Já estou no bojo da madrugada. É o que me diz a aragem mais fria.
Os sons de que me lembro vêm lentamente, um após o outro: o ciciar do vento na folhagem, a vibração dos insetos, o piar de um curiango, o murmúrio de um córrego… E logo se misturam aos cheiros, gostos, imagens, tantas sensações de que é feita a fascinação do mundo da roça.
Parece haver um intervalo entre esse conjunto de sons e o que agora ouço, como se fossem chocar-se dentro em pouco, do mesmo modo que há um estremecimento quando um mistério se desvela.
Aqui, porém, neste pedaço do Recôncavo, me dou conta do que, sendo mistério, só se desvela para no mesmo instante se velar e assim permanecer mistério, nem maior nem menor, porque mistério não se mede.
É no intervalo da aproximação dos dois conjuntos de sons que minha infância, com seu fundo rural, deixa de ser o tempo que passou, como se um cinegrafista ainda estivesse registrando-a.
Deixo que fluam esses instantes luminosos do acaso, a encantada emoção de estar só, aqui e agora, e não em minha terra, conversando comigo mesmo. Sou um homem que revisita uma pequena cidade depois de 38 anos e resolve sair, à noite (por que à noite?), andando pelos arredores, distritos e povoados do município, seguindo estes caminhos ladeados de mato, sob a lua escassa.
Não há, como receei, choque entre os dois conjuntos de sons. Imperceptivelmente fundem-se, polifonizam-se.
Ouço agora o crepitar dos gravetos e galhos secos. Fiz esta pequena fogueira, e junto a ela me aqueço, deito-me.
***
Dormi?
O dia desponta devagar neste meado de março. Há um restinho de neblina.
De repente, outra lembrança. Eu, menino — o céu ainda escuro, lá no sertão, longe, no norte da Bahia —, andava numa estradinha de terra; cruzava a linha do trem e ia com um tio no rumo de um lugar chamado Gameleira para tirar o leite de cinco vacas. E no caminho ia sentindo o úmido cheiro das moitas de coirana, malva e assa-peixe. Umas vinte braças atrás do curral, um rio; e do lado de cá, na margem esquerda, seis pés de manga-espada; na outra margem, ingazeiras; e flanqueando uma trilha que subia para a serra, pés de café, plantados em 1921 pelo avô materno Joaquim, de apelido Sinhô, que morreu em 1933.
Onde estou?
Reconheço: isto aqui é São Roque. Guaí, antigo Capanema, fica para esta banda. A Vila de Nagé, do outro lado, depois daquele morro. Depois, Guapira e Coqueiros.
Ando e ando. Ali, vejo, Barra do Paraguaçu não é muito longe. São tantos povoados. Água Fria, Viração, Batatã, Campina, Imbaíbas… Vou em Ponta do Souza? Tanque dos Paranhos é uma lagoa.
Pego uma vereda. Pronto. Começou a festa dos sanhaços, curiós, bicudos, coleirinhas, bem-te-vis…
Ando. Torno a parar. Ali, bananeiras, uma plantação de mandioca. O terreno ondula, depois sobe. Ando. “O pasto de cima é o de Agapito. Lá, ele tem uma casa de farinha”.
***
Era aqui a porteira. Como grita, sem som nem sentido, este advérbio: aqui! A casa não existe mais, nem o pé de maçaranduba na divisa com a roça de Zé de Salvino.
Aqui. Dispersaram-se em 38 anos as ressonâncias dos sete paus roliços dessa porteira e de seus moirões de cabiúna. Mas ressonância não é repercussão. Na ressonância, o espírito da imagem; na repercussão, a alma dessa imagem.
É a repercussão que agora opera a revirada do ser porteira, seu sopro, sua emanação. “Os diferentes nomes de alma, em quase todos os povos, são modificações derivadas do fôlego e de onomatopeias da respiração”, escreve Charles Nodier, citado por Bachelard num rodapé de La poétique de l’espace. Em francês, inglês e alemão, por exemplo, alma é âme, soul, die Seele; e espírito — sprit, spirit, der Geist. Que diferença! E, no entanto, alma é uma palavra esquecida ou reprovada. “Antes errar com alma”, diz Unamuno, “do que acertar sem ela”.
Se a alma não tivesse o poder de inaugurar as coisas, de ser potência de primeira linha, a “forma” da porteira seria só conhecida, percebida, talhada num lugar-comum, um simples objeto para o espírito. Na curva de 38 anos, e bem antes desse tempo, é a alma que vem inaugurar essa porteira, habitá-la, deleitar-se com ela, na muda verticalidade dos moirões, na sonora horizontalidade dos sete paus que abrem e fecham seu ser.
***
Agapito, Santa, sua mulher — e Irene, a filha, que fazia bonecas de pano.
Ando.
Então é isso a vida de um homem? Deixar no meio da semana uma cidade turbulenta e voltar 38 anos depois a um lugar que não é onde nasceu, palmilhá-lo sozinho à noite, devanear, deitar-se junto ao fogo, levantar-se, andar e andar, os sentidos todos prontos?
Onde estão Santa e Agapito, Irene e suas bonecas de pano?
Trinta e oito anos. Agora. Por que é elástica esta palavra?
Se minha mãe estivesse viva, diria zombando de mim: “É muito tempo para quem está esperando debaixo da chuva”.
Um entroncamento de veredas, e cada qual com sua cadência. Sigo por uma, que também me acolhe, aventureiro da solidão.
— Chegou bem na hora — disse Agapito ao me receber na porteira. Subimos o pasto. — Só não repare que o rancho é pobre”.
Era um puxado da casa de farinha, tudo de pau a pique, feito por ele; e também os apetrechos: a roda com as manivelas e a correia de couro para acionar o rolo de dentes afiados onde se ralava a mandioca descascada e cevada; as gamelas, as arupembas com as palhas bem trançadas e o arco firme prendendo-as; a prensa e o cocho, o forno e o lajeado certinho da chapa, rodos, alguidares.
Fumegante e adoçado com rapadura, o café que Santa me deu numa caneca de flandre.
— Quer beiju?
— Quero.
— O da hora é que é bom. Agorinha faço um, enquanto o diabo esfrega um olho.
Engraçada, Santa. Era de Poço Redondo, Sergipe. Enquanto fazia o beiju num alguidar, cantarolou:
Já passei por tanta coisa
Que tudo hoje me distrai
Pra Lagarto, Capela ou Propriá
Seu menino me diga
Se Rosinha vai
ou não vai
Ô Rosinha, Rosinhá
Se vai, vai
Se não vai, venha cá
Ô lelê, ô lalará
Ô Rosinha, Rosinhá.
Perguntei que cantiga era essa; respondeu:
— Ah, isso é do tempo do ronca. Uma doida que cantava, lá em Porto da Folha. Joana Cangula, o nome dela. Já morreu. Nunca vi um lugar ter tanto doido. Minha avó era de lá, mas não era doida.
***
Desde o anoitecer de ontem que ando por estes matos. Calculo umas cinquenta braças daqui até onde era a porteira de Agapito.
Há muito não sei o que é um feixe de sensações tão rico quanto este. Foi agora, a partir do anoitecer de ontem, que ele se formou, ou veio se formando nessa lonjura do tempo, como um caleidoscópio invisível, girando por dentro de meus olhos, no fundo de meu ser, até eu intuir que o azul é a escuridão tornando-se visível? Na distensão de meus músculos? No gosto do café com beiju? Na alacridade dos pássaros? Nas vozes que evoquei há pouco? No cheiro entontecedor da manipueira escorrendo no cocho da casa de farinha?
Bebo do cantil um gole de cachaça. E continuo andando. Não vejo mais onde era a porteira de Agapito. Baixo um dos fios de arame farpado e passo por esta cerca; a terra está limpa, encapoeirada, bem chovida, pronta para o plantio de milho e feijão. Quem é o dono? Ando. Noto que a colina, vista da curva da roça de Zé de Salvino, é maior do que eu supunha: é uma serra onde grande parte da cobertura vegetal está preservada. Já avisto o começo da escarpa; e escuto o que me parece a linha mole de uma melodia em que se misturam gemidos, bulícios, suspiros, gorgolejos. Este som é nítido, apesar da algazarra dos pássaros.
Ando mais. Paro. Estremeço. Só agora me lembro: eu me despedira de Santa e estava descendo o pasto — Agapito um pouco à frente para abrir a porteira, quando uma menina vinha subindo com um pote na cabeça. — É Irene — ele disse. — Foi ver água no Quelembe.
Meu Deus! Trinta e oito anos e reacende-se em mim o antigo e ainda corrente significado rural nordestino: ver é o mesmo que buscar.
Irene tinha ido buscar água no que só pode ser um riacho. É isto que agora escuto: um murmúrio. E tão nítido. Por mais que, no sopé da serra, farfalhe um bambual. Murmúrio que vem dali daquela várzea, coberta de capim-guiné rebrotando.
Terá minha imaginação se infiltrado em minha memória para que um som irreal se produzisse, o barulho da água no pote que Irene sustinha na cabeça há 38 anos? Ando. Bachelard de novo ecoa em minha cabeça: “Um valor vivo integra uma realidade. É preciso que todos os valores tremam. Um valor que não treme é um valor morto”. Sou então o que me fez estremecer há pouco: esta fronteira entre o barulho da água, associado ao brilho nos olhos de Irene, ao desenho da rodilha onde assentava o pote úmido e fresquinho por fora, e a realidade vista e sentida a fluir incessante em dois metros de largura, se tanto. Que mundo entre o som da água chacoalhando naquele pote e o da água a murmurar neste riacho!
Quelembe. Sussurro a linda linha intervocálica. Digo em pensamento este nome pueril e doce, guardado nas veredas desta viagem, em cada curva deste silêncio de 38 anos. Abaixo-me para vê-lo bem de perto; e, ao molhar as mãos em suas águas, torna-se pleno meu sonho acordado: num instante um folguedo mágico se tece dentro de mim, diante de mim.
Hipnotizado pela solidão, eternizo esse instante — eu, que já vi tantos córregos e todos eles se parecem, não consigo me lembrar de nenhum outro.
Córrego. Arroio. Riacho. O primeiro o de córrego é todo alegrinho; o primeiro o de arroio, que som redondo perfeito; e o a de riacho é pura claridade cantante. O r gemina-se, soando dobrado, rolado, em que a raiz da língua se aproxima da campainha (a úvula), fazendo-a vibrar. Sublinho cada uma dessas palavras; experimento a primazia do vocal sobre o sonoro; e, mais ainda, a alegria de enunciar Quelembe, sua particular e lúdica e generosa modulação.
Quase seis horas da manhã. Eu, que até o entardecer de ontem era um homem sem mais nada, pois cansado de tantos descaminhos, sedento de tanta coisa vã, encontro este amigo distante e solitário. Quelembe. Sua geografia única, seu nome, seu murmúrio, seus submurmúrios. Bebo sua água. Lavo meus olhos. E junto a ele respiro, repouso, como se fosse para sempre, neste calmo alento irisado pelo azul-opala do alto desta serra, pelos verdes desta várzea. Sou este calmo alento. E começo a viver de novo.
Março, 2005