meu filho?
— Ele está mais magro e mais velho. Conversava com Ugatu debruçando na beira do rio. Planejavam os dois uma fuga. Não vi Mace nem Kalila. Vim correndo contar a você… Olorum permita que tudo dê certo!
— E vai dar, Mali! Conheço Kalbe; não faz nada sem antes ter certeza das coisas… ele sabe o que faz! Completou a moça com orgulho.
E uma nova esperança penetrou no coração de Kenakê e o aqueceu durante muito tempo
Tomaz estremecia cada vez que ouvia a voz de Mariana: seu amor pela sinhazinha era cada vez mais forte, parecia uma doença da qual ele não conseguia a cura facilmente. Quando abria os olhos madrugada ainda na senzala, seu primeiro pensamento vinha claro e forte: Mariana… seu riso, sua voz doce, seu andar gracioso, seus olhos castanhos, seus cabelos sedosos.
Ele passava a mão calejada pela testa e pedia humildemente a Olorum e ao Deus dos brancos que afastasse aquele pensamento terrível de sua cabeça; às vezes, tomava a cabeça entre as mãos e ficava algum tempo sonhando… via Mariana vestida de noiva, linda, pelo braço do pai, chegando à matriz para casar com ele que a esperava feliz, no altar-mór.
Tomaz novamente passava a mão pela testa escaldante e suspirava.
— Tenho que tomar cuidado! Pensava. Este amor é minha perdição!
Mariana, silenciosamente, também sofria. Ela sabia que amava aquele negro escravo; e sabia também qual seria o castigo para os dois: o convento para ela, sem nunca ver o mundo cá fora e o tronco para ele até morrer capado, no chicote do feitor… a este pensamento, ela tinha coragem mais e mais de disfarçar e até recalcar bem no fundo do seu coração aquele sonho impossível.
Naquela manhã D. Francisquinha amanhecera sorridente e bem humorada. Pediu a Mariana que vestisse roupa mais bonita e a moça estranhou o pedido.
— Vamos às compras, mamãe?
— Não, respondeu esta com ar de mistério.
— A missa das dez, então? Insistiu a moça intrigada.
— Não; vamos receber visitas importantes para nós… disse evasivamente a baronesa.
— Visitas? Perguntou Mariana. E eu tenho de ficar na sala? Perguntou a moça com ar de enfado.
— É bom… pode ser útil para você.
— Útil? Uma visita útil? Não compreendo… disse a moça, pondo de lado o bordado que a distraía. Está bem, mamãe.
Mariana foi para seu quarto e arrumou-se o melhor que pôde, mais para agradar à mãe do que a si própria.
Estava sentada algum tempo ao piano cantando umas canções portuguesas, quando percebeu que as visitas haviam chegado. Ouviu vozes de homem e uma voz de mulher esganiçada e desagradável que perguntava pela sinhazinha. Percebeu que se aproximavam da sala e esperou fingindo nada haver percebido. Notou que ficaram algum tempo ouvindo-a cantar. Depois de umas canções, aplaudiram. Voltou-se fingindo surpresa.
— Oh! Tenho platéia! E levantou-se do piano com desenvoltura indo cumprimentar os presentes.
— Como canta bem, baronesa! Disse com sincera admiração o visconde.
— E toca divinamente! Completou o filho com uma mesura educada.
— Vamos sentar um pouco, senhores, disse a baronesa toda sorrisos.
Mariana sentiu no ar algo estranho, mas não sabia definir este sentimento. Sentaram-se todos e a conversa generalizou-se sobre fazendas, os engenhos; eram vizinhos do visconde tanto na cidade, no Pelourinho, como em Cachoeira, cujas fazendas confinavam a cerca. O filho do visconde crescera com os filhos do barão, mas Mariana não o simpatizava visto que Osmário costumava maltratar escravos e isto desagradava a seu coração bondoso. Mariana vira-o várias vezes ordenando ao feitor que chicoteasse os negros e rindo dos gemidos dos cativos.
Foi pois, com surpresa e uma pontada aguda no coração, que ouviu o pai responder ao barão a pergunta deste se ela, Mariana estava a par da razão da visita:
— Não, senhor visconde, mas minha filha ficará muito feliz quando souber que hoje oferecemos sua mão ao visconde de Pedra Branca, Sr. Osmário, seu filho.
Empalidecendo, a moça viu tudo rodando à sua frente como se estivesse navegando em alto mar, mas tentou reagir e perguntou debilmente ao pai:
— O que disse, meu pai?
— O que acaba de ouvir, sinhá moça. Vamos comemorar hoje a promessa de casamento entre você e Osmário, o visconde de Pedra Branca!
Agora Mariana sabia que não ouvira mal. Olhou para Tomaz que estava humildemente em pé atrás de Eduardo. Notou que o rapaz tinha uma expressão triste, mas nenhum músculo de seu rosto parecia sofrer o impacto da emoção que a notícia lhe causava. Mas nos seus olhos… ah! Nos seus olhos havia tanto amor e desespero que Mariana engolfou-se neles sentindo aumentar a tontura, deixou-se rodar, rodar e… desmaiou!
— Acudam! Gritou a baronesa nervosa. Sinhá moça desmaiou de emoção!
— A senhora baronesa deveria ter conversado com ela! Recriminou o barão. Esta é uma tarefa das mães!
Tomaz, rápido como o raio, saiu do seu lugar e como um semideus, pleno de força e de amor, carregou sinhazinha no colo como se ela fosse uma pluma. Nem pediu licença aos senhores. Levou-a para a alcova e a depositou com todo o carinho na cama larga forrada com colcha de cetim. Nem uma palavra fora dita, mas seu coração transbordava de amor e ternura. Depois, como todos corriam para ajudar a ama, ele retirou-se não sem antes fitá-la com o calor daqueles olhos grandes e tristes. Tomaz sofria terrivelmente a perda de seu amor…
A baronesa chamou mãe Nair, esfregaram álcool nos pulsos da moça; lentamente, após alguns minutos, Mariana abriu os olhos e Nair observou que lágrimas indiscretas escapavam deles. Com voz fraca, Mariana pediu:
— Quero ficar com mãe Nair… sozinha…
Mariana era muito ligada à sua mãe preta. Foi, pois, com naturalidade que as deixaram a sós. A moça fez um sinal para que Nair chegasse mais perto. E sussurrou em seu ouvido:
— Não quero casar com Osmário, mãe Nair; ele maltrata os escravos, não tem bom coração!
— Mia fia, mas sinhô barão quer! Vão juntá as fortuna! Ponderou Nair, alisando os cabelos de sinhá moça
— Mãe Nair guarda um segredo? Perguntou a moça angustiada.
— Claro! Disse a negra cruzando e beijando os dedos num gesto de juramento.
— Eu… eu gosto… de… outro moço… disse a moça com ar sonhador.
— Intão, vamo falá cum o barão, minina! Ralhou a mãe preta. Ele gosta muito de ocê e num vai fazê ocê sofrê, não!
— Não posso, mãe Nair… mãe Nair sabe de quem eu gosto? Ela perguntou chorando.
— Não, mia fia num me disse…
— Do Tomaz, escravo de meus irmãos! E Mariana soluçou baixinho abraçada a mãe preta.
Algum tempo assim ficaram. Depois Nair fitou a moça arregalou os olhos apavorada. Imaginou que ela estivesse delirando. Colocou a mão direita espalmada em sua testa alva. Não tinha febre. Mariana olhava para ela com um sorriso triste nos lábios. Perguntou chorando:
— Não posso dizer isto a meu pai, não é mãe Nair?
— Craro qui não, minina! Tu endoideceu! Teu pai te manda p’ro convento e… cruz credo! Manda capá e matá o Tomaz no tronco! Virge Maria! A negra benzia-se apavorada.
— Eu sei, mãe Nair! Mas não posso casar com outro homem… gosto dele..
— Mia fia, tu que um conseio da preta veia?
— Quero, mãe. Já rezei, pedi a Deus, rezei a Salve Rainha até o desterrai… mas este amor doido não me sai do coração! Não sei mais o que fazer!
— Aceite este noivado! Vamo ganhá tempo… enquanto isto a gente demora na feitura do inxová… o barão é orgulhoso, vai quere um inxová de princesa para sinhazinha. E nóis demora p’ra bordá tanto linho!
Nair falava e alisava os cabelos sedosos de Mariana. Mais calma agora, ela perguntou:
— E quando marcarem o casamento?
— Aí vamo pensá no qui fazê… Olorum nos ajuda, sinhazinha, Olorum ajuda!
Algum tempo depois, Mariana voltou à sala. Quando sua mãe foi buscá-la, ela perguntou timidamente:
— Eu posso desistir deste casamento?
— Não pode mais; teu pai apalavrou-se com o visconde, creia, Mariana, é o melhor para ti! São nossos vizinhos e são muito mais ricos que nós; teu futuro estará garantido. Osmário é jovem e bem apessoado. Muitas moças adorariam estar em teu lugar.
— Mas e… o amor… não conta? Insistiu Mariana, esperando compreensão de uma mulher que não conhecera o amor.
— Amor… o amor virá depois… se vier… e não importa, o que importa é tua segurança e teu conforto! Amor é coisa de romances… suspirou d. Francisquinha. Vamos! Agora, sorria! Limpe este rosto, empoe-se e voltemos à sala, onde o noivo feliz aguarda sinhazinha para brindar o acontecimento!
Mariana compreendeu que seus rogos de nada adiantariam. Obedeceu à mãe e pouco depois entrava na sala, onde acertaram o noivado…
Tomaz, em pé atrás dos senhores, ouvia e via tudo. Seu coração sangrava: sua sinhazinha olhava-o furtivamente e seus olhos lhe falavam de amor. Mas… e Osmário? Como poderia ela casar-se com aquele homem mau? Ele, o Tomaz, a amava profundamente. Mas… era negro e escravo! Baixou a cabeça e tentou pensar na África: não ouviu mais nada do que os homens disseram… seu coração partiu-se de dor na hora em que Osmário, levantou-se, colocou no dedo delicado de Mariana, um anel de brilhante cujo valor deveria ser incalculável. A moça olhou para ele e seus olhos lhe juraram aquele amor de que ele se sentia dono há muito tempo.
CAPÍTULO 24.
KENAKÊ CHORA…
NOVAMENTE KENAKÊ CHORA…
Mateus estava descansando no fim de tarde; tivera um dia exaustivo na lavoura. Era tempo de colheita e ele tinha inclusive os dedos inchados e feridos. Sentara-se na beira do riacho para pensar em sua vida. Ele não via os elementais, mas havia um bando deles pulando na beira do rio e o observavam com curiosidade. Tão absorto estava com o pensamento em Kenakê, em sua aldeia, que não pressentiu Bastiana chegar com seu pisar leve e gracioso. A negra veio de mansinho, dengosa que era e abraçou-o pelas costas; Mateus estremeceu e olhou para a moça como se não a visse há muito tempo…
— Kalbe, oh! Kalbe! Ela dissera. Como te amo!
Por um momento ele pensou estar sonhando. Seria Kenakê que chegara trazida pelo rio com seus encantos? Fitando-a melhor, ele compreendeu que não era Kenakê e suspirou. Com aquele sorriso triste que surgira em seu rosto desde que partira, saudou a moça com carinho. Afinal, ela agora era sua mulher também…
— Oh! Bastiana! Levei um susto…
— Pensando em Kenakê? Perguntou Bastiana.
— Pensava… desculpe, mas… sou sincero… pensava!
— Tenho uma novidade para você… disse ela faceira.
— Vamos fugir? Perguntou Kalbe com idéia fixa.
— Infelizmente não é isso… se pudesse eu te levaria voando para nossa terra, Kalbe!
— Desculpe, Bastiana, eu levaria você comigo… Kenakê compreenderia…
— Está bem, ouça: vou ter um filho!
Kalbe estremeceu. Lembrou-se que sempre era na beira do rio que Kenakê lhe contava que ia ser pai. Ou lhe dava boas notícias. Bastiana também. Por quê? Perguntou em português, com carinho:
— Há quanto tempo tu sabe disto?
— Duas luas… mas… e Bastiana baixou a cabeça soluçando. Num sei quem é o pai… num posso afirmá qui é tu mas seria tão bão se fosse tu, Mateus! O barão me usou para ele, para Tertuliano, para o Felipe, para o feitô… tu foi mais veis, a gente istá sempre junto, mas eu num sei não… e a moça soluçava desesperada.
Mateus ficou calado observando-a; acariciava sua cabeça encarapinhada e relembrava Kenakê. Quando ela lhe falara dos filhos os dois sabiam que ele era o único dono do seu corpo; ele era o pai. Mas agora? De quem seria o filho que Bastiana trazia no ventre? Se fosse mulato, seria do barão ou do feitor. Mas… e se fosse negro? Eram tantas opções… Bastiana era bonita, forte e saudável e usada como reprodutora. Mateus ficou sentindo a amargura daquele pranto e uma piedade incrível encheu seu coração por aquele infeliz sentimento tão puro, que nem a miséria em que vivia poderia prostituir… Algum tempo assim ficaram; depois, quando Bastiana parou de chorar e fitou nele seus grandes olhos negros, tristes e vermelhos de tanto pranto, Mateus pegou seu rosto e ternamente falou, com cuidado para não magoá-la mais:
— Não importa quem seja o pai, Bastiana! Teu fio é meu… seje cuma for, nóis dois vamos criá o minino! Vou pedi a seu barão p’ra casá cum ocê nas Santa Missão…
Bastiana parou de chorar e sorriu. E seu rosto iluminou-se; algum tempo assim ficaram abraçados. Depois ela notou que escurecera.
— Valha-me Olorum! Tenho qui botá a janta! E saiu desabalada na carreira. Mateus seguiu-a enquanto dizia sorrindo:
— Cuidado, Bastiana! Meu filho não pode tomar pancada! E alcançou-a chegando os dois juntos à casa grande. Enquanto Bastiana encaminhou-se a cozinha, Mateus foi para a senzala conversar com Tertuliano.
Mateus não sabia que os elementais tinham ouvido a conversa e pensando que ajudavam, correram a contar a Kenakê mesmo sem perguntar a Mali se deveriam.
****
Era muito cedo na manhã seguinte, mas Kenakê resolvera ir ao rio tomar seu banho de cachoeira. A moça caminhava e cantava músicas tristes recordando seu amor. De repente, uma multidão de seres pequeninos, muitos seus conhecidos, saltou em torno dela. Sorrindo ao vê-los, ela comentou:
— Que gracinha! Vieram me visitar?
Eles balançaram suas cabecinhas molhadas. Um deles, com ar de mistério, disse:
— Temos notícias do rei Kalbe…
— Oh! Que bom! Dissera Kenakê feliz. Contem logo, seus danadinhos, contem.
E o elemental falou que vira Kalbe, na beira do rio, pensando nela. Mas aparecera uma mulher que falava dela, Kenakê. Depois, eles se abraçaram e…eles iam ter um filho…
À medida que o duende falava, o riso no rosto de Kenakê desaparecia e em seu lugar ficava uma expressão de dor. Depois que ele contou tudo, eles desapareceram, certos de que tinham feito um bom trabalho. E Kenakê veio para a beira do rio, deitou-se e ficou pensando…
Chorou quantas lágrimas ainda tinha. Depois, levantou-se, limpou os olhos e…tomou uma resolução! Ela queria morrer! Lembrou-se de Magáli e de sua coragem…
Ela foi andando para a cachoeira dos Tremembés sem pressa, rezando a seus deuses que a protegessem. Nada mais interessava a ela na vida. Perdera Kalbe de uma vez; para que continuar sofrendo? Ia acabar com tudo de vez!
Contornou a cachoeira e fitou o abismo. Ficou algum tempo meditando e procurando sentido naquele pulo para o abismo… Mali chegara e lá em baixo enviava pensamentos à amiga de força e coragem; mas ela não podia intervir no destino dos humanos, mesmo que fosse uma pessoa especial… vários encantados do rio, da floresta aguardavam a resolução da moça. Kenakê olhou mais uma vez a altura e a água lá em baixo; tão nervosa estava que nem viu Mali, nem seus amigos encantados. Pensou em Magáli, em Kalbe, em Kalila, nos filhos e netos, numa fração de segundos, pensou em seus pais… no amor, que eles tinham por ela e na confiança que sempre tiveram na coragem que ela demonstrara pela vida afora… uma vertigem toldou o pensamento de Kenakê… a vertigem do abismo parecia tragá-la … era um chamamento quase real… Kenakê soltou um grito horrível de dor e desespero… de seus lábios saíram sons mal articulados:
— Kalbe, eu… te… amo! Olorum, me projeta!… já…já!
*****
Mateus, não sabia que atraíra para si o ódio do feitor quando foi pedir ao barão a mão de Bastiana. O feitor nutria pela negra uma paixão doentia, um desejo animal violento. O barão consentira no casamento quando Mateus lhe falara; ele já estava farto de Bastiana e de seus carinhos. Havia uma negra mais jovem e forte, chamada Isabel, que chegara recentemente na última leva de escravos e que era uma sensualidade à flor da pele… então ele concordou sem muita complicação em ceder Bastiana. Mas o feitor, a partir daí, passou a castigar Mateus por qualquer dá cá aquela palha, toda hora, sem descanso. Aumentou sua jornada de trabalho, alegando que o escravo estava ficando mole e preguiçoso. Sua perseguição era aberta, todo mundo notava, o que se poderia fazer?
— Qui será qui eu fiz p’ra irritá tanto o feitô? Perguntava inocentemente Mateus a Tertuliano, quando os dois sentavam na senzala na hora de dormir.
— Num sei… tu num fez nada… os feitô é anssi memo… iscravo só serve p’ra trabaiá e apanhá… suspirava Tertuliano.
— Acho qui chegou o tempo! Disse um dia Mateus.
— Tempo de que, meu irmão? Perguntou Tertuliano aflito.
— Da gente fugi… tenho um prano…
— Psiu… cuidado… parede tem ouvido… dizia Tertuliano, prescrutando o escuro com seus olhos de lince. E depois, virando-se para Mateus: — Não há ninguém por perto!
— Os iscravo do visconde vai fugi e nóis vamo cum eles p’ra além da cachoeira do japonês.
— E se a gente se perde? Perguntou Tertuliano temeroso.
— Se acha, ora essa! Eles sabe o caminho, um deles já trabalhou por lá… nas mina de briante… deixa a Bastiana descarregá a barriga e o minino ficá fortinho. Nóis vai tudo! vamo esperá as féria pruque num vou deixá Kalila aqui não! Nós vai tudo! E Mateus ria, deixando ver a fileira de dentes alvos e fortes.
*****
A menina de Bastiana nascera forte e grande; não era mulata, era uma negrinha bonita. Mateus queria chamá-la Kenakê, mas o barão não admitiu nome pagão. A criança recebeu o nome de Luzia. Quando a menina completou um ano os preparativos da fuga estavam prontos. Cada mês um negro ia até um ponto estratégico e preparava furtivamente uma palhoça precária para que eles tivessem onde descansar durante a jornada. Haviam conseguido isto até adentrando o sertão, subindo e descendo morros. Mateus liderava tudo na surdina. Do ponto em que haviam chegado, fosse o que Deus quisesse!
Era tempo de verão e a família estava na fazenda; o barão combinara um passeio com outras famílias da região e saíram todos para passar mais ou menos uns quinze dias; eles iam até uma região chamada Belém, onde o clima era mais ameno do que Cachoeira e onde o visconde dispunha de uma grande propriedade. Tomaz dera um jeito de arrumar a roupa dos senhores, ficando assim em casa. Ele não queria partir, mas não poderia explicar ao pai suas razões; Mariana ia casar. Conformou-se então e estava pronto!
Mariana arrastava um noivado sem amor; tinha que suportar a presença desagradável de Osmário. Nessa manhã, Tomaz viu-a chegando do riacho sozinha. Ao passarem um pelo outro, seus olhos se cruzaram e a moça deixou que ele percebesse toda a sua tristeza. Tomaz falou timidamente:
— Senhora!
Mariana voltou-se sobressaltada e perguntou:
— Sim, Tomaz?
— Cunteça o qui cuntecê quero qui a sinhora saiba qui este iscravo adora a senhora cuma uma deusa africana de nóis iscravo…
— Obrigada, respondeu Mariana emocionada. Também eu gosto muito de você Tomaz.
Impulsivamente, o rapaz tomou as mãos brancas e bem cuidadas da sinhazinha e beijo-as sofregamente. Mariana estremeceu e desejou que aquele beijo durasse para sempre…
— Sinhazinha, istá na hora do passeio! Gritou Nair da varanda da casa.
Mariana falou com ternura para Tomaz:
— Agora tenho que ir, Tomaz. Eu… eu amo você! E saiu correndo em direção à casa grande.
Tomaz ficou boquiaberto. Então seu amor era correspondido e ele nem sabia? Então sinhazinha não gostava do noivo e ia casar com ele? Não entendo estes branco! Resmungou o escravo, balançando a cabeça em sinal negativo.
Mas sabendo-se amado, ele olhou o céu, achando-o mais azul, o sol mais brilhante, o riacho alegre cantante, transmitindo uma canção de amor…
E resolveu não partir…
Mateus procurou uma hora em que o filho estivesse só e falou:
— Tudo combinado para esta noite. Quando for noite fechada os iscravo vai se reunir na clareira grande perto da cachoeira do japonês. Daí a caminhada vai sê dura!
— Num quero ir, pai… resolveu o rapaz.
— Cuma num qué ir? Tu qué sê iscravo toda vida? Perguntou Mateus surpreso.
— Num posso sê ingrato cum meus sinhô, pai! Eles são bão p’ra mim, pai… eu…
Mateus olhou para o filho sem compreender; arrumara a fuga para o tempo das férias porque não queria partir sem Tomaz. Agora, ele dizia que não queria ir… será que ouvira direito? Será que Tomaz estava com o juízo perfeito?
Conversaram longamente, mas Tomaz fora irredutível… Mateus não teve remédio senão conformar-se. Abraçou o filho com ternura, explicou a ele onde seria o quilombo para onde iriam e pediu com os olhos cheios d’água que se mudasse de idéia, fugisse para lá.
Tomaz abraçou o pai com emoção; sentia, do fundo do coração que nunca mais o veria. E chorou; soluçou profundamente agarrado a Mateus.
— Perdoa pai, num posso parti… meu coração… meu coração tem… amô aqui.
— Leva a muiê qui tu ama, fio… tu é rei lá… ponderou Mateus.
— Impossível, pai. A muiê qui amo é… e Tomaz sussurrou no ouvido de Mateus: é … sinhazinha!
— Tu istá louco mesmo! Esbravejou Mateus, a voz enrouquecida. Fio, tu vai morre no tronco da apanhá, capado e tudo!
Tomaz baixou a cabeça chorando.
— Eu sei… mas… amo tanto a ela, pai! E ela hoje disse qui me ama! Cuma posso ir p’ra longe, pai?
Mateus fitou o filho com piedade. Apenas disse:
— Ela vai casar com um branco, nobre e rico qui nem ela fio, aqui tu é iscravo! Te enxerga, fio meu! Vem cum a gente enquanto é tempo! Tu tem de ser Rei! Mateus falava com dor e orgulho.
— Num vou não, pai. Perdoa! Vou ficá cum ela! Quando ela casá, fujo p’ra perto do sinhô!…
— Que Olorum te proteja! Disse Mateus emocionado.
— E ao sinhô também, pai!
E os dois se separaram…
CAPÍTULO 25.
O AMOR DE MARIANA
Mariana ia constantemente a uma casinha que o barão construíra para Nair, logo que a negra havia sido alforriada. Ficava nos fundos da fazenda e ali Mariana conversava, bordava e desabafava seus segredos.
Uma tarde em que ela subira para conversar com sua mãe preta, Tomaz saíra do seu banho no japonês e quando voltava ouviu um canto bonito e foi indo até que chegou à cabana e viu Mariana sentada no banquinho ao lado de Nair, tendo um bordado nas mãos e a cabeça inclinada na parede, os olhos fitos no céu cantando.
O coração do rapaz acelerou os batimentos, emocionado e surpreso, chegou perto, saudando.
Mariana sobressaltou-se, cravou os olhos no rapaz e sorriu, o riso doce dos que amam…
— Boa tarde, sinhazinha! Disse Tomaz respeitosamente.
— Boa tarde, Tomaz, respondeu ela. Como descobriu meu esconderijo? Perguntou divertida, o coração aos pulos.
— Ouvi uma voz e pensei qui os anjo do céu istava pulano na cachoeira… explicou o rapaz emocionado.
— Quem me dera ser um anjo! Suspirou a moça.
— Sinhazinha é um anjo, cuma aqueles da igreja da Matriz.
— Se eu fosse, voaria para bem longe com quem gosto!
— E o visconde sabe avoá? Perguntou tolamente o escravo.
— Não, ele não sabe. Mas eu não voaria com ele, pois dele não gosto; voaria com você, Tomaz, para um lugar bem longe, onde a gente vivesse sozinho, sem as maldades das gentes e pudesse ser livre e feliz.
Tomaz sentia-se nas nuvens de felicidade. Então, a sinhazinha sonhava com ele? A sinhazinha era feliz pensando em viverem lado a lado, como homem e mulher? Tomaz, sentindo-se envolvido numa ternura infinita, chegou bem perto de Mariana e respondeu baixinho:
— Vamo p’ra bem longe, sinhazinha! P’ra minha terra onde eu vou sê rei! E a sinhazinha será uma grande rainha, como foi Kenakê, minha mãe!
Mariana tinha os olhos rasos d’água; levantou-se, tomou as mãos do escravo, que se ajoelhara-se aos seus pés. Olhou-o por uns momentos, segurou com força as suas mãos e depositou um beijo apaixonado na sua testa que escaldava de emoção. Tomaz nem se mexera tal a felicidade que sentia. Apenas olhava a senhora como se ela fosse a encarnação de uma deusa.
— Senhora minha rainha, sou o homem mais feliz deste mundão de Olorum! Minha rainha! Conseguiu balbuciar a custo.
Nair calada até este momento, não se conteve e pediu a Mariana com ar maternal:
— Mia fia, por Nossa Senhora do Monte! Sinhazinha enlouqueceu! Cria juízo mia fia, cum este amô doido!
— Mãe Nair, enlouqueceu de amor, mãe Nair! Desculpe…
— Caminha, Tomaz, caminha, meu fio.
Tomaz voltando a realidade olhou as duas e com um cumprimento de cabeça, trêmulo de emoção, afastou-se, cabeça baixa, pensamentos aos borbotões.
— Ta na hora de nóis vortá p’ra casa grande… comentou simplesmente Nair. Sinhá moça já pensou se o barão ou argúem de lá vê o qui eu vi? Sinhazinha, seu pai capa e mata o moço e bota minha sinhá no convento!
Mariana pegou suas costuras e os livros que trouxera e começou a arrumar-se para voltar para casa. Ela sabia que sua mãe preta tinha razão. Fora longe demais. Mas… não estava nem um pouquinho arrependida!
— Qui loucura, mia fia, qui loucura! Um iscravo negro sem estudos, sem dinheiro, sem liberdade! Sinhazinha, tu é fia do barão de Limeira, sinhazinha! Atenta nisto! Meu Deus, qui amô doido!
— Doido mesmo, mãe Nair! Mas o que sinto por Tomaz nunca senti pelos brancos perfumados que encheram os salões de meu pai, o barão de Limeira! Homens que só amavam meu dote, meu título… Tomaz tem um coração terno, me ama com pureza e nem sequer pensa na herança que terei um dia! Ele ama Mariana, a mulher, o ser humano, sem papéis ou documentos, sem obrigações sociais: ama por que ama! Foi assim que sempre sonhei ser amada e é assim que eu o amo também!
Nair olhou demoradamente para a filha branca, a quem idolatrava. Meditou sobre tudo o que a moça havia dito e ela sabia que Mariana tinha razão. Pensou e repensou, mas nada concluiu; finalmente olhou o céu e compreendeu que a hora estava adiantada. Limpando as mãos no avental, disse:
— Vamo vortá p’ra casa grande. Tá ficano tarde… Deus abençõe ocês dois, mia fia.
E balançando a cabeça, juntou as coisas da varanda e se prepararam para voltar. Mariana pulou em seu pescoço abraçando-a, enquanto dizia:
— Isso, mãe Nair, me dê a sua benção e sua força: meu amor só precisa ser abençoado por Deus e por você!
E abraçadas, as duas choraram seus temores.
CAPÍTULO 26.
A FUGA
Dois dias depois desta cena, a moça confessara que o amava e Tomaz se negara a fugir para a liberdade…
Quando a madrugada ainda não havia clareado as terras do engenho Pitanga, os negros começaram a se movimentar para a fuga. Calados, tudo já bem explicado, ninguém precisava falar com ninguém. Nair colocara disfarçadamente um calmante no café do feitor, que dormia a sono solto em sua casinha logo atrás da casa grande. O barão e a família haviam ido passar uns dias para os lados de Belém, numa fazenda de amigos. O Visconde de Pedra Branca havia ido também, com a família. Só haviam, portanto, nas duas fazendas os feitores e os escravos. Eles tinham batido o atabaque duas noites passadas até tarde, e entre um orixá e outro sussurravam as dicas para a fuga. Depois jogaram capoeira e cada movimento, cada ataque ou defesa era pretexto para trocarem informações. Tudo parecia normal entre eles.
A lua era minguante, sem quase nenhuma claridade. Eles deslizavam mansamente, calados, sem o menor ruído. O clima era perfeito!
Nair pingara calmante no café dos empregados brancos. E, como se de que nada desconfiasse, dormiu calmamente no quarto dos fundos da casa grande, como era seu costume, quando os senhores viajavam, para tomar conta da casa.
Pai Yoyô e mãe Maria Conga não haviam fugido, pois o velho estava enfraquecido, convalescendo de malária. E Maria, esposa e companheira dele, também se negara a partir. Nair deu calmante aos dois, para que parecesse que estavam os três, inocentes na fuga dos outros escravos…
Mateus e Tertuliano lideravam os grupos apenas com sinais. Tomaz mesmo que quisesse não poderia ter fugido: os senhores o levaram no passeio para cuidar de suas roupas e lhes servir; Mariana também levara sua escrava; o barão levara alguns deles. Estes não tiveram vez.
Os escravos arrastavam-se com muito cuidado, ferindo-se nos espinhos, morro acima. Mateus ia à frente, carregando sua pequena Luzia-Kenakê nos braços fortes. Bastiana vinha logo atrás levando trouxas de roupa, segurando-se às vezes aos troncos das arvores, ou aceitando a mão que Mateus lhe oferecia com dificuldades, pois segurava a menina adormecida.
Tertuliano liderava outro grupo, ajudando Benedita a subir o morro, acenando para os que vinham logo abaixo. De repente, um dos negros deu um grito abafado. Tertuliano voltou-se e perguntou a Felipe o que acontecera; Felipe, leve como um felino pulou em direção ao negro e voltou apavorado, sussurrou para Tertuliano:
— Cobra! Mordeu o pé dele.
— Vamo ajudá… ordenou Tertuliano. Ocês outro siga em frente, acompanhe Mateus… a gente logo vorta.
Benedita quis relutar, mas Tertuliano foi incisivo:
— Siga Mateus e nóis se encontra lá em cima.
Mace obedeceu sem mais delongas.
Tertuliano chegou até ao negro que pertencia ao Visconde. Apertou o ferimento até que sangrasse bastante. Foi até o riacho e molhou um pedaço de pano rasgado de sua camisa. Envolveu com ele a perna do companheiro. O negro ainda caminhou um pouco; depois, ficou pálido, dispnéico, angustiado, arroxeado e pediu para deitar, pois não podia respirar…
Tertuliano e Felipe velavam a seu lado, rezando as orações que haviam aprendido na igreja da Matriz, no catecismo. Misturavam a elas invocações aos orixás. Era quase manhã quando o negro morreu, entre dores horríveis.
Ele foi a primeira vitima na fuga para a liberdade…
Quando clareou o dia, os negros já estavam longe, muito além das terras do barão, em terras de outros senhores. Mas havia muito o que andar. Eles atravessaram a cachoeira do japonês, noite ainda e deslizavam como loucos, obstinadamente e, arrastando-se no chão, buscando caminho.
Quando chegaram a primeira das cabanas construídas por eles para a fuga, já era noite fechada. Mortos de cansaço, sujeira e fome, pararam para um descanso. Tomaram banho no rio sem algazarra, procurando manter a ordem do silêncio, acomodaram as crianças com cuidado. Depois as mulheres e os homens acotovelaram-se na grande clareira, alertas a qualquer movimento suspeito. Dormiam exaustos, mas seus espíritos estavam alerta.
Bastiana ninou Luzia, a pequenina menina negra de olhos cinzentos como o pai e ficou olhando-a dormir serena. Balbuciou para Benedita:
— Mia fia será uma muié negra, porém livre! Tu acha qui ela parece cum teu irmão? Perguntou mudando a entonação da voz.
— Parece; ela me alembra a pequena Suian, a fia maió de Kalbe… suspirou Benedita e seu pensamento voltou-se de repente para Kenakê. Num vai havê problema, pensou. Kalbe pode tomá Benedita cuma concubina…Kenakê compreende.
E ao pensamento de voltar à sua terra, à sua gente, Benedita sorriu.
— O qui foi? Perguntou Bastiana.
— Vamo vortá, Bastiana! Vamo vortá p’ra África! Vamo sê livre de novo!
Mateus na clareira, deitado num pedaço de esteira, olha encantado o céu. Estavam conquistando a liberdade! Mas a que preço! Ele sabia que várias vezes os negros tentaram e o barão os capturara com ajuda dos negros traidores e do feitor. Caçavam-nos como bichos e o preço era morrerem amarrados ao tronco; Mateus vira vários castigos de negros no tronco. Ele próprio fora para lá, mas apanhara pouco, pois o castigo não fora grande: apenas respondera ao feitor, orgulhoso como era, não deixando desaforo sem resposta. E o feitor, com raiva por ter perdido os favores de Bastiana, alfinetava Mateus toda vez que podia, não perdendo oportunidade de castigá-lo por qualquer besteirinha.
Mateus estremeceu ao pensar nisto; agora, se o encontrasse o faria em pedacinhos.
Afinal, ele adormeceu e sonhou que estava em sua aldeia e sentiu os braços ternos de Kenakê enlaçando-o como antes… ela chegava perto dele e dizia:
— Venha, amor, agora ninguém mais pode destruir nosso amor! Vamos caminhar juntos por estes campos lindos.
E os dois caminhavam abraçados, ele sentindo seu perfume excitante, ela cantando baixinho canções de amor.
A madrugada vinha chegando quando Tertuliano acordou os homens:
— Vamo aproveitá qui inda istá iscuro p’ra ganhá frente contra os home dos sinhô!
— Vambora! Disseram os homens levantando-se e pondo-se a caminho.
Mateus também levantou-se do outro lado com seus homens e reiniciou a caminhada. Tinha ainda presente o cheiro agri doce de Kenakê e sua presença. Parecia que estivera com ela toda a noite. Ajudava Bastiana a subir no caminho pedregoso, segurava a pequena Luzia com muito cuidado e carinho, adormecida em seus braços. Os homens e mulheres embora cansados pela longa jornada, mostravam-se otimistas e felizes; caminhavam para a liberdade! Seguiam seu líder com confiança e coragem!
Mateus agia rigorosamente como o combinado: ladeando os morros pela parte mais escarpada para evitar serem vistos lá do vale do Pitanga. Por isso, a caminhada era mais difícil e perigosa; todo o cuidado era pouco porque o menor deslize poderia ser fatal… Mateus evitava olhar para baixo e, frequentemente, lembrava isto a seus homens e pedia que transmitissem a recomendação aos que vinham mais atrás. E caminhavam para a frente…
O primeiro morro havia sido vencido; agora era uma vegetação mais agreste, pois ali o homem ainda não havia posto os pés. Plantas altas e cheias de espinhos que eles cuidadosamente afastavam, temendo as cobras, cada escravo tinha uma foice, ou um machado, ou um facão, roubado dos seus senhores. Aquela fuga tinha sido planejada havia um ano atrás e aos poucos eles vinham acumulando o necessário para partir.
Agora iam na frente os mais fortes e decididos e liderados um grupo, o maior, por Mateus, e o outro por Tertuliano prosseguiam na subida. Era o segundo morro. Às vezes, numa volta qualquer se viam furtivamente e os líderes se entendiam por sinais convencionais discretamente trocados.
Dois dias levaram para atravessar o segundo morro; quando pararam para descansar e comer frutas e ervas, seus corpos estavam exaustos. As mulheres deitavam-se na palhoça preparada meses antes, com as crianças. Os homens dormiam mesmo na clareira. Mateus e Luiz dividiam a guarda: um descansava e o outro velava, alternando-se rigorosamente para que ninguém se cansasse demais. No grupo de Tertuliano ele alternava com Felipe e Domício, um escravo alto e forte, que pertencia ao Visconde e era também um líder nato.
Madrugada ainda, ambos os grupos retomaram a caminhada. As crianças iam dormindo amarradas às ancas paternas ou maternas, ao modo da África. As mulheres levavam roupas e alimentos. Todos ajudavam no que podiam. E o terceiro morro começou a ser escalado… era o maior e mais íngreme e Kalbe recomendou a todo o grupo cuidado redobrado.
Em seu topo havia uma linda nascente e os grupos pararam para tomar banho no quarto dia à tardinha. Em silencio, nem as crianças fazendo algazarra, eles se deliciaram com aquela água pura e fresca. Beberam água, tomaram banho e depois secaram os corpos negros no tempo. As crianças tremiam de frio, os corpos lisos e brilhantes que o sol do crepúsculo não aquecia… e as mães negras, com seu desvelo carinhoso, as abraçavam, apertando-as de encontro aos peitos rijos, aquecendo com seu amor os filhos queridos.
Depois, dormiram por ali mesmo; não tinham conseguido fazer cabanas em lugares tão distantes. Acomodaram-se como podiam. Kalbe ficou vigiando no primeiro horário e Bastiana deitou-se a seu lado com Luzia no colo.
— Estive conversando com Benedita e ela acha que Luzia é sua filha mesmo, Mateus, disse ela em nagô, com voz sussurrante, alisando os cabelos encarapinhados da menina.
— Já falei que isto não importa, Bastiana. Quero bem a ela como se fosse minha filha, isto não basta? Respondeu impaciente.
— Para mim não basta; queria que Luzia fosse tua filha de verdade. Se ela tem zóio cinzento é pru que é tua fia memo, ora esta! Se fosse do barão ou do feitô, era mulata… dos nego qui mi cubriram nenhum tinha zóio cinzento… ela falava em português agora.
Kalbe olhou para ela e sentiu pena: as vestes rasgadas embora limpas pois ela as havia lavado no rio, os olhos súplices, a expressão triste; Bastiana sabia-se desejada mas não amada por ele… Kalbe então abraçou-a e disse:
—Craro Bastiana, Luzia é mia fia; e ocê é mia muié. Venha cá… deixe qui eu faça uns carinho.
— Não, Mateus… sei qui a gente tem de vigiá… vou p’ra junto das muié p’ra dormi um pouco… a gente ispera inté chegá no Quilombo.
— Num vou fazê nada não, muié… tu istá doida? Num posso trai minha gente; inda sou um rei!
E Kalbe abraçou-a e beijou-a com carinho. Beijou os cabelos negros de Bastiana e seu cheiro de mulher fez ferver o sangue quente de Kalbe. Empurrando-a, disse, tentando não magoá-la:
— Vai, vai muié, dormi… meu sangue tá fervendo! Tu num pode chegá perto qui eu fico daquele jeito! E Mateus sorriu aquele riso franco e bonito.
Bastiana levantou-se e seu rosto estava iluminado.
— É mesmo, Mateus? Eu te faço ficá assim?
Ele assentiu com a cabeça.
— Craro, admitiu.
— Mais que Kenakê? Perguntou Bastiana ansiosa.
Mateus ficou pensativo. Depois, medindo bem as palavras respondeu:
— Sem comparação; por favô num cumprica! Kenakê eu amo desde minino… num cumprica, muié.
Bastiana compreendeu. Kenakê era parte daquele homem. Era alguma coisa muito forte que ninguém poderia separar, nem a distância, o sofrimento, ou outro amor… beijou Mateus na testa e disse com simplicidade:
— Cuide de ocê, meu amor… vou dormi um pouquinho!
Segurou a pequena Luzia com cuidado, ajudada por ele e foi procurar um cantinho para dormir; ela sabia que ele amava Kenakê, mas no fundo do seu coração não acreditava que voltasse jamais à África. Que perigo poderia oferecer uma mulher a tantas milhas de distancia? Assim, Bastiana, resolveu viver os momentos de amor que sobravam no coração do seu amado… e dormiu mais feliz a este pensamento… e como sabia amar aquele Mateus!
Bastiana adormeceu com um sorriso doce nos lábios. E sonhou. Sonhou com Kenakê: eles estavam na África, ela era a concubina e sua filha Luzia era bastarda.
Ainda os raios do sol nem bem aqueceram a terra, tingindo o horizonte de rosa e azul, os negros já estavam de pé iniciando a caminhada. Estavam no topo do morro e hoje iam ladeando-o pelo lado mais escarpado e perigoso para atingir o lado que dava para o limite de Cachoeira.
Uma das crianças amanheceu tossindo, com febre. A mãe estava apavorada. O menino estava mole e quente. Bastiana fez um chá com folhas de pitanga e deu ao garoto. A mãe agasalhou-o com uns panos que trazia, mas ainda assim ele tiritava de frio. Prosseguiram com um caminhar mais lento para dar apoio a mãe do doente. Cinco dias se passaram e a febre do garoto não cedia; chás de ervas haviam sido dados, feitos com dificuldades no fogo de espantar bichos e de aquecer quando acampavam ao final do dia. Mas a febre não desaparecia.
Afinal, na manhã do sexto dia, surgiram umas pintinhas vermelhas por todo o corpinho do garoto. Nesta mesma tarde a febre começou a melhorar. O garoto estava todo pintado. Os olhos inchados, não o deixavam ver a luz. A mãe colocara um pano no seu rosto, mas não podiam parar.
Uma das mais velhas negras do grupo vendo o menino, disse, acalmando a mãe:
— Isto é sarampo! Doença de criança memo! Vi muito minino cum isto na fazenda! Agora vai amiorá, tu vai vê!
E todos se acomodaram, com a esperança de que logo o pequeno melhorasse.
****
O sol já ia alto no dia seguinte à fuga dos escravos da fazenda Pitanga. O feitor, contra seus hábitos de homem do campo, dormira até muito tarde sob o efeito do remédio, acordara quase ao meio dia; estranhou o sol quente entrando pela janela. Espreguiçou-se e aguçou o ouvido. Notou o silêncio na fazenda. Imaginou estar sonhando.
— Que significa isto? Perguntou para si mesmo.
Saiu do quarto ainda coçando os olhos de sono. Da varanda da sua casa olhou para a casa grande e não viu ninguém varrendo ou se movimentando. Correu a lavar-se e se preparou calçando as botas para ver o que havia. Entrou na casa grande e o silêncio era total. Na sala a mesa não estava posta. Na cozinha e na copa, não havia ninguém.
O feitor gritou para os fundos da casa:
— Nair? Maria Conga?
Silêncio absoluto; nenhuma resposta! Apenas a canção do riacho, correndo, correndo…
O feitor pensou um instante, tomou uma resolução: foi até o quarto das escravas na senzala menor e ficou estarrecido: a senzala vazia, apenas Nair e Maria Conga lá estavam e dormiam profundamente!
— Que haverá por aqui? Perguntou-se apavorado.
Chegou perto das negras e dando um pontapé no traseiro de cada uma, perguntou, à queima roupa, enquanto elas acordavam assustadas.
— Que houve aqui? Dormindo até estas horas suas vagabundas?
— Qui horas é estas, seu feitô? Perguntou Maria Conga fazendo-se de inocente.
— E… o sol ta forte, Maria! Qui é isto, seu feitô? Perguntou Nair mais santamente ainda.
— Vocês é que vão dizer, suas vagabundas!
E o feitor começou a dar pancadas a torto e a direito.
– Cadê o resto dos escravos? O que aconteceu por aqui?
— Os iscravo? Num istá nas senzala?
— Que senzala? Agora é hora de trabalho é meio dia e meio! Hora de almoço e não há ninguém em canto algum! Suas preguiçosas! Cambadas de abestalhadas! Vamos até as outras senzalas ver se deu mosca do sono aqui.
As negras seguiam o feitor aterrorizadas. Nas senzalas não havia ninguém. O feitor ia aos berros chamando os escravos e o silêncio era total. Foram ao engenho, ao canavial, a casa de farinha, ao milharal, ao laranjal. Ninguém! Enquanto isto, o feitor do Visconde viera até ali contando a mesma historia: as escravas de dentro dormiram até aquela hora e ele também; e os escravos de fora, da lavoura, haviam desaparecido!
— Miseráveis, fugiram todos e fizeram de nós uns paspalhos! Eles me pagam! E o feitor do Visconde brandia a mão direita ao ar, mostrando do que seria capaz a sua raiva.
De repente, os feitores olharam para as escravas que os olhavam temerosas e compreenderam que elas estavam inocentes porque haviam dormido também… mas, como seus corações eram maldosos e estavam cheios de vingança, resolveram amarrá-las no tronco e começaram a tortura.
Maria Conga estava velha de mais para partir e Nair também; esta não quisera abandonar sua sinhazinha já estava alforriada por ela. Agora, amarradas ao tronco gemiam a cada chicotada. O sangue forte jorrava aos borbotões a cada batida do chicote. Nair e Maria Conga rezavam, pedindo forças aos seus orixás e ao Deus de sinhazinha. Pai Yoyô, enfraquecido pela malaria, veio até perto delas e o feitor amarrou-o também. Ele morreu com as primeiras chicotadas, um fio de sangue escorrendo pela boca entreaberta… pai João ao lado das negras, gemia e rezava, vendo o chicote do feitor rodando no ar.
E sabe Deus que santo fez o milagre, porque Paulo apareceu a cavalo, no momento em que o feitor voltava a bater exigindo a confissão deles.
— Falem, negros malditos! Confessem! Para onde foram os fugitivos?
Eles nem respondiam mais. Apenas gemiam…
Paulo chegou com seu cavalo branco e ficou horrorizado com a cena violenta que presenciava.
— Está louco, feitor? Batendo em mãe Nair e mãe Maria Conga?
— Não estou louco, não senhor! Os escravos fugiram todos, patrão!
— O que? Perguntou Paulo empalidecendo. E por que está batendo nelas? E em pai João, coitados?
Paulo apeou e veio tirar Nair do tronco. Segurou-a em seus braços: estava desmaiada, mas ainda vivia.
Depois fez o mesmo com Maria Conga: a negra abriu os olhos, fitou-o com imensa ternura, e balbuciou com muito esforço as palavras em que declarava sua inocência e sua dedicação:
— Sinhozinho, num sei de nada! Deus te abençoe, meu fio!…
E Maria Conga entregou a Deus sua alma pura e simples. Paulo olhou desesperado para o feitor:
— Pagará por isto, seu desgraçado! E peça a seus santos que não aconteça o mesmo a mãe Nair! Anda, vá chamar o médico e o vigário da Matriz. Vá logo, homem! Berrou Paulo, vendo que o empregado não se mexia. Ande, homem!
— Senhor, os escravos fugiram todos! Dizia desesperado o feitor, imaginando o que teria que explicar ao barão. Vou com os homens dar uma batida nos campos para trazê-los de volta! E aí sim, os troncos ficarão cheios.
Paulo olhou para o homem e uma onda de ódio há muito tempo contida irrompeu no seu coração, e o rapaz gritando colérico ordenou:
— Não; ninguém sai daqui… nem você, nem os homens do Visconde… não suporto mais estas torturas! E foi pegar pai João, já quase desmaiado. Meu Deus, será que não vem logo uma lei que liberte estes pobres negros, esta gente humilde que só sabe trabalhar e sofrer apanhando? Esta gente que apesar dos maus tratos ainda ama e perdoa aos brancos? Meu Deus! Quando haverá um basta em toda esta miséria?
O feitor ouvia sem entender. Perguntou, sem saber o que fazer:
— Não vou então procurar os fugitivos, patrão?
— Não; e se mãe Nair morrer também, segure seu pescoço, feitor! Maria Conga nos criou, o senhor a matou!
Paulo entrou em casa para cuidar de mãe Nair. Carregava Maria Conga com muito carinho, dizendo palavras ternas e de saudade…
Colocou-a no quartinho dos fundos, confortavelmente, deitada na pequena cama que servia para hóspede quando a casa estava cheia.
Depois, foi até a outra cama ver mãe Nair; respirava ainda com dificuldade. O rapaz colocou a mão em sua testa e percebeu que estava escaldando. Neste momento o médico chegou, com sua maleta preta, a barba comprida, os olhos grandes e penetrantes. Um ar de bondade em seu semblante tranquilo foi logo perguntando, enquanto sentava na cadeira colocada entre as duas camas.
— O tronco!
— Foi; esse estúpido feitor! Esbravejou o rapaz.
— Cuidado, paredes tem ouvidos! Não convém que saibam que você é um dos nossos.
— Pouco me importa, doutor! Estou tão revoltado que se até meu pai chegasse agora, eu confessaria!
O médico olhou Paulo, enquanto esperava a temperatura de Nair.
— Meu amigo, meu jovem, para se ganhar uma causa é preciso muita paciência; não adianta nada, esta coragem arrotada. Seu pai manda-o para longe e… menos um para lutar pelo ideal abolicionista! Pense nisto, meu filho!
— Está bem, doutor. Tentarei ficar calado!
O médico examinou Nair, medicou-a e explicou a Paulo a gravidade da situação.
— Tudo farei para que ela se cure, mas só o tempo poderá dizer alguma coisa… ela é forte, vai reagir, espero! Passarei duas vezes por dia, pode mandar a charrete buscar-me.
— E mãe Maria Conga, será que morreu mesmo? Perguntou Paulo com uma vaga esperança. E pai João e pai Yoyô?
O médico examinou Maria cuidadosamente. Balançou a cabeça numa negativa e mandou que preparassem a preta velha para o enterro; ele próprio fez o que lhe pareceu necessário, ajudado por Paulo e por duas mucamas que também haviam dormido demais.
Depois voltaram ao tronco para dar socorro aos dois escravos. Pai desmaiado embora, ainda reagia. O sangue espalhado pelo chão de terra enchia o ar com aquele cheiro desagradável característico. Com as pancadas e a dor eles haviam vomitado; urina e fezes se confundiam num festival mau cheiroso. O médico pediu que transportassem pai João para um dos quartos dos fundos da casa grande e fez de lá uma enfermaria. Pai Yoyô ainda vivia também; fraquinho, debilitado pela malária, da qual convalescia, sua vida parecia um sopro fugaz.
Paulo segurou-o como a uma criança, sem se importar que seu sangue manchasse a sua roupa de montaria. Quando ia colocando pai Yoyô no colo ele abriu os olhos, fitou ternamente o sinhô e num sopro de voz falou:
— Que… Olo…rum… te abençoe, meu… fio…io…
— Fique quieto, pai Yoyô; você vai ficar bom! Nós estamos lutando para os negros serem livres, pai Yoyô. Confie!
O escravo sorriu debilmente. Paulo agora o colocava no leito macio que mandara preparar para ele. Pai Yoyô perguntou:
— E Maria, e Nair? E os outros? Sua respiração ficava cada vez mais rápida e fraca.
— Estão bem, fique calmo. O doutor está cuidando deles. Eu estou aqui; ninguém fará mal a vocês… confie! Respondeu Paulo logo chamando o doutor.
Pai Yoyô agora sorria para a porta do quarto.
— Maria! Ocê veio vê seu preto veio, mia Maria… ele cansava mesmo ao pequeno esforço de falar. Uma golfada de sangue escapando-lhe pela boca entreaberta manchou-lhe a blusa já tão suja e ensanguentada. A mucama limpava o seu corpo e tentava tirar a roupa sem magoar seus ferimentos.
Paulo e o doutor se entreolharam. Maria estava morta: naquele lugar para onde ele olhava não havia ninguém.
— Olorum… abençoe vosmecês… vamo, mia Maria…
E Paulo viu com desespero que os olhos grandes e vivos de pai Yoyô foram ficando vidrados, e sua expressão tranquila, sem aquela terrível expressão de dor. Uma lágrima brilhante lhe descia pela face negra, enrugada e sofrida.
O desespero e a raiva de Paulo ultrapassaram os limites. Ele explicou ao médico a fuga e disse também que proibira o feitor de caçá-los, alegando a dor pelo sofrimento de negros tão amados.
— E a mãe Nair já alforriada, meu Deus! Quando sinhá moça souber… não quero está por perto! Ponderou o médico. Mas, cuidado meu filho, o barão pode voltar-se contra você… precisamos de você na causa! Passado algum tempo, mande o feitor dar busca… ao que sei, o médico curvou-se para falar bem ao ouvido de Paulo — eles foram para os lados do sertão, nas Lavras Diamantinas… mande a busca para o lado oposto, completou, piscando o olho num gesto de cumplicidade.
Paulo sorriu compreendendo.
— O senhor está bem informado! Disse com admiração.
— Um líder tem de saber das coisas, meu rapaz! E trabalhar no escuro sub-repticiamente… as claras como você pretendia, não dá certo… só quando a causa está ganha, ai sim, ele aparece com coragem e força totais… pense nisso, Paulo. A causa precisa muito de você! Pense nisto!
— Pensarei, doutor.
Paulo acompanhou o médico até a porta, caminhando e conversando, seguiu-o até a pequena ponte que atravessava o riacho Pitanga antes dele entrar na fazenda… combinaram a melhor atitude a tomar. Paulo retornou a casa, enquanto o doutor seguia na charrete do barão.
Paulo chamou o feitor e ordenou que fossem iniciadas as buscas exatamente como o médico havia orientado. E foi a chegada providencial de Paulo, que voltara por haver esquecido uns documentos que não queria fossem encontrados, que salvou os negros fugitivos.
CAPÍTULO 27.
O QUILOMBO DA LIMEIRA BRANCA
Outras crianças tiveram sarampo; as mulheres carregavam seus filhinhos com desvelo, sofrendo pelo desconforto e pela falta de alimentos e remédios. Uma semana depois, duas crianças começaram a tossir; enfraquecidas pela doença, magrinhas, olhos fundos, mal cuidadas pela situação de fuga, elas pioraram a olhos vistos. Chegando a uma clareira já bem longe de Cachoeira, em pleno sertão, Mateus mandou que descansassem para ver se melhoravam. Elas passavam toda noite tossindo, com febre e frio… no terceiro dia, a menor delas morreu, uma menina.
Dois dias depois, o menino também descansava o corpinho escaldante.
O grupo subia penosamente o morro, escarpado, alto, cheio de vegetação com espinhos. Foi numa dessas viradas que um dos negros, rasgando a perna que os andrajos já não cobriam mais, teve sua carne dilacerada pelos grossos espinhos. Não havia condição de parar para passar remédio; prosseguiram na marcha, lentamente, extenuados, esgotados pela longa caminhada. Dias depois ele apresentou febre alta, delirando e no rosto um riso estranho, quase um esgar, um eterno sorriso e os músculos endurecidos. Sofreu por muitos dias, sendo carregado por grupo de negros; eles não podiam parar, pois um atraso lhes custaria a liberdade tão sonhada!
Até que o negro morreu, vítima que fora do tétano… seu corpo foi também enterrado na mata, mas não deixou cruz para não deixar marca de sua passagem. Os fugitivos nem choravam mais: suas energias há muito, se haviam esgotados!
Afinal, rasgados, famintos, doentes, enfraquecidos, chegaram a um monte, em cujo cimo havia uma fortaleza feita de pedras, trabalho da natureza, onde eles podiam esconder-se tranquilamente. Perto havia uma linda queda d’água, onde poderiam banhar-se e saciar a sede. Na mata próxima caçariam e colheriam frutos para sua alimentação. No rio pescariam e assim, ficaram animados com a possibilidade de sobreviver.
Quando Mateus verificou a segurança das instalações chegou em meio à fortaleza, ergueu os braços para o céu em agradecimento aos deuses pelo achado e deu grito que o faria reconhecido em toda a história do Quilombo:
— Ê… ê… ê… nego venceu! Nego num tem sinhô! Nego é livre, Olorum meu pai!
Sua voz máscula e harmoniosa soou sinistra e poderosa pela fortaleza e ecoou bem mais longe, na floresta. Estava fundado o Quilombo de Mateus!
Alguns dias depois, com tudo já ficando arrumado para a nova vida que deveriam enfrentar, resolveram dar um nome ao novo Quilombo. Na votação, ficou escolhido um nome interessante: como ele estava sendo formado de início pelos escravos do barão de Limeira e os do visconde de Pedra Branca, os negros juntaram tudo e batizaram o Quilombo da LIMEIRA BRANCA.
Aos poucos foram refazendo suas vidas, com trabalho, suor e cansaço, mas com liberdade e ordem, sob a liderança vigilante e carismática de Mateus, na realidade, um grande líder!
*****
Na África, na parte mais alta da cachoeira dos Tremembés, jazia Kenakê desmaiada. A dor e a tensão da sua atitude haviam esgotado e ela sucumbira à força mais poderosa. Mas não chegara a pular! Mali aproveitou seu desmaio e subiu pela correnteza os oitenta metros de queda d’água que a separavam da amiga. Ficou velando o seu retorno à vida, acompanhada de várias amigas e de duendes pequeninos preocupados com os acontecimentos. Eles velavam em silêncio. Muito tempo depois, Kenakê abriu os olhos, como se voltasse de muito longe, olhou em volta, vendo tudo turvo e confuso, sem se lembrar de onde estava, do que fazia ali no meio do mato. Aos poucos, o ruído da queda d’água fez-lhe voltar a memória. Quis levantar-se e neste instante viu Mali que lhe sorria ternamente. Kenakê compreendeu tudo; baixando a cabeça envergonhada, pediu desculpas a amiga de todas as horas:
— Mali, acho que fiz o que não devia… eu… eu não posso viver sem Kalbe! E Kenakê voltou a soluçar.
Mali ouviu o seu desabafo, deixou que ela chorasse o quanto queria. Depois, cansada, ela limpou os olhos com as costas das mãos como os bebês. Olhou para Mali e pediu:
— Preciso de força, de força para prosseguir sozinha!
— Ninguém está sozinha no contexto da vida; é só olhar em torno e logo milhares de criaturas estarão a nossa volta! Kenakê tem os filhos, os netos e o amor de Kalbe. Tenho certeza!
Kenakê fitou nela os olhos grandes. Perguntou, uma leve esperança na voz:
— Como você tem tanta certeza?
— Acompanho Kalbe desde que partiu, toda vez que me é possível; sei dos seus sentimentos. A mulher que ele tomou, sabe que jamais será mais do que você! Recomece sua vida, rainha, seu povo quer vê-la novamente sorrindo e feliz! Deixe que as coisas cheguem em seu tempo certo… a vida é um caminhar entre pedras, pedregulhos e espinhos. Saiba afastá-los de si no momento oportuno!
Kenakê ficou emocionada com a sabedoria da amiga. Sentia agora uma chama de força em seu coração e um fio de esperança no futuro. Não, ela não queria morrer! Decidiu. Simplesmente, como tudo que fazia na vida, sorriu para Mali e prometeu:
— Obrigada minha irmã! Vou voltar à minha aldeia e caminhar tranquilamente, retirando os espinhos do caminho… esperarei pela vontade de Olorum… obrigada! Obrigada a todos vocês que me ajudaram tanto!
Jogando beijos com as mãos, a moça desceu vagarosamente, com cuidado, o caminho de volta, descendo mais rapidamente quando não havia mais perigo de um escorrego. Mali descera pela cachoeira, salpicando água e deslizando ligeira, desaparecendo como sempre, um sorriso feliz nos lábios, antes contraídos e tensos. Ela sabia que Kenakê era corajosa e forte; ela confiava na amiga. Todos têm seu momento crítico: aquele fora o da rainha.
Kenakê voltou para casa mais forte e voltou a sorrir! Ninguém sabia o mistério daquele milagre, mas todos ficaram felizes com ela…
Voltava à sua vidinha tranquila com os filhos que lhe restavam e os netos.
Zungali fez um Conselho de anciãos e foi decidido, já que Kalbe não retornava, que sua mãe se casasse com um dos guerreiros da tribo. Tizo, a esta altura com quatro mulheres, candidatou-se. Ele era alto e belo, mas não tanto quanto Kalbe, mas parecia muito com o irmão e, apaixonara-se pela cunhada desde que o noivado do irmão fora anunciado. Assim ele, usando de suas prerrogativas do irmão do rei, pediu a mão da rainha e o Conselho aprovou.
Kenakê consultada, quis recusar, mas os filhos acharam que uma nova união seria o único meio de fazê-la voltar a ser feliz… Tizo uma tarde em que passeava com a cunhada na aldeia, prometeu-lhe:
— Kenakê, pequena pantera, você vai ser minha primeira esposa; jamais será concubina!
— Eu sei Tizo. Mas… e seu rosto triste emocionou o cunhado.
— Mas… o que?
— As recordações de Kalbe não me saem da cabeça… não serei uma boa companheira! E estimo você muito, não quero fazê-lo infeliz.
— E não vai fazer! Disse o rapaz rindo. Sou feliz por natureza. Ninguém pode me fazer infeliz… você é uma pessoa maravilhosa, Kena, ao seu lado serei o mais feliz dos mortais!
Ela pensou um pouco; depois, compreendeu que não tinha porque recusar. E respondeu resoluta:
— Está bem, aceito!
E quando o casamento se realizou, Kenakê procurou ser uma boa esposa para Tizo; mas nunca conseguiu entregar o seu corpo com a doação que havia entre ela e Kalbe. Mesmo assim fez de Tizo um homem verdadeiramente feliz, com sua ternura, com sua capacidade de encantar as pessoas.
Assim, na mesma época em que Kenakê se casava na África, Kalbe no Brasil fundava o Quilombo e iniciava a sua carreira de herói…
Mariana e Tomaz se amavam em silêncio e Mace e Ugatu tiveram uma filhinha que se chamou Kenakê, uma brasileirinha negra e livre, nascida em pleno sertão dos diamantes, a primeira criança gerada e nascida no Quilombo de Kalbe.
*****
Na fazenda, Paulo dera a ordem para o feitor buscar os fugitivos e seguiu para encontrar os pais não sem antes conversar com o médico sobre os cuidados com os escravos que haviam sobrevivido ao massacre do feitor. Pediu-lhe que ficasse alerta caso algum escravo fosse encontrado.
Ele ia pelo caminho revendo a cabecinha alva de neve de pai Yoyô, e relembrava as suas últimas palavras… e ficava cismado na bondade de coração daquela gente, que mesmo morrendo preso a um tronco e apanhando, nenhuma palavra de revolta ou ódio abrigava em seus corações.
O barão voltou com a família logo que recebeu a notícia levada pelo filho. Com a fuga da maioria de seus escravos e a morte de alguns deles, o barão perdia muito dinheiro, o prejuízo era grande. Os braços fortes da lavoura, os melhores haviam fugido. As mulheres mais trabalhadeiras, também; só haviam ficado os velhos e fracos… o barão e o visconde entraram em desespero: em ambas as fazendas, o desespero era total!
Tomaz sentia uma saudade infinita do pai e dos tios. Havia sido interrogado, mas sua saída era sempre:
— Num sabia de nada “seu” feitô; num istava nem aqui…
Mas o feitor baixava o sarrafo. Até que Paulo e Eduardo passando pelo local do castigo, mandaram que o feitor parasse:
— Não bata em escravo nosso sem nossa ordem! Dissera Paulo. Veja lá o que você faz…
— Escravo tem que ser castigado. Sinhozinhos nunca mandam castigar… replicara o feitor, mas obedecendo imediatamente, pois sabia a estima do barão pelos filhos. E o chicote deixara de marcar as costas de Tomaz.
Mariana não saía de perto de mãe Nair, que aos poucos melhorava de seus ferimentos. Tivera febre alta, as feridas inflamaram, mas Mariana a cuidara com tanto amor, que a negra melhorava a olhos vistos.
Tomaz estava sempre por perto. Trocaram olhares e às vezes até aperto de mãos corridos, quando sinhazinha pediu toalhas umedecidas em água de laranjeiras para limpar o corpo da negra, pegajoso com o suor da febre… nestes momentos, ela, ao pegar a toalha das mãos do rapaz, deixava que suas mãos ficassem juntas e os dois sentiam-se no paraíso!
Mãe Nair ficou finalmente boa, embora chorosa com a morte de Maria Conga, sua amiga, companheira de cativeiro. Também chorava por pai Yoyô que tinha vindo com ela na mesma leva de escravos. Nair já estava boa e já podia ir com sinhazinha sentar-se na varanda, olhar o jardim, ver o riacho correndo, ladeando a casa, cantando aquela musiquinha de que ela tanto gostava.
E com o prejuízo, o casamento de Mariana foi mais uma vez adiado; e o coração da moça ficou feliz e tranquilo: ela podia calmamente viver seus pequenos momentos de amor.
A vida da família aos poucos, voltava ao normal.
A vida no Quilombo ia se ajeitando acrescida da chegada de novos negros que acorriam ao local em suas desesperadas fugas para a liberdade!
*****
Novas levas de escravos chegaram: o barão e o visconde refizeram seus prejuízos. Eles haviam dado busca em toda a região e nada haviam encontrado; os escravos haviam desaparecido como azougue. Aparentemente, haviam desistido da procura. Resolveram então marcar o casamento de Mariana e enviar Paulo e Eduardo para estudarem na Europa. Ficara decidido na noite da reunião familiar que os rapazes levariam apenas um escravo para servir-lhes na França: Tomaz.
O coração de Mariana gelou. Em seguida, o barão, com voz calma, porém, resoluta, declarou:
— Quero resolver também o casamento de sinhazinha. Vamos marcar para antes da partida. Amanhã irei à fazenda do visconde e combinaremos uma data antes da viagem de vocês para que participem do acontecimento.
— Não quero casar, meu pai! Declarou Mariana, reunindo todas as suas forças.
— Como, está louca? Perguntou dona Francisquinha fingindo um desmaio. Que vergonha!
— Deixe de besteiras, menina. Vai casar sim! Dei minha palavra e… basta! Berrou o barão colérico.
— Não gosto do visconde e não quero me casar sem amor… suplicou a moça angustiada.
— Isso são bobagens de romance. O amor vem depois. O visconde é jovem, rico, nobre e você logo aprenderá a amá-lo. Sempre tem sido assim… deixe-se de bobagens! Vou marcar logo a data para daqui a um mês! Está bem assim, senhora baronesa?
Dona Francisquinha não sabia se desmaiava ou se participava da cena. Resolveu intervir e procurando tornar forte a voz disse sem relutância:
— Claro, senhor barão. Pode ser para você, minha filha? E adoçou a voz.
— Não; não quero me casar com o visconde. Mas se for obrigada, não tenho outro recurso senão obedecer! Ou tenho? E Mariana olhou um a um, os familiares que a fitavam boquiabertos.
— Tolices de moça romântica! Isso é que é! Fica a ler essas baboseiras que alguns idiotas escrevem por aí… repetiu o barão nervoso.
— Minha irmã, você ama a outro rapaz? Perguntou Paulo com carinho.
Mariana sem querer, por uma fração de segundos, olhou Tomaz. Este a fitava lívido. A moça cravou em Paulo seus olhos doces e falou com emoção:
— Talvez…
Um murmúrio de mal estar perpassou pela sala. Paulo insistiu:
— Quem é então este eleito misterioso que nos roubou o coração de sinhazinha?
A moça olhou furtivamente para Tomaz. Baixou a cabeça quando percebeu o sofrimento do escravo. Depois levantando-a, olhou resolutamente o irmão e respondeu?
— O nosso maior amigo.
— Quem? Perguntou o barão animado pela possibilidade de ser um bom candidato. Algum conde ou barão? Algum parente aquinhoado pela fortuna? Quem, minha filha?
Tomaz esperava desesperadamente. Suas pernas tremiam mal grado sua vontade férrea sussurrar-lhe a necessidade de calma.
A moça novamente olhou uma a uma as pessoas da sala; olhou para Tomaz e na linguagem muda que os dois haviam aprendido a falar desde que souberam que se amavam, ela explicou:
— Se eu não posso ser sua, não serei de mais ninguém! E olhando o pai com ternura, respondeu:
— Agradeço de coração o carinho de meus irmãos; sempre soube que contaria com eles em qualquer circunstancia. Meu pai consentiria em meu casamento se fosse com algum candidato rico mesmo se não fosse o visconde?
— Claro, minha filha, se for digno e de preferência nobre, concordo!
— E se for pobre, não poderei casar?
O barão estava perplexo: jamais ninguém desobedecera suas ordens. Pensou uns instantes e depois decidiu:
— Não; uma baronesa não pode casar com um pretendente socialmente inferior a ela. Você é uma baronesa, lembre-se!
Havia uma raiva contida em sua voz.
— Mas meu pretendente é pobre, muito pobre…
Tomaz estava petrificado. Mal respirava. Olhava-a furtivamente, mas a tranquilidade dela deixava-o louco. Já se via no tronco, capado e morto; estirado numa lama de sangue!
— Jamais consentirei nesta loucura! Rugiu o barão.
— Mas eu quero, papai. Meu pretendente é…
— Diga logo, menina, pelo amor de Deus! Gemeu a baronesa, tremendo toda, as carnes moles balançando.
— Diga maninha, nós vamos ajudar a você! Falou Eduardo tomando as mãos de Mariana.
Paulo também aproximou-se e abraçou-a, dizendo:
— Coragem, maninha, somos seus amigos!
— Barão, disse o feitor entrando estouvadamente sala adentro, sem sequer pedir licença: mais escravos fugiram!
— Não é possível, berrou o barão. Alguém quer me arruinar! E puxando os cabelos, desesperado, saiu como um furacão acompanhado do feitor, da mulher e dos filhos que se entreolhavam preocupados…
CAPÍTULO 28.
A DECISÃO DE MARIANA
No Quilombo a vida prosseguia numa sucessão de dias rotineira, calma e iguais. Eles iam à cata de diamantes e às vezes conseguiam bom dinheiro pelas pedras que vendiam. Isto melhorava o conforto da comunidade. Trabalhavam duramente. Mace cuidava da filha, Bastiana tinha agora uma menina e um menino e todos cuidavam da comunidade. Haviam consertado a fortaleza e dado a ela um aspecto de lar. Tudo ali estava arrumado e organizado; Mateus era um rei nato e sabia liderar: tratava os homens com brandura, mas seu olhar bastava para que todos cumprissem sua tarefa a contento. Tertuliano liderava ao lado do cunhado com força e desprendimento. Vários outros negros fugitivos de fazendas vizinhas que encontravam no mato, vinham ser acobertados ali e encontravam roupa e alimento no alto da serra em meio à fortaleza de pedras gigantescas, cortadas à pique, verdadeiras montanhas. Assim, o Quilombo passou a ter outro nome: o Quilombo das Pedras Grandes.
O tempo passava, as crianças cresciam, os homens e mulheres trabalhavam duramente, lavrando a terra, caçando e pescando, mas… eram livres! E que preço é muito grande para a liberdade?
Desde manhazinha cedo quando o sol nem sequer despontava no horizonte, os negros levantavam-se e iam arar a terra; à noite, iam em grupos à cidade mais próxima em meio ao sertão baiano buscar víveres. Haviam alguns negros forros, enriquecidos com a cata de diamantes com quem trocavam leite, café, pão, farinha e carne de gado por caça ou peixe. Não demorou muito e eles conseguiram uma vaca. Depois, outra, até que aos poucos foram conseguindo leite na própria fortaleza!
Lavraram a terra e já tinham horta e pomar; os negros das cidades próximas, os alforriados e alguns brancos abolicionistas ajudavam sempre no anonimato com mantimentos, animais ou outras ajudas que eram de grande valia.
Começaram uma criação de porcos, de bode e cabras, de boi e vaca: construíram currais. Lutavam de sol a sol, mas viviam felizes; respeitavam-se e aprenderam a ser unidos. Ninguém saía sozinho ou se afastava da fortaleza e desenvolveram instrumentos para sinais de alerta, na chegada e na saída. Jamais abriam a porta sem o sinal combinado ou conversavam com estranhos. Assim iam vivendo numa comunidade que prosperava, que crescia em meio à vegetação agreste do sertão.
Uma tarde, estavam Mateus e Tertuliano conversando, sentados à porta da palhoça que habitavam, como faziam na África na hora do crepúsculo. Tertuliano olhava-o preocupado e perguntou naturalmente, sem demonstrar seus temores:
— Ocê inda pretende, irmão, vortá à nossa terra?
Mateus olhou-o no fundo dos olhos, com seu olhar triste, saudoso e distante. Pensou por uns momentos, suspirou profundamente e respondeu, quase num sussurro:
— Bem que eu gostaria, Tertuliano. Mas estamos tão longe! Como sair daqui e chegar até à África? Não será isso igual a chegar ao fim do mundo! Qual, acho que nunca mais vou ver minha Kenakê! E chorou, a cabeça entre as mãos, toda a sua amargura.
— Não fique assim, meu irmão, retrucou Tertuliano, falando em sua língua natal, como Mateus. Quem sabe, um dia? Talvez.
— Não, não me engano; respondeu Mateus. Alguma coisa me diz que jamais voltaremos… estamos ficando velhos, meu irmão! Responda, por favor, você crê mesmo em nossa volta?
Tertuliano pensou por um momento; depois, penalizado com a expressão de dor do cunhado, respondeu:
— Não sei…
— Está vendo? É longe demais, Ugatu…
Bastiana chegou à porta e chamou com sua voz melodiosa de contralto:
— Vamo! A comida istá na mesa!
— Já estamos indo, falou Tertuliano e, baixinho para o cunhado: não desanime, irmão! Um dia veremos de novo nossa aldeia e você sua Kenakê.
— Às vezes eu me ponho pensando, disse Mateus como se falasse consigo mesmo, se ela ainda estará viva, se não se casou com outro homem… talvez Tizo, meu irmão, ou quem sabe algum rei de outra aldeia… e meus filhos como estarão? E Tomaz, escravo de um amor tão louco? Escravo do corpo e do coração… olhe, Tertuliano, sofro muito com todas essas coisas; minha dor é bem grande: sou um homem dividido… veja a responsabilidade imensa que temos com este Quilombo! Somos nós os responsáveis por toda essa gente?
Tertuliano pensou um pouco. Fitando Mateus com seu olhar doce, respondeu:
— Não sei…
****
Kenakê compreendia que Tizo fazia um esforço enorme para fazê-la feliz. Juntos caçavam, nadavam, visitavam Muriatã, Tara e Luta. Iam frequentemente às palhoças dos filhos e filhas de Kenakê e dele, procurava-a constantemente para os jogos de amor e ela a tudo se submetia para dar felicidade ao marido. Mas seu coração e seu pensamento nunca se haviam se desligado de Kalbe. Mesmo na esteira, quando Tizo a abraçava e puxava-a para si querendo sexo, uma dor aguda enchia seu peito e as recordações eram tão fortes que ela sufocava. Hábil e fogoso, ele, entretanto sabia conduzi-la de tal jeito que Kenakê acabava sendo perfeitamente feliz em seus braços.
E a vida ia correndo normal entre as aldeias de Zungali e de Muriatã.
****
O feitor voltara das buscas desesperado. Onde, diabos metiam-se estes negros malditos que nem sombras deles se via no mato? Voltara ferido pelos espinhos, sujo, faminto e cheio de ódio! Mas os escravos não apareciam.
O barão entristecido pelas perdas, reuniu a família novamente pra resolver o casamento de Mariana.
— Minha filha, o visconde tem me pressionado, querendo marcar a data do seu casamento; aceite, de uma vez por todas!
Mariana perguntou:
— Meu casamento salva meu pai da derrocada financeira que a fuga dos escravos acarretou para nós?
— Não, respondeu o barão, ainda somos muito ricos! Disse com orgulho. Além do mais, o visconde tem tido mais prejuízo até do que eu.
Então Mariana levantou-se do banquinho do piano onde estava sentada minutos antes tocando, ajeitou as saias rodadas, beijou com carinhos os irmãos e, com um sorriso inexprimível para Tomaz que ouvia ansioso a conversa dos senhores, respondeu com calma e dignidade.
— Só poderei casar com um homem nobre e rico, mesmo que não o ame; não poderei casar com um homem pobre, mesmo amando-o. Certo?
— Mariana! Reclamou a baronesa impaciente. Você já sabe demais sobre isto. Já conversamos bastante!
A moça sorriu um riso triste. Chegou bem em frente ao barão e beijou-o na testa. Falou de maneira terna e com voz pausada:
— Não quero por nada deste mundo magoá-lo papai, nem à senhora, mamãe, nem aos meus adorados irmãos! Mas tenho que seguir os anseios do meu coração.
Todos ouviam em silêncio. Tomaz tremia sem conseguir controlar a emoção. E Mariana vendo a expressão de dor de Tomaz, finalmente falou:
— Sim, meu pretendente é o nosso maior amigo e é muito pobre… Ela olhou em volta para ver a reação às suas palavras. Depois, calmamente continuou: este maior amigo e sem riquezas é o amor ideal: é Cristo!
— Como? Perguntou a baronesa idiotamente.
— Isto mesmo, minha mãe: quero entrar para um convento! Lá encontrarei minha paz, minha felicidade. Não é isto que o senhor barão e a senhora baronesa querem para mim? Pois é também o que mais quero! Desejo pertencer a um convento de freiras que se dediquem ao ensino: gostarei de passar minha vida dedicada a Jesus, ensinando às crianças.
O barão parecia ter recebido uma ducha gelada. Não conseguia voltar a si do espanto. Depois de pensar algum tempo, perguntou com frieza:
— Esta é sua última decisão?
— É… disse Mariana agora abraçada pelo irmãos.
— A decisão dela deve ser respeitada, concluíram os dois rapazes.
— Que pena, já pensava em ver meus sobrinhos correndo pela fazenda e brincando no riacho! Brincou Paulo.
— E eu, completou Eduardo. Mariana vai fazer muita falta nesta casa… uma menininha doce como você, minha irmã, para nos chamar de tios…
— Lamento, meu amores, decepcionar vocês… mas a maninha vai viver em um convento; lá ensinarei a cartilha às suas filhas e possivelmente às filhas dos seus filhos e nos veremos sempre. As crianças de vocês dois, no futuro, encherão esta casa de alegrias infantis; seu riso fará rapidamente esquecer a triste sinhazinha que por aqui passou.
— É sua última decisão, minha filha? Perguntou mais uma vez o barão estupefato.
— É, meu pai. Quero que o senhor desfaça meu noivado e me leve até as freiras para que eu decida para onde devo ir.
Mãe Nair chorava abraçada com sua filha branca. Somente ela sabia o segredo daquele coração maravilhoso.
— Desde quando você tem estas idéias, Mariana? Perguntou d. Francisquinha ainda surpresa com o acontecido.
— Não, sei, mamãe, creio que há algum tempo… mas isto não importa agora, sei que meu coração está feliz.
— Freira? Estranhou Paulo perplexo. Você gostaria mesmo de ser freira mana?
Mariana sentiu que podia contar com o irmão. Por isso arriscou:
— Sim; prefiro ser freira, do que casar sem amor.
— Mas ser freira pode fazê-la feliz? Perguntou Eduardo com carinho. Mariana, você não precisa entrar para um convento, só porque não quer aceitar um casamento que nossa família lhe impõe! Papai é um homem bom e compreensivo; você conta com seus irmãos. Veja bem, mana. Pense! Convento é para o resto da vida… e você é moça bonita… não quer tentar outra saída?
Todos olharam para ela, uma esperança vaga nos olhares. Mariana sorriu de leve, um ar triste envolvendo-a. Olhou para o pai temerosa. Ele repetiu:
— Tolices de moça romântica! Tolices.
Ela compreendeu então que sua decisão não tinha retorno…
Algum tempo depois, despedaçando o coração de mãe Nair, Mariana entrou no convento, pois o seu próprio coração já estava há muito destroçado.
Antes de partir para a Europa, Eduardo e Paulo foram assistir os primeiros votos da irmã. Mariana vestida de noiva, trêmula, entregava sua alma e seu coração ao Cristo, quase como se pedisse a ele perdão por seu amor impossível.
Alguns anos depois, mãe Nair morria, levando consigo o segredo daquele amor tão puro e triste.
CAPÍTULO 29.
UM HERÓI – UM REI – UM LÍDER!
Eduardo e Paulo já estavam terminando os estudos na Europa quando a Abolição foi assinada. Tomados de emoção, ambos pegaram Tomaz e foram festejar com ele, pelas ruas e cafés a grande vitória de sua causa. Foi ai que Paulo perguntou a Tomaz:
— Você quer voltar a sua aldeia, ou quer vir conosco para o Brasil? Você agora é um homem livre!
Tomaz pensou um pouco e respondeu:
— Tenho vontade de voltar, sinhozinho, pois gosto muito de meus senhores, do Brasil e da Bahia. Mas… já não vou achar mais meu pai nem meus tios. Meu pai sempre me ensinou que sou rei e que tenho o dever de voltar para minha aldeia e lá assumir meu lugar, falou Tomaz com a linguagem perfeita que aprendera com Mariana e que aperfeiçoara nos colégios franceses em que os senhores abolicionistas ferrenhos o colocaram… Se os senhores não se incomodam… e Tomaz fez um sinal com as mãos indicando sua incapacidade de decisão para não magoar a quem estimava tanto e a quem era tão agradecido… Ele, que pretendia servi-los até o fim de sua vida…
— Claro que compreendemos, falou Eduardo. E se você se arrepender por qualquer motivo… volte para o Brasil que nós o recebemos de braços abertos!
Paulo reforçou:
— Cumpra a palavra dada a seu pai, meu amigo! Mas se as coisas não forem como você espera… então volte, pois onde estivermos, haverá sempre um lugar reservado para você! Poderá trabalhar em nosso escritório ou consultório, como queira. Hoje você tem cultura, não lhe será difícil encontrar emprego. Até professor de francês, pode ser, meu rapaz! Não se esqueça de que de hoje em diante, é um homem livre! E Paulo bateu amistosamente sua mão espalmada no ombro de Tomaz.
Os três choravam emocionados. Paulo ainda comentou:
— Até que enfim meu país se libertou desta nódoa!
— É mesmo, Paulo! E papai? Coitado? Vai ficar pobre!
— Ih! É mesmo! Ainda não tinha pensado em papai… O velho deve estar abaladíssimo! Mas, sabe de uma coisa? Ele tem terras, propriedades, pode muito bem pagar a seus empregados. Acho que não ficará pobre, não! Nós dois estamos voltando com diplomas em baixo do braço, você médico e eu advogado, vamos trabalhar duro e compensar o velho de seus problemas de agora. Sugiro que brindemos ao Brasil, à Bahia, a Cachoeira, à princesa d. Isabel, aos ex-escravos brasileiros, a nós próprios e a nossa volta!
— Com tanto brinde, o porre vai ser para valer! Disse Eduardo, brindando ao Brasil, e rindo a bom rir, descambando a cabeça para trás num gesto de quando estava feliz. Já pensou, Tomaz, quando Mariana vir você?
— Sinhô? Perguntou o negro espantado. Ele nunca havia deixado de chamar os senhores como antigamente. A sinhá moça? Um arrepio de medo perpassou pela espinha de Tomaz.
— Sim, quando ela ensinava a você na casa grande sempre elogiava sua inteligência; agora com o curso de humanidades e falando o francês fluente que você fala, a maninha vai saber que estava certa quando acreditava em você!
Tomaz respirou aliviado. Sim, a sinhá-moça! Ele agora era um homem livre! Podia trabalhar, ganhar dinheiro, subir na vida! Poderia até comprar um título… Mas, era tarde demais! Ela havia feito os votos perpétuos! Mariana jamais poderia ser sua… Nesta hora, Tomaz compreendeu que era melhor para os dois se ele voltasse para a África.
Realmente o porre daquele dia foi o maior de suas vidas: euforia dos sonhos realizados, a felicidade das conquistas profissionais foram motivação bastante para tal…
Dias depois, Eduardo e Paulo voltaram ao Brasil. Tomaz foi levá-los ao navio e foi com muita saudade que os viu sumindo no horizonte, em Portugal. Ficara com dinheiro suficiente para voltar para casa, passar lá uns tempos e retornar ao Brasil, caso quisesse. Nessa mesma tarde, Tomaz embarcou num navio de volta à sua pátria!
****
No Quilombo, os ex-escravos já tinham uma verdadeira cidade; até professora haviam conseguido: uma negra alforriada que estudara e subia três vezes por semana para dar aulas durante o dia às crianças e à noite aos adultos. Eles jogavam capoeira, e Mateus era o mestre dos mestres, pois sempre fora capoeirista de fama, o que lhe valia aquele jeito felino de ser. Faziam candomblés, com os orixás com muito carinho. E foram aperfeiçoando a religião que transmitiram ao povo brasileiro.
Na cozinha Benedita e Bastiana lideravam, com muito dendê, milho e côco: era acarajé, abará, vatapá, caruru, moqueca, nunca esquecendo as comidas dos santos.
E foi na magia da raça negra que se plasmou o sincretismo religioso do povo brasileiro e o gosto das comidas picantes em que passa toda força desta raça cuja capacidade de doação foi tão grande que nos legou seus mistérios no leite, no esperma, nas placentas, no suor, no sangue, nas danças, nos cantos, o culto religioso e no tempero especial.
As crianças nascidas no tempo da formação do Quilombo já estavam grandes, Kalbe tinha alguns fios de cabelo branco lhe branqueando as têmporas. Estava mais belo e mais forte, pois sua sabedoria e sua liderança haviam ganho em experiência durante todos aqueles anos de lutas e observações. Seu Quilombo era uma realidade bem sucedida. Sua gente vivia em paz, em liberdade; ele podia se considerar um homem feliz… não fossem as saudades.
Algum tempo antes da Abolição, uns escravos que pretendiam fugir para o Quilombo, comentavam sua fuga e não perceberam que Isabel, a negra que na época continuava sendo a preferida do senhor barão, de quem recebia roupas de seda, perfumes e enfeites, embevecida com o luxo, prendendo cada vez mais o velho com sua sensualidade desenfreada de mulher jovem e faceira, ouvira a conversa. Apurando os ouvidos, sem se deixar perceber, quando, na noite seguinte o barão chamou-a para a cabana, ela, após ter satisfeito o barão com todas as coisas imagináveis que ele insaciável lhe pedia, contou todos os planos de fuga que ouvira…
O barão e o feitor levaram uma semana programando a revanche. Até a polícia estadual entrou na jogada. Os homens iam armados até os dentes ao encalço dos negros. Pareciam que iam caçar bandidos altamente perigosos!
Tranquilos, vivendo sua vidinha comum, organizada, os nossos negros nem mais pensavam em ser caçados. E numa manhã em que saiam alegres para a caçada, de surpresa, chegou o grupo armado! Eles surgiam de detrás das pedras, como loucos! Haviam seguido os negros que pretendiam fugir, os prenderam e obrigaram a levá-los ao encontro do Quilombo, a esta altura mais aumentado pelas fugas frequentes dos escravos de toda a vizinhança. Sem esta situação eles jamais encontrariam os negros, pois a fortaleza era totalmente escondida no mato, bem no alto do morro, protegida pelas pedras gigantes, de muito difícil acesso! Pegados de surpresa, eles lutaram como loucos, como heróis, liderados por Mateus e Tertuliano, que na frente, eram alvos fáceis das balas assassinas. Mateus sempre ordenava que mesmo que saíssem a passeio, os negros andassem armados para qualquer eventualidade. Sua orientação agora os ajudava. Eles compravam, munição aos negros forros. Respondiam as balas à altura; lutaram até a morte… Mateus treinara seu pessoal para uma situação daquelas. A um sinal seu, eles foram engatinhando, pelas pedras e a um grito convencionado, entraram correndo e as portas se fecharam. Eles estavam salvos na fortaleza, Mateus, porém, como líder, ficou por último dando cobertura a seu povo. E o feitor, por vingança, com os olhos brilhando de ódio, exatamente quando Mateus ia entrar pelo grande portão de pedras, alvejou-o duas vezes no peito! Mateus com muito esforço conseguiu entrar e caiu desmaiado dentro da fortaleza. Com a porta fechada, estava salvo o Quilombo! Dali os homens continuaram atirando, até que dispersaram os homens do barão e do visconde! Mateus antes de desmaiar sentira um frio no peito e logo percebeu o sangue jorrando em borbotões pela sua boca. Gritou Tertuliano quase sem forças:
— Não se entregue, Tertuliano! Lute até o fim… e… salve nossa gente! Nos…sa…gente…te… louvado… se …ja… Olo… rum!…
Tertuliano ainda teve tempo de sussurrar-lhe ao ouvido:
— Os homens armados desistiram, foram dispersados! E Felipe vingou você: matou o feitor!
Kalbe sorriu: estava salvo seu Quilombo!
Bastiana desesperada havia acorrido para abraçar o marido. Ainda o ouviu balbuciar num murmúrio:
— Nunca mais vou… ver… Kena… kê…
E desmaiou novamente, agora para não despertar jamais…
Foi assim, num rio de sangue, que Kalbe, deu seu último suspiro, num adeus sofrido à vida a qual amara tanto! Morreu como líder, herói e deixou no sangue dos seus filhos e no coração do seu povo o respeito e a veneração pela sua coragem e pelo seu carisma!
****
Na África, Kenakê tomava banho no rio com a família. Tizo jogava água nela e ela corria sorrindo para defender-se do ataque. De repente, Kenakê soltou um grito horrível, arregalou os olhos e disse em voz estertorosa:
— Kalbe, meu Kalbe, você está ferido! E desmaiou, nunca mais voltando a si.
Mali, penalizada com a dor da amiga, puxou-a rapidamente e levou-a morta, para o fundo do rio, que ela tanto amava… e ali mesmo, em meio ao espanto geral, em fração de segundos, Kenakê desapareceu…
Quando Tizo e os filhos voltaram a si do espanto, nada mais havia a fazer… Todas as buscas foram infrutíferas: o corpo de Kenakê jamais foi encontrado!
Os negros, em sua credulidade, ora imaginavam ter sido algum peixe gigante, ou os encantados de que se acreditava piamente que Kenakê fosse descendente!
Foi, pois, neste clima de tristeza e dor, que Kalila surgiu novamente para sua família.
****
No Brasil, ninguém mais poderia invadir o Quilombo que Mateus fundara com tanto amor: fora assinada a lei da Abolição da escravatura! O Quilombo estava livre!
CAPÍTULO 30.
O RETORNO DE KALILA
A viagem de volta para a pátria fora longa e cansativa; mas agora era livre, ele comprara passagem, podia passear no convés, ver as pessoas, falar com elas, trocando idéias, alimentar-se sofrivelmente! Kalila deixava-se ficar olhando o mar, relembrando os últimos anos de sua vida: a viagem no navio negreiro, o encontro com a tia, a vida em Salvador, o contato com os outros escravos, a fazenda Pitanga, ah! Suas recordações de amor! Revia Mariana, tomando banho no riacho, sacudindo os cabelos molhados, sorrindo, correndo pelos campos, cavalgando, confessando que o amava. Relembrava aquela tarde terrível em que ela decidira entrar para convento.
Revia Mariana toda de branco na igreja… jamais ele esqueceria o olhar em que ela lhe passou toda a amargura do seu amor impossível, quando subiu ao altar para fazer seus votos… Kalila lembrava a dor intensa que sentiu no peito quando percebeu que perdia para sempre a mulher amada.
Revia Mariana deitada no chão, e alguém cortando seus cabelos longos e sedosos, tão bonitos! E a cerimônia simples da feitura dos votos. Não poderia agora, voltar atrás!
Depois, quando partira para a Europa fora com os senhores até a igreja para as despedidas. Ela os recebeu no convento, com sorriso triste, mais tranquilo. Dera a ele, Kalila, uma medalhinha que ele sempre trazia ao pescoço e lhe dissera simplesmente:
— Não se esqueça, Tomaz, sempre estarei rezando para que você seja feliz.
— Num vou isquecê, sinhora… e a emoção não lhe deixou falar mais nada.
Também, Eduardo e Paulo beijavam e abraçavam a irmã em despedida; que poderia um escravo dizer mais à sua sinhazinha?
Agora Kalila visualizava as costas da África. Fora difícil cumprir a palavra empenhada ao pai de que um dia voltaria. Kalila sentia-se agora um estranho naquela terra tão verde e tão parecida com o Brasil; lá deixara seu trabalho, seu suor, seus parentes e, sobretudo seu amor! Mariana, a doce Mariana! E ali, o que encontraria?
Levou dois dias do cais do porto até sua aldeia. Chegou cansado, mas sentiu alegria ao rever os lugares que conhecia tão bem.
Chegara numa montaria alugada no cais. Era de manhã e as crianças brincavam pelo terreiro; algumas mulheres cozinhavam, outras limpavam suas palhoças, alguns homens iam e vinham. Logo as pessoas se deram conta de que um estranho, vestido de modo bizarro, estava a olhar a aldeia.
— Seria algum inimigo? Perguntavam alguns.
Kalila mudara muito nestes anos de escravidão. Envelhecera, criara barba e bigode, ficara homem maduro. Partira um rapazinho, voltara igualzinho a Kalbe, quando este partira, com aquela semelhança incrível que os dois sempre tiveram. Quando Tizo saiu da palhoça para levar um recado a Zungali, fitou estarrecido o recém chegado.
— Kalbe, pelos deuses! Você voltou!
— Meu tio Tizo! Gritou Kalila correndo a abraçá-lo.
— Então você é Kalila? Mas é a cópia do seu pai. Onde está ele, Mace e Ugatú?
— O pai morreu… os brancos assassinaram nosso rei! Os tios estão no Quilombo que eles fundaram com o pai.
E Kalila, abraçando o tio, chorou copiosamente. Depois voltando à realidade, perguntou ansioso!
— E a mãe, como está ela?
— Também morreu… disse Tizo com voz triste. Venha, venha até Zungali.
Kalila entrou na palhoça dos reis e viu Zungali. Abraçaram-se os irmãos. Logo Zungali mandou tocarem os tambores; toda a família chegou para ver Kalila. Acoeté veio trêmula, encabulada, sem acreditar na volta de Kalila. Ele a distinguiu em meio às outras pessoas e mentalmente comparou a beleza negra e natural de Acoeté com a finura de traços e educação de Mariana. Seu coração balançou e sentiu que embora não mais amasse aquela mulher como antes, havia um elo muito especial e forte entre os dois. Quando ela chegou perto, abraçou-o e disse:
— Que pesadelo Kalila, pensamos que não voltasse nunca mais.
— Eu também… respondeu melancolicamente o rapaz.
Vendo que duas crianças seguravam a tanga de moça, ele perguntou com naturalidade:
— Seus filhos?
Acoeté desvencilhou-se do abraço que ainda a emocionava e respondeu de olhos baixos:
— Meus e de Zungali… você sabe, como manda a lei.
— Lá na escravidão eu imaginava… tinha de ser assim!
— Esperei o quanto pude… nós precisávamos de um rei e o rei precisava de uma rainha… eu já estava preparada.
— E Zungali tinha o olho em você! Mas não importa… Kalbe morreu, Kenakê morreu, Kalila voltou e para quê?
— Não tive culpa, explicou Acoeté. Obedeci!
E saiu chorando.
Zungali veio entrando e voltou a abraçar o irmão.
— Acoeté saiu chorando? Perguntou intrigado. Ela ainda ama você, irmão. O trono e sua mulher são seus: cumpri minha missão! E abraçou fortemente Kalila, dizendo: Quanta saudade!
Algum tempo assim ficaram. Depois, Kalila quis ver um a um, os parentes e amigos. No terreiro, todos sentados, conversaram até o sol nascer.
Kalila contou tudo: falou sobre o Brasil, a Bahia, Cachoeira, a fazenda Pitanga e depois, a Europa, sobre os senhores e os outros escravos. Quando falou em Mariana, seus olhos se encheram de lágrimas.
— E quem era o amor dela? Quis saber Zungali.
— Quem sabe? Ela disse que era um deus dos brancos no qual eles têm muita fé… Mas eu não acreditei nisso não.
Zungali observou o irmão e percebeu que ele suspirava.
— Uma sinhazinha pode casar com um negro escravo na Bahia, Kalila?
— Não, ela vai para o convento e o castigo do escravo é ser capado e morto de pancada no tronco.
— Céus, que gente má!
E Zungali percebeu o segredo do irmão, ficando mais tranquilo quanto a seu amor por Acoeté.
Passaram-se meses e Kalila não se decidira a aceitar o trono nem a mulher. Observava o irmão e compreendeu aos poucos que Zungali era um grande rei, tão grande quanto fora Kalbe. Ele, Kalila, não seria melhor.
Acoeté já não lhe falava ao coração como antigamente. Seus pensamentos voltavam-se para Mariana numa ternura infinita; não achava justo casar com outra mulher se ela o amava tanto, tanto, que deixara o conforto da vida que levava, para envelhecer sozinha num convento frio, sem amor humano.
Seus outros irmãos estavam casados e com suas famílias, as vidas organizadas. Sua mãe não existia mais… cumprira a palavra empenhada ao pai de que voltaria para assumir suas obrigações com o seu povo, sagrando-se rei… mas se Zungali era rei agora de fato e de direito, quem era a pedra falsa naquela barafunda toda, naquele intrincado jogo da vida?
E Kalila compreendeu o quanto ele estava perdido ali na África; habituara-se à civilização dos brancos, ao conforto das casas grandes… e agora, acenava para ele a liberdade; e se voltasse a viver em Salvador, trabalhasse com seus patrões como eles haviam prometido no seu escritório de advocacia ou no consultório, juntasse dinheiro e vivesse uma vida tranquila? E até quem sabe, roubasse Mariana um dia e fugisse com ela para o Quilombo e fosse viver com os tios? E se…
E Kalila ficava horas pensando.
Uma manhã cedo foi até a aldeia de Muriatã e conversou longamente com o avô a quem confiou suas mágoas e suas dúvidas; falou sobre Mariana, explicou como era a vida no Brasil. Falou sobre seus senhores, as promessas que eles lhe haviam feito. Muriatã estava velho, Tara também… Kalila sabia que não os teria por muito tempo… eles também sentiam isto. Kalila concluiu suspirando:
— Acho que estou sobrando aqui Vô, Zungali é um grande rei! O que Kalila está fazendo aqui? Muriatã e Tara irão embora um dia para a cidade da Paz… Com quem Kalila ficará?
Havia muita amargura em sua voz. Muriatã pensou por um momento. Depois, respondeu lentamente, medindo as palavras:
— Kalila não está sobrando em sua terra, entre seu povo. Mas o coração de Kalila ficou lá na terra dos brancos. Poderá um homem viver sem seu coração? Vamos ficar por três dias e três noites na cabana dos reis. Lá receberemos inspiração do que deve ser feito. Kalila não pode ficar aqui sem ser rei… e Zungali é um grande rei.
O grande Muriatã pensou por uns momentos. Baixou a cabeça, apoiou o queixo com a mão esquerda e se deixou ficar quieto, impenetrável. Kalila aguardava. Depois, ele levantou a cabeça, fitou o neto com um olhar profundo e , suspirando, disse:
— Vamos pedir conselhos aos anciões.
Kalila ficou com o avô na cabana dos reis na aldeia de Kalbe. Em compartimentos separados eles nem sequer se viam. Os anciões entravam e conversavam longamente com eles.
Na véspera da saída, Kalila estava insone: era quase madrugada quando afinal adormeceu. Adormeceu e sonhou. Ele estava na beira do rio, era menino e brincava com os irmãos, mas Zungali não estava lá. De repente, de dentro d’água ele viu surgirem Kenakê e Kalbe abraçados, olhando para ele, sorrindo. Kalbe então falou:
— Quis Olorum que Zungali fosse o rei, Kalila. Tua promessa foi cumprida; tua vida te pertence. Vive-a, como melhor te pareça; nós te queremos feliz, filho querido! Estás livre do jugo do poder se ele não te agrada! E Kalbe abraçava-o com a ternura de antigamente, quando estavam juntos.
Kenakê também se chegava a ele dizendo:
— Sê feliz, filho querido; és livre para seguir teu caminho… vai! E beijando-o esfregava seu nariz frio no nariz grande e bem feito do filho. Com a sensação de frio no rosto, Kalila assustou-se e… acordou!
Virou-se na esteira de palha como á procura das figuras tão queridas, mas só ficara o vazio inexorável da morte! Eles não estavam mais em sua dimensão e Kalila não os poderia ver… E nesse momento, o rapaz tomou sua grande decisão:
— Vou voltar para o Brasil!
Contou ao avô e ao irmão Zungali seu sonho e a decisão tomada. Emocionados, foram juntos ao altar e fizeram um culto aos ancestrais. Depois, as duas tribos se juntaram e foi feita uma despedida, no terreiro da aldeia de Kalbe. os tambores rufaram toda a noite. Acoeté chorava pelos cantos. Kalila fingia não perceber.
Na véspera da partida ele foi ao rio rever os lugares tão amados pela mãe, onde nascera. Ali ficou chorando e pensando até o entardecer; se ele fosse como Kenakê teria visto Mali e sua Kenakê que o olhavam silenciosas em muda atitude de prece… mas Kalila nada viu.
Tão absorto estava que nem percebeu Acoeté que chegara timidamente e abraçou-o pelas costas. O rapaz voltou-se e viu a moça negra, bela e elegante, em pé, a seu lado. Perguntou surpreso:
— Você, Acoeté, esposa de Zungali, o rei?
— Zungali sabe; eu amo você! Respondeu ela simplesmente. Ele deixou que eu partisse… isto é… se você me quiser… ele tem quatro esposas, Acoeté não faz falta… ele não tem amor por mim.
— E… e seus filhos? Perguntou Kalila indeciso.
— Eles ficam, a menina será criada pelas mulheres de Zungali e por minha mãe; o menino quer ser rei dos Huaris. Mas Acoeté quer ser rainha no coração de Kalila! Você me aceita?
Aquele amor comoveu o coração terno de Kalila. Quem sabe era dessa felicidade que sua mãe falara no sonho?
Levantando-se, abraçou a moça com ternura. Perguntou ainda:
— E sua filha?
— Mãe cria ela por mim; não posso levar criança nesta aventura! Zungali quer a princesa também.
— Vai ser difícil para você Acoeté… pense bem!
— Acoeté sabe; mas seu coração será feliz com Kalila! Teremos outros filhos… se Kalila quer…
E a moça olhou suplicante para ele.
Ele pensou por um momento. Olhou para ela e viu que tremia de medo e de emoção de ser recusada. Mais cedo ou mais tarde, ele teria mesmo de se casar. Acoeté o amava; ele já fora apaixonado por ela e havia uma afeição muito forte a ligá-los. Para que magoá-la mais?
— Claro que quero! Vamos juntos conversar com Zungali.
Não foi difícil esclarecer tudo: Zungali já imaginava isto desde que o irmão voltara, pois mesmo sabendo-o apaixonado pela mulher branca, compreendera que aquele amor era impossível. E percebeu também que o elo afetivo entre Acoeté e Kalila era ainda, depois de tantos anos e da ausência, muito forte. Não se surpreendeu, portanto com a decisão dos dois. A ele restavam suas outras mulheres.
Muriatã tentou ainda pela última vez, dissuadir Kalila do seu projeto de voltar ao país longínquo. Chegou cedo com Tara e pediu para falar a sós com ele. Conversaram longamente e o avô propôs a Kalila ser rei na aldeia dos Huari-Assés, substituindo a ele, Muriatã… sem herdeiros diretos, os gêmeos seriam os reis por sua morte. Caso Kalila quisesse, ele abdicaria logo e Kalila seria coroado rei! Estava disposto a tudo para que o neto ficasse… Ele e Acoeté seriam rei e rainha juntos.
E Kalila compreendeu naquele momento que não nascera para ser rei… mesmo temendo desapontar o avô, confessou-lhe seus sentimentos. E Muriatã e Tara, embora muito tristes, compreenderam.
O navio em que iam Kalila e Acoeté saiu do porto à tardinha, na hora do crepúsculo; o sol descambava dourado no horizonte. Kalila prometera a Muriatã e aos seus que se de novo não se adaptasse, voltaria. Não para ser rei, mas um cidadão comum.
Os dois juntos, no convés, viam a família e os amigos ficando cada vez menores, as mãos acenando e a costa verde e mágica da África desaparecendo.
Depois de meses de viagem, Kalila e Acoeté viam agora as costas da Bahia. As praias cheias de coqueiros, o mar verdinho, o cais. As pessoas vestidas de modo tão bizarro para Acoeté; as palavras que lhe soavam tão estranhas.
Kalila, debruçado na amurada do navio, pensava:
— Seremos, minha mulher e eu, pessoas realmente livres? Serão nossos filhos e netos, brasileiros livres e dignos nesta terra dos brancos? Terá mesmo o pesadelo da servidão acabado com uma simples lei? E se…