1.
Flora enchia a vida dos que a rodeavam com seu bom humor, seu riso constante e uma vitalidade realmente invejável.
Dotada de vontade férrea, otimista e romântica, transmitia a todos sua alegria de viver brincando. Estava sempre sorrindo, transformando as coisas desagradáveis em situações fáceis de serem vivenciadas de um modo mais satisfatório.
Assim fora desde a infância, quando encheu de alegria, a casa dos pais, fosse na cidade ou no veraneio em Mar Grande, na ilha de Itaparica, onde era conhecida por todos, desde os veranistas, até os açougueiros, os saveiristas e o dono da quitanda. Todos lá a estimavam e respeitavam, porque Flora sempre tinha uma palavra delicada e tratava a todos com apreço.
Enquanto sua irmã Fernanda, era introspectiva e quieta sem gostar de conversa e de amigos, Flora, muito ao contrário, trazia sempre pessoas para casa. Sua mãe costumava dizer que quando Flora estava em casa, o telefone e a campainha da porta não paravam!
Frederico, o irmão mais jovem, tinha um temperamento igual ao dela e assim os dois viveram frequentemente juntos, na praia, montados nos melhores cavalos do pai, jogando vôlei, basquete, nos “shoppings” e cinemas. Estavam sempre conversando e rindo. Algumas vezes, surgiam discussões; isto acontece com todo irmão. Mesmo as pessoas iguais tem suas divergências de opinião. Não há seres absolutamente iguais. Portanto…
Fernanda deixava-se ficar em casa, lendo ou vendo televisão. Logo cedo namorou um engenheiro. Um ano depois do casamento teve gêmeos e dedicou-se inteiramente ao marido, aos filhos, à casa, deixando, um tanto para trás sua profissão, pois era Farmacêutica.
Em casa então ficaram Jacira e Fernando, os pais, Flora e Frederico, a quem chamava carinhosamente Fred.
Flora, escolheu Jornalismo, como não poderia deixar de ser: Comunicação. Frederico seguira os passos do pai estudando medicina.
*********************
Era uma noite de lua cheia e Flora estava debruçada na janela dos fundos da casa, em seu quarto, olhando apaixonadamente a lua. Pensava nos mistérios do universo. Vez ou outra tirava os olhos verdes da lua e corria o olhar pelo infinito, como a buscar soluções…
Frederico bateu e, sem esperar resposta, entrou esbaforido.
– Entre, a moça disse, sem sequer tirar os olhos do firmamento.
– Anda, Florinha. Vista uma roupa incrementada e vamos ao aniversário de um amigo. É seresta legal, garota. Você vai amar!
– Assim? Perguntou. Mas… Do nada, Fred? A moça virou o rosto fitando-o intrigada.
– Como do nada? Ele resolveu e agora ligou para mim. Acho que é o programa perfeito para nós dois! Vamos!
– Mas… A moça relutara.
Afinal o irmão a convencera:
– Vamos, sua boba. Qualquer programa é melhor do que ficar sozinha em casa. É uma noite de sábado e de lua cheia! Vai ficar por aí, cismando como uma velha rabugenta?
Flora cedeu enfim e fora com ele, meio encabulada. Com receio de não encontrar alguém conhecido, que lhe desse a certeza de passar horas agradáveis.
*********************
Eduardo saiu apressado, segurando o violão displicentemente, correndo para pegar o elevador no edifício onde morava.
Ia apenas cumprir o compromisso assumido com o amigo de tocar violão e cantar. Exímio violonista e dono de bela voz de tenor, ele não se podia furtar aos constantes convites da turma para serestas. Gostava e não faltava.
Mas naquela noite em especial, não queria sair. Gostaria mesmo era de ficar em casa, repensando sua vida. Berenice, sua namorada de juventude, havia poucos dias terminara o namoro, alegando não amá-lo mais. E o pior, declarando estar perdidamente apaixonada por um primo de Eduardo, que vivia em sua casa como irmão e a quem o rapaz sempre devotava a maior confiança… Queria ouvir música, sozinho, remexer na ferida que ainda sangrava, retirar dela toda a dor e assim, tornar-se curado daquele terrível malefício…
Assim, Eduardo desiludido, Flora insegura, seguiram os dois para a seresta.
*********************
A grande varanda estava iluminada e cheia de gente que conversava, ria e bebia. Flora no começo sentiu-se um pouco deslocada. Olhava a beleza da casa, os quadros nas salas, os lustres, os móveis requintados. A piscina, refletindo a luz mágica da lua cheia. O jardim bem cuidado. As flores colorindo o ambiente. E a alegria… Ah! Alegria rainha das festas! Muito dos corações jovens, muito da cerveja regiamente servida…
Eduardo já tocava e cantava quando a moça chegou. Cercado de garotas, cada qual querendo chegar mais junto para cantar com ele.
Eduardo era daquele tipo de homem que se pode chamar de charmoso: alto, forte, moreno, cabelos escuros e olhos verdes, cantava e encantava com sua voz quente e macia, sobretudo ao público feminino. Ah! Aqueles cabelos jogados displicentemente na testa bronzeada…
Flora chamara a atenção dos rapazes quando entrara. Vestia “jeans”, com blusa de malha em tom pastel; chegara sorridente, o olhar felino, os cabelos claros soltos, o corpo bem proporcionado, os olhos grandes e verdes, que pareciam querer ver tudo de uma só vez. Apesar dos traços delicados havia algo de sensual em seu rosto. E o brilho daqueles olhos, faziam-na dizer claramente que estava ali.
Garçons passavam com salgadinhos, servindo. Ela acabara de pegar um, quando ouviu uma voz sua conhecida e uma leve batida em seu ombro a fez voltar-se.
– Flora? Você aqui?
Virou-se e viu Mariana, sua colega no colégio São Paulo, aliás, a melhor aluna da sua turma.
– Mariana! Que bom encontrar você. Não conheço ninguém aqui e…
– Ora, garota, conhece a mim! Moro aqui. Hoje é aniversário de meu irmão. Você o conhece? Perguntou, curiosa.
– Não; vim com meu irmão, que, pelo visto, é colega do seu.
– Que bom! Então, vamos aproveitar! Venha comigo!
E Mariana carregou Flora consigo, apresentando-a a outras jovens e pondo-a a vontade.
A serenata continuava. Agora mais animada para Flora. Naquele momento, os músicos cantavam “Eu sei que vou te amar” de Vinícius de Moraes; como poucas pessoas sabiam a letra, Flora foi cantarolando distraidamente, sem perceber que sua voz sobressaía.
Eduardo, com o ouvido educado para a música, percebeu-a. Deixou-se ficar ouvindo aquela voz melodiosa de soprano lírico, observando a musicalidade que havia nela.
A moça nem percebia a admiração que se estampava claramente na expressão do rapaz. Quando dedilhou os últimos acordes, ele gritou, entusiasmado, batendo palmas:
– Bravo, menina! Que voz linda! E que afinação!
Flora custou um pouco a compreender que era com ela. Ficou vermelha de acanhamento ao perceber que os outros também a aplaudiam.
Eduardo fez-lhe um sinal com a mão:
– Venha p’ra perto! Vamos cantar juntos!
As garotas que o cercavam olharam a intrusa com ar de poucos amigos.
Flora, embora encabulada, levantou-se e, com sua elegância natural, caminhou em direção a Eduardo e sentando-se a seu lado, falou, sem afetação:
– Obrigada pelas palavras gentis.
– O que você prefere cantar? Perguntou ele.
– Gosto tanto de cantar, que nem sei responder. Gosto e muito de Vinícius, Caetano, Chico, gosto de música de fossa e das velhas canções de seresta. Não acredita? Ela sorriu vendo o ar de espanto do rapaz. Mas é verdade; gosto sim!
– Então, cantamos “Chão de estrelas”? E Eduardo fitou-a incrédulo, esperando a reação da moça.
Flora respondeu simplesmente:
– Vamos lá, companheiro!
E sua voz, cristalina como a água que desce de uma cachoeira, saltou de suas emoções e, segura, encheu o ambiente da melodia doce e triste das canções do passado…
O que seria algo desconfortável, tornou-se uma noite maravilhosa para ambos e o início da parceria musical que durou por toda a vida.
Ao sair, Flora disse sorrindo à Mariana:
– Adorei sua festa! Que casa linda você tem!
Mariana agradeceu feliz.
– É sua… Volte sempre. E, obrigada por ter vindo, foi muito bom!
– Até amanhã, querida.
E Flora partiu. Feliz. Tão feliz, que a lua lhe pareceu mais bela, o céu mais misterioso e a vida colorida e cheia de luz. Despediu-se de Eduardo e notou que ele dissera:
– Até breve, Bidu Sayão baiana!
– Obrigada pelo elogio, mas sei que não chego nem aos pés dela, garoto Pavarotti! E sorriu.
De repente, uma sensação plena de felicidade, invadiu por inteiro seu ser. Flora procurou explicar a razão. E disse a si mesma:
– Cantei muito! Tenho a alma lavada pela beleza da música e estou feliz!
*********************
No dia seguinte, Flora mal chegou ao colégio, encontrou Mariana que foi logo comentando:
– Menina, você foi a estrela da festa! Todo mundo lá em casa ficou encantado com você!
Flora sorriu feliz.
– Gente bacana a sua família, Mariana. Foi uma linda festa!
– Meu irmão já decretou que toda vez que houver serenata lá em casa e, diga-se de passagem, sempre tem, você será uma convidada especial! Será, Flora, que vai ser minha cunhada?
– O que? Flora espantou-se, pois mal falara com o irmão da colega. Mal nos falamos! Aliás, que ele é um gatão, lá isto é, garota…
As duas rindo, entraram para a sala de aula. E ali começou uma amizade que ambas conservaram com carinho especial.
2.
Flora tinha uma característica muito sua: a alegria.
Após alguns encontros ela e Eduardo começaram a namorar.
Flora adorava Carnaval e Eduardo também. Com Fred os dois compravam mortalhas dos blocos e pulavam o dia inteiro e ainda tinham pique para pular à noite, num clube ou outro. Fernanda costumava sacudir a cabeça rindo e comentando:
– Flora encontrou o par certo! Eduardo é o homem talhado para ela!
Jacira limitava-se a sorrir e concordava:
– Mas se não fosse, Flora fazia ser! Com tanta energia que ela tem, minha filha, qualquer homem fica forte!
E as duas riam, vendo a moça afastar-se com o namorado para passear.
Do namoro ao noivado e ao casamento, foi um passo tranquilo. Sem grandes acontecimentos, sem desavenças ou ciúmes tolos. Ambos eram alegres e gostavam de viver intensamente. Chegaram ao casamento por opção, com tranquilidade. Um fato fez com que eles apressassem a cerimônia: Eduardo, engenheiro químico, foi transferido para São Paulo pela firma onde trabalhava, para fazer pós-graduação. Então decidiram casar.
Começaram os preparativos. Eles queriam uma festa bonita, porém simples. Flora queria casar no campo. Fernando e Jacira prepararam então o sítio na ilha, mandaram capinar e plantar flores em todo o caminho. Desde a decisão da filha que o sítio foi melhor cuidado, a casa toda pintada, tudo consertado. Seria armado um altar ao ar livre, ao gosto da noiva. Um grande toldo branco foi preparado para aliviar os convidados do calor durante a cerimônia. Monsenhor Fabiano, seu tio paterno, daria a bênção nupcial.
Enxoval pronto, apartamento alugado em São Paulo, bolos, doces e salgados encomendados, vestido branco, véu longo, diáfano, tudo muito primaveril e romântico. Em uma tarde de verão, Flora e Eduardo, tornaram-se marido e mulher.
Foi uma cerimônia simples, porém muito bonita: os pássaros cantavam junto com os músicos vindos da cidade. O violino chorava os acordes da Ave-Maria, da Serenata de Schubert, do Révèrie de Schumann, do Sonho de Amor de Liszt. Sim, porque Flora quisera tudo campestre, mas a música não! Ela não abrira mão da música romântica, porém erudita! Marcha Nupcial e tudo!
Viajaram para a Argentina em lua de mel e não voltaram mais para Salvador; de lá mesmo iniciaram sua vida em São Paulo.
A casa de Fernando e Jacira ficou vazia, triste e silenciosa. Quando Fernanda vinha passar as tardes com os gêmeos, frequentemente comentava com a mãe:
– Como Flora faz falta, hein, mamãe? Esta casa me dá uma saudade… E vendo o irmão que passava, cumprimentando:
– Oi Nanda! Hei, rapazes, venham cá com o tio!
Ela comentava:
– Será que ele já acostumou, mamãe?
– Qual nada! Hoje mesmo me falou em passar as férias com Flora em São Paulo…
– Os dois sempre foram muito iguais…
– É verdade…
– Sabe, mamãe? Tenho novidade… E sorriu misteriosa.
– De novo, minha filha? Os gêmeos ainda estão tão pequenos…
– É… Mas se é p’ra ter, prefiro ter logo minha cota. E Flora, já tem alguma?
– Que eu saiba, não. Acredito que se houvesse, nós já saberíamos. Você não conhece a irmã que tem? E sorriu.
– É… Ela não guardaria segredo… Sinto falta de Flora… Daquela alegria toda, daquele riso gostoso, da festa que ela fazia da vida… A casa ficou tão quieta, mamãe!
– Ficou… Concordou Jacira com um suspiro. E como ficou! A sorte é ainda termos Fred, que traz os amigos e é alegre também… Minha esperança é que Flora volte um dia para morar em Salvador! Sinto tanta saudade…
– É possível… Quando acabar a pós-graduação!
*********************
Em São Paulo, Flora começou a trabalhar em jornalismo e foi fazendo amizades. O marido por sua vez tinha um bom grupo de casais amigos da firma. E os dois foram fazendo entrosamento, tornando seu apartamento ponto de encontro obrigatório. E Flora, como não podia deixar de ser, era o ponto culminante do grupo, com seu riso, graça e alegria de viver.
3.
Guilherme era um jovem ambicioso e forte. Engenheiro químico, recém formado, conseguira logo um excelente emprego em São Paulo, perto da capital, numa firma grande e conceituada.
Aí conhecera uma moça, engenheira química também e com ela casara. Deste casamento, Marisa tivera dois filhos e estava grávida de um terceiro, quando um acidente na fábrica tirou a visão do marido: o vazamento de uma substância química cujos vapores cegaram Guilherme aos trinta e dois anos.
A garota que nascera, linda e rechonchuda, jamais fora vista pelo pai. E a escuridão tomou conta da vida de Guilherme. Ele vislumbrava vultos cinzentos à sua volta, como se fora dança macabra de filmes de terror… E nada mais…
Aposentado, tristonho, vivia uma sub vida, silenciosa e triste, indo ao centro oftalmológico na esperança de obter o transplante de córnea. Mas a fila era grande e ele esperava com paciência.
Marisa trabalhava exaustivamente pelos dois, sem uma queixa, sem murmurar. Alegre e expansiva, convidava sempre os casais amigos, fazia jantares e combinava saídas para barzinhos, iam a consertos e teatros, ela guiando o marido de modo tão tranquilo, como se fosse um casal apaixonado, que as pessoas, às vezes, nem se davam conta de que ele era cego.
Guilherme tornara-se sarcástico, desconfiado, ciumento.
Marisa era baixinha graciosa, feminina. Sempre alegre e sorridente, cativava a todos. Mas, se no grupo, as pessoas falavam baixo ou ela demorava um pouco longe dele, quando voltavam à casa, Guilherme procurava brigas intermináveis e a mandava embora, alegando não querer que uma mulher jovem e inteligente, ficasse irremediavelmente presa a um cego.
– Não quero que fique ao meu lado por pena! Esbravejava ele. Falando o que se passa nas peças de teatro, descrevendo as óperas ou as roupas dos concertistas, em voz baixa, para não incomodar os vizinhos… Estou farto de tudo isso! Deixe-me em paz… E… Vá viver sua vida em outro canto!
– Não seja ingrato, Guilherme! E nosso amor? Você acha que em outro qualquer lugar do mundo posso encontrar o aconchego desta casa, do nosso ninho? Em que outro lugar do mundo acharei seu riso doce, suas mãos carinhosas, sua voz quente e macia? E todos os momentos que temos vivido juntos, não contam? Nossos filhos que sempre sonhamos criar, hein? Você acha que desejo chutar tudo pro alto? Oh! Meu amor, não seja tolo, eu amo você! Esqueceu?
– Desculpe, Mari. Às vezes, um ciúme louco toma conta de mim, perdoa! Só porque não posso enxergar, fico imaginando os homens a cobiçar você e aí a coisa toma vulto e uma sensação de impotência me toma todo…
Guilherme não conseguia conter as lágrimas. Chorava copiosamente. Marisa segurava sua cabeça com muita ternura e murmurava, medindo cuidadosamente as palavras:
– Meu amor, não sou nenhuma Luisa Brunet! E mesmo que fosse, existe uma coisa que se chama amor: e isto, Guilherme, eu só sinto por você! Está satisfeito agora? Nada, nem ninguém me importa fora do nosso lar, de você e dos nossos filhos! Pare de se torturar também! Por favor, não transforme nossa vida num inferno! Meu anjo, confie em mim, em nosso amor, em todos os momentos tão felizes que temos vivido juntos! Anda, Guilherme, você se esquece de quanto nos amamos? Por favor!
Guilherme compreendeu o desespero em que mergulhava de cabeça levando consigo a companheira de tantos anos. Virou o rosto para o lado onde supunha Marisa estar; pousou nela seus doces olhos azuis, profundos e expressivos, que fariam qualquer pessoa pensar que enxergavam perfeitamente e parando de chorar balbuciou:
– Perdoe! Vou tentar controlar meus impulsos! Mas ser cego, viver nesta escuridão terrível, é o pior dos castigos, Mari! Você nem pode calcular!
– Mas você tem esperança! Você sabe que no dia em que alguém doar uma córnea para você, suas possibilidades de recuperar a visão são muitas! Estamos na fila, logo, logo, você será chamado, o doutor Felipe garante que terá sucesso no seu transplante! É preciso ter esperança, meu amor!
Abraçando o marido, deixou-se ficar assim, calados os dois, cada qual imerso nos mais doídos pensamentos…
Marisa sabia que ainda teriam muito que esperar!
*********************
Flora aos poucos ia fazendo um bom grupo de amigos em São Paulo. Havia na empresa em que o marido trabalhava engenheiros de todo o país e até do exterior; fizeram aproximação e saiam sempre às noites para barzinhos, boates, iam ao cinema, ao teatro e até jantavam fora. Os mais constantes passaram a ser Tereza e Renato, Lucila e Hélio, que pelas afinidades com a música, a cultura baiana e o gosto pela boemia, os atraiam mais. Eram pessoas descontraídas, de gostos simples como Eduardo e Flora.
Aos domingos faziam passeios bucólicos, iam ao jardim zoológico, ao jardim botânico, aos parques e praças. Às vezes iam até Santos ou às praias, Ubatuba, etc. quando o verão chegava e o sol esquentava.
Eduardo fora apresentado a Guilherme por um amigo em comum, o químico Marcelo Lucchini, cuja esposa tornara-se companheira inseparável de Flora. E Guilherme e Marisa passaram a fazer parte do grupo.
Flora ficara penalizada com a cegueira do rapaz; algumas vezes levara-os em seu carro, quando o deles ia para a oficina, até o hospital tentar saber se havia chegado sua hora na fila da córnea doada. E ficara impressionada com a multidão de pessoas angustiadas aguardando que alguém morresse para que seus olhos voltassem a ver. Era uma multidão de cegos desiludidos, desesperançados, aguardando na escuridão uma esperança futura e remota de luz…
Ela se deixava ficar sentada ao lado de Marisa, olhando as pessoas que tinham dinheiro, mas não tinham material para comprar, para que seus olhos voltassem a ver…
Presenciou algumas conversas irritadas do casal, sobretudo porque Guilherme já estava perdendo a paciência. Marisa ponderava sempre paciente e carinhosa:
– Tenha um pouco mais de calma, meu amor, chegou a oportunidade para os outros, há de chegar para você também! Alisava os cabelos sedosos do marido como se ele fosse uma criança. Guilherme resmungava:
– Não sei não, Mari. Acho que estou condenado a não ver nunca mais o sol, o mar, nem você! E segurando a cabeça com as mãos, Guilherme se deixava ficar desalentado, chorando ali mesmo, na sala de espera do Hospital.
– Procure não ficar assim, Guilherme! Encorajava Flora. Muitas pessoas conseguiram, você sabe. Sua vez chegará! Veja: hoje conversei com aquela senhora e apontou discretamente; ela me contou que esperou três anos pela doação. Agora está enxergando tudo! Tenho conversado com várias pessoas enquanto você consulta o médico e tenho visto que apesar de difícil, não é impossível! Vamos pensar positivo que logo dá certo!
Naquele fim de semana foram passear em Ubatuba. Flora ficou maravilhada com a praia, com a beleza do mar no sul. Ela estava habituada às praias quentes, estranhava a água fria mas logo se habituara. Marcelo tinha casa lá e os casais e filhos se amontoavam numa confusão organizada. Todos tinham sua obrigação; os homens trabalhavam ao lado das mulheres e assim todo mundo curtia o sol e a praia e se alimentava bem. Flora estava mais gorda, corada e disposta. Andava quilômetros de praia sozinha, sonhando. Às vezes, manhãzinha cedo, saia sorrateiramente de biquíni e iniciava seu passeio solitário. Quando Eduardo acordava e via o leito vazio, resmungava, virava-se para o outro lado e voltava a dormir. No entanto havia dias em que ele também acordava e ia caminhar com ela, ambos abraçados como namorados, cochichando, rindo à toa… Depois de ir e vir, respirando fundo, fazendo ginástica, correndo picula com ele, ela afinal sentava na esteira estendida na areia e se deixava ficar ao sol, bronzeando seu corpo perfeito. Eduardo olhava-a com olhos cobiçosos e perguntava:
– Por que você acorda tão cedo, querida e vai logo caminhar?
– Porque eu tenho uma sede maluca de viver, meu anjo! É como se eu soubesse que tenho de viver tudo em pouco tempo… Ria Flora com faceirice.
– Que tolice! Reagia Eduardo. Nós dois vamos viver muito! O que faria o mundo sem o nosso amor tão grande? E sorria.
Flora acomodou com a mão morena e bem feita os fios de cabelo que o vento desmanchava e respondeu também sorrindo:
– Claro, eu sei que não vou morrer tão cedo! Vovó é que dizia assim de mim. No veraneio na Ilha sempre acordei cedo e quando saia para ir à praia catar conchas, pescar siris, caminhar na areia, fazer ginástica e nadar, vovó achava que eu era muito apressada. E comentava com mamãe:
– Esta menina parece que quer viver muito em pouco tempo! Acorda cedo, passa o dia reinando e à noite ainda vai passear na praça, vai às festas e às serenatas… Credo! Deus benza!
E benzeu mesmo! Completava Flora sorrindo e deixando ver os dentes alvos e suas delicadas covinhas.
– Ideia boba! Contestou Eduardo agastado. Sua avó, perdoe minha querida, tinha umas ideias muito sem graça! Você vive a vida, porque tem muita energia, saúde, tem um temperamento extrovertido, é muito diferente da Fernanda. Ela estava habituada naturalmente à sua mãe, à sua irmã e quando você chegou, com um temperamento muito diferente das outras pessoas da família, ela se apavorou…
Flora sorriu. Fitava a linha do horizonte e de repente, seu coração apertou de saudade… Lembrou a avó já velhinha, cabelos alvos, mãos trêmulas, sorriso doce. Lembrou a mãe, tranquila, amorosa, sempre fazendo coisas gostosas para agradar aos filhos. O pai, sistemático, caladão, mas dono de um coração generoso e meigo. A irmã: tão diferente dela, mas a quem amava tanto. E os sobrinhos? O que estariam fazendo naquela manhã de sol, em pleno dezembro? Certamente correndo na praia, na ilha… E o irmão? Estava prestes a chegar para passar as férias com eles. Aquele sim, era tal qual ela: alegre, festeiro, brincalhão! Seus novos amigos iam adorá-lo, ela tinha certeza!
4.
Foi no fim daquele verão que a irmã de Marcelo chegou à São Paulo. A família morava em São José do Rio Preto. A moça havia apresentado problemas de coração e vinha à capital fazer exames no INCOR. Era uma moça bonita, jovem, teria mais ou menos uns 18 anos, tímida, calada, magrinha, parecendo assustada com tudo e com todos, cabelos escuros negros, longos e sedosos, olhos azuis, doces e profundos, corpo bem feito, voz doce; logo conquistou o grupo todo com sua simpatia. Sendo a única solteira, Fred, enquanto passou as férias em São Paulo foi seu par constante, quer nas boates, na praia, ou nos passeios. Maria José, este era seu nome, cansava fácil, não aguentava o pique da turma, razão pela qual o grupo passou a fazer programas mais ao gosto da garota e das suas possibilidades.
Flora havia arranjado uma vaga num jornal e estava trabalhando em sua profissão, mas nas horas vagas saía com Maria José e levava-a ao médico, pois Sônia, esposa de Marcelo, trabalhava tempo integral. E Flora estava a seu lado quando o médico concluiu os exames e disse em tom seco e profissional:
– Só um transplante poderá salvá-la, Maria José. Vou coloca-la na fila de espera. Vamos anotar seu endereço, telefone e pessoas em São Paulo que possam avisá-la imediatamente quando conseguir um coração com suas características imunológicas. Volte amanhã para fazer seus exames e deixar aqui tudo anotado…
– Quer dizer, doutor, que vou morrer se não fizer o tal transplante? Perguntou a moça com voz embargada.
– Não é bem assim, confortou o médico. Vou medicá-la e você poderá voltar para casa tranquila. Mas para ter uma vida normal, o tal transplante é necessário; caso contrário…
– Caso contrário? Perguntou Maria José, tremendo.
– Terá que ter uma vida pautada, sem grandes emoções, sem esforços…
– Não poderei ter filhos então? Perguntou ansiosa.
O médico olhou-a penalizado. Pensou por uns instantes e respondeu constrangido:
– Infelizmente não. O esforço do parto tiraria sua vida! Alisou os cabelos brilhantes da moça à guisa de consolo. Mas vamos fazer o transplante! Aí você renascerá! E sorriu.
Maria José retirou-se agradecendo.
Saiu do hospital calada, como se estivesse imersa nos próprios pensamentos. Flora respeitou seu silêncio. Caminharam até o estacionamento, tomaram o carro, e prosseguiram caladas, cada qual mais preocupada com o problema. Quando estavam quase chegando, Flora olhou discretamente para a moça e notou lágrimas discretas que molhavam sua face pálida. Perguntou com voz meiga:
– Quer falar Mazé? Desabafe comigo. Brigue, discuta, faça alguma coisa! Você tem direito! Quer ir a algum lugar tomar um suco ou coisa assim?
– Acho melhor… Posso… Posso ir até sua casa? Perguntou a moça tremendo toda. Não quero ficar sozinha em casa. A esta hora, Marcelo e Sônia estão no trabalho, as crianças estão em casa, fazendo os deveres, não queria que elas me vissem chorando… E eu… Preciso chorar… Falou, contendo a emoção.
– Mas claro! Nem sei como não pensei nisto antes! Disse Flora dando ré no carro; seguiu para seu apartamento que ficava a um quarteirão dali.
Era um apartamento pequenininho, pois eles só ficariam lá o tempo necessário para o curso de pós-graduação de Eduardo. Mas Flora pusera nele toda a sua graça e o bom gosto que sempre a caracterizaram: uma sala aconchegante, um barzinho charmoso, a cozinha toda verde, cor de sua preferência, os cômodos amplos e confortáveis, muito bem arrumados. Um Cristo na cabeceira e um pôster dela e de Eduardo, olhando-se os dois num por de sol em Montserrat, na Bahia.
– Como você é romântica! Maria José falou. Parece um ninho de amor!
Flora sorriu.
– E é! Sou romântica sim e muito! Curto intensamente este amor. E meu marido também é um romântico incorrigível, você sabe. Nós dois somos tão iguais, até parecemos papel carbono um do outro…
– Assim é que é bom! Comentou Maria José. Eu gostaria de casar com alguém igual a mim… Mas… E virou o rosto chorando. Para que atrelar uma pessoa jovem e forte a uma vida perdida como a minha?
Flora ficou penalizada com o sofrimento da moça. Tentou confortá-la:
– Deixe de tolice, Maria José! Você vai fazer seu transplante, vai dar certo e ainda vai casar, ter seus filhos e um grande companheiro. Quem sabe até, o… Fred?
Maria José enrubesceu. Disse desconcertada.
– O Fred?…
– Meu irmão não é um “gato”? Ou você já tem outro em São José do Rio Preto? Flora perguntou.
Maria José olhou para Flora com aqueles seus doces olhos azuis. Sentiu que podia confiar na moça, sua nova amiga.
– Tenho… Quer dizer: tinha! Ele acabou o namoro logo que soube do meu problema cardíaco. Um namoro de cinco anos, sabe? Eu ainda o amo muito… E desta vez a moça abraçou Flora e chorou copiosamente encostada em seu ombro.
Os soluços sacudiam seu corpo frágil e algum tempo as duas ficaram assim. De repente, Maria José começou a ter falta de ar e Flora lembrou-se das palavras do médico. Puxando-a docemente perguntou:
– Esta emoção não lhe faz mal, querida?
– Não, me fez bem, respondeu Maria José limpando os olhos. Faz tempo que eu precisava chorar assim. Lá em Rio Preto em não podia chorar porque papai e mamãe ficariam preocupados. Em casa de Celo não posso chorar por causa das crianças. Pela rua, não posso… Onde, então? Aqui, foi a minha salvação!
– Venha quando você quiser! A casa é sua! Eduardo sai pela manhã e só volta à noitinha durante toda a semana. Eu trabalho apenas duas horas na redação. Meu trabalho é todo feito em casa mesmo. Conversaremos e se você quiser, enquanto digito minhas crônicas, você se tranca em meu quarto e chora o quanto necessite…
– Que bom que tenho em você uma amiga, Flora! Há tempos precisava de uma! Sou tão calada, tão difícil de me abrir e isto dificulta tudo em minha vida!
– Compreendo, disso Flora. Você não tem amigas em sua terra? Perguntou estranhando.
– Sim; duas amigas de verdade. Muitas companheiras de festas e passeios. Uma das minhas amigas casou-se e foi morar em Manaus. A outra casou com um rapaz esquisito, ele implicou com todas as amizades dela e até com a família. Afastou a menina de todo mundo. E eu fiquei só…
– Tinha meu namorado, mas quando ele soube que eu estava com o problema cardíaco, terminou comigo… E ela sorriu, um riso triste e doce.
– Vocês passeavam muito? Perguntou Flora procurando deixar a moça à vontade.
– Oh! Sim, passeávamos muito. Estávamos constantemente juntos. Eu sempre fui uma pessoa quieta e triste, porque meu coração jamais foi esta coca-cola toda. Qualquer esforço maior e lá vinha a maldita falta de ar, às vezes as unhas e os lábios ficavam roxos… Mas, eu ia levando. Ele também não é lá muito alegre, é quieto, não gosta de esporte, é o tipo intelectual. Deu para ir levando…
Flora sentiu que a moça ainda amava o namorado. Disse, tentando consolá-la:
– Mas quando você fizer o transplante, voltará a ter uma vida normal; aí então ele ficará com você com certeza!
Maria José fitou Flora longamente em silêncio. Depois, a voz cansada, respondeu:
– Não, não ficará! Um dia eu lhe conto tudo, amiga! E com um suspiro, querendo encerrar a conversa, começou a brincar com um arranjo de flores que enfeitava a sala.
– São lindas suas rosas! Parecem verdadeiras!
– Adoro rosas… Disse Flora. São minhas preferidas!
– Eu prefiro cravos… Acho que são mais misteriosos…
Flora sorriu.
– Questão de gosto… Comentou delicadamente.
E assim, Flora e Maria José tornaram-se tão amigas, que a companhia de uma para outra amenizava a solidão em que ambas ficavam, perdidas naquela avalanche que era a vida na Grande São Paulo…
Afinal, após os exames estarem prontos, Maria José voltou para São José do Rio Preto. Ela abraçou Flora chorando e agradecendo à amiga toda a sua compreensão. Esta dissera convicta:
– Todos nós esperamos que você logo, logo, volte para receber seu novo coração! Jogue fora o velho com os velhos amores para receber um novo com toda a força e a energia que você precisa… E aí então, quem sabe, um novo amor vai surgir?
Maria José sorriu seu riso triste. A amiga sempre otimista, sempre sonhando coisas boas, as fantasias fluindo em sua cabeça inteligente. Beijou com carinho o rosto de Flora e disse, olhando para os dois, marido e mulher, abraçados na rodoviária:
– Está bem, está bem, minha amiga. Agora espero os dois lá por casa. Pensem com carinho. Vão para a semana Santa com Celo e Sônia, que tal?
Os amigos concordaram. Quando haveria Flora de rejeitar convite para um passeio? Respondeu prontamente:
– Que bom! Iremos sim, não é querido?
E Eduardo, conhecendo a mulher que tinha, sabia que a pergunta era apenas para confirmar que iriam. Pois àquela altura ela já estava decidida.
– Claro, claro. Desejamos conhecer São José e rever você Mazé.
A moça despediu-se, e seguiu acenando até que o ônibus sumiu na curva do caminho. Os quatro voltaram para casa.
– Que pena! Comentou Flora. Uma moça tão jovem e bonita! Como é difícil este negócio de transplante…
– Não creio que dê certo… Comentou negativamente Marcelo. Maria José nunca teve muita saúde. Agora é que sabemos que sua circulação não se fazia bem… Tenho medo…
– Mas é sempre bom tentar, interveio Flora. Pior do que está não pode ficar… Então, vamos ter esperança!
Marcelo olhou para Flora e sorriu.
– Você é sempre otimista assim, Flora?
– Claro! Deus me livre de ser pessimista! Arre! Dá azar! E sorriu, abraçando forte o marido em plena rua.
– A energia desta mulher é inesgotável, Marcelo. A sorte é que sou jovem e aguento a parada…
Riram todos. Iam chegando em casa. Estava na hora do almoço.
– Vamos almoçar lá em casa, convidou Sônia. Mazé deixou um almoço pronto, aquele macarrão que ela faz e que vocês gostam tanto… Pediu que os convidássemos para almoçar conosco…
E pela voz trêmula de Sônia, Flora percebeu a emoção.
– Claro que vamos, não é amor? Primeiro vamos lá em casa pegar um pudim de coco que deixei na geladeira. Comeremos juntos a mesa e a sobremesa. Como Mazé é delicada! Comentou Flora, emocionada coma gentileza da amiga.
– Você foi muito importante para ela, Flora. Nem sei o que seria da pobre criatura se não fosse você… Eu, com duas crianças pequenas, trabalhando o dia todo, não sei o que faria. Saiba que nós lhe somos muito agradecidos!
Flora ficou encabulada.
– Não fiz nada, disse. Afinal, somos amigos. Não tenho filhos e meu horário de trabalho é lábil, posso dar-me ao luxo de levar uma amiga ao médico!
– Você é uma criatura maravilhosa! Respondeu Sônia com sincera admiração. Nós admiramos você! Sabe Eduardo, você é um felizardo!
– Obrigado! Eu já sabia disso! Disse ele sorrindo e beijando a esposa ao entrarem no elevador.
– Aqui, Eduardo? Mas ela também correspondeu, apaixonada.
5.
Marcelo era amigo de Guilherme e trabalhavam juntos na mesma firma, onde o rapaz sofrera o acidente que lhe roubara a visão. Um dia em que combinaram passar fora em um sítio de um amigo, Marcelo apresentou Guilherme a Eduardo e Flora, que logo ficaram afeiçoados. Flora observou que mulher forte era Marisa e admirando-a, aproximou-se da moça com quem fez um elo forte de amizade. Seu coração bondoso apiedou-se da situação do rapaz. Passaram o dia no sítio, entre pulos na piscina e passeio de charrete no campo; Flora divertia-se muito, embora entristecida com a situação do casal, vendo Marisa descrever carinhosamente para o marido a cor das flores, a maravilha da paisagem, a arquitetura da casa colonial, etc. Em cada lugar, a cada passo, abraçada com Guilherme, ela ia docemente descrevendo o que via e seu amor era tanto, que todos viam claro em suas descrições e o marido parecia satisfeito. Guilherme enxergava com os olhos negros de Marisa!
Assim, o grupo composto de Eduardo e Flora, Marcelo e Sônia, agora fora aumentado com Guilherme e Marisa. Liderando com seu bom humor constante e a alegria que a caracterizava, estava Flora sempre feliz, sorrindo e inventando mil coisas para a distração sua e dos amigos…
Foram aos poucos descobrindo os segredos de São Paulo. Parques e jardins, teatros e cinemas, praias mais distantes, planetários, cidades do interior e até mesmo nos grandes feriados passeios ao Rio, à Curitiba e até mais em Florianópolis e Porto Alegre. Assim, Flora conheceu aos poucos o sul do país; viu as cataratas do Iguaçu, viu as praias de água gelada e conheceu os pampas. Ah! Os pampas! Como tremeu emocionada ao ver tanta beleza, naquela pradaria verde e tão igual, tão certinha, os trigais dourados a se estender de vista! Provou vinhos deliciosos, assistiu à festa da uva, comprou, como boa brasileira, bolsas e sapatos do mais puro couro e de muito bom gosto. Casacos, blusas de malha e de lã. Sempre satisfeita por conseguir um bom preço!
Nas primeiras férias de verão o grupo foi à Argentina e ao Uruguai. Flora deixava-se ficar observando Marisa que, com incrível paciência, descrevia minunciosamente todas as coisas para Guilherme, que ficava parado, fitando tristemente a paisagem, sem nada ver…
Flora fechava os olhos e tentava sentir como o amigo sentia e seu coração, sempre tão feliz, ficava constrangido e triste.
– Como é terrível a cegueira! Pensava então. E como é poderoso o amor! Completava, ouvindo as descrições tranquilas de Marisa e suas respostas tão próprias, quando o marido queria saber mais a respeito de alguma paisagem ou animal…
Já de volta à São Paulo, numa manhã fria e garoenta de outono, Marisa telefonou cedo para Flora. Ela acabara de tomar café com Eduardo que saíra apressado por estar atrasado. Naquela manhã Flora não o levara à Universidade pois os dois dormiram tarde. Ficaria assim sem carro o dia todo.
– Que pena! Pensara. Vou trabalhar de coletivo… Mas é bom! Pensou logo em seguida: vou ver pessoas indo e vindo à minha volta e vou poder curtir as vitrines, o povo, a cidade…
Quando atendeu ao telefone conheceu logo a voz de Marisa.
– Vou querer um favor seu… Disse a amiga com o forte sotaque de paulista.
– Sim? E qual? Perguntara Flora, alegre.
– É que nosso carro não pegou e preciso levar Guilherme ao médico hoje… Estou sem saber o que fazer… Você poderia levar-nos quando fosse para o jornal?
Flora pensou um instante.
– A consulta está marcada para hoje a que horas?
– Às 14:00, respondeu Marisa meio constrangida. Deixei o carro com o mecânico mas ele disse que só nos entregará daqui a 3 dias. Vai chamar o reboque para levar o carro até sua oficina. Um transtorno!
Flora já tinha decidido.
– A que horas devo estar aí para pegar vocês?
– Às 13 horas dá tempo, respondeu Marisa agradecendo.
– Pois me aguarde, amiga!
Conversaram um pouco ainda. Quando desligou, Flora deu rapidamente as ordens à faxineira que chegara, vestiu-se e saiu para pegar uma condução; passou pela Universidade e procurou Eduardo. Este assustou-se ao vê-la.
– Você por aqui, querida?
Flora explicou ao marido o problema.
– Não tive coragem de dizer a ela que estava sem carro; afinal, estas consultas são importantes para eles…
Eduardo fitou a esposa com ternura.
– É por isso que te amo tanto, amor! E abraçaram-se ali mesmo com aquele carinho que os ligava cada vez mais.
Aproveitou para almoçar junto com o marido no restaurante universitário. Comeram bastante verdura, conversando alegremente, depois alguns colegas mais chegados, entre eles, Marcelo e Renato, sentaram-se em sua mesa. Flora saiu, chave na mão, à procura do carro. Eduardo estava com ela. Beijaram-se mais uma vez e Eduardo comentou:
– Dizem que a rotina da vida tira o romantismo do casamento e mata o amor, ou o transforma. Em mim isto é diferente: amo você cada vez mais e com maior paixão! Cada palavra, cada encontro, cada beijo, têm pra mim um sabor melhor e a cada dia que passa, posso dizer sem receio, que lhe amo mais, muito mais!
Flora sorriu enternecida e abraçando sensualmente o marido sussurrou:
– Também eu digo o mesmo! E vou mais longe: amo você além, muito além da morte! Para toda a eternidade! E beijou com infinito carinho a mão de Eduardo que segurava a sua. Sempre achei que você é minha alma companheira, desde que o vi pela primeira vez: e não me enganei…
Sorrindo e acenando até logo, ela entrou com elegância no carro e partiu rumo à Marisa.
Eduardo deixou-se ficar olhando apaixonado, a mulher que se afastava. Depois, voltando à realidade, virou-se e seguiu para o prédio de aulas.
Flora chegou pontualmente às 13 horas. Marisa e Guilherme já estavam prontos. Ela os deixou no consultório médico e pretextou fazer algumas comprar e voltar dentro de 2 horas, mais ou menos.
Procurou um atalho e foi ao jornal entregar a matéria; tomou algumas notas, conversou com os colegas, discutiu informações, e voltou às pressas para ficar com os amigos. Não quis que eles soubessem que, para servi-los não tinha ido trabalhar pela manhã. Chegando lá, eles ainda aguardavam. Flora sentou-se pacientemente e ficou conversando.
Nisto, uma menina cega, com mais ou menos dez anos, vestida pobremente, entrou na sala e escorregando, foi bater em Flora que havia se levantado para pegar uma revista. Flora abaixou-se e suspendeu a garota. Ela levantou-se limpando a roupa e pedindo desculpas.
– Ela não enxerga… Justificou-se timidamente a mãe, senhora gorda e com fisionomia sofrida, que vinha logo depois da menina. Desculpe!
– Não tem importância! Respondeu Flora. Como é seu nome, Gata? Perguntou meigamente.
– Angélica… Respondeu a menina sorrindo.
– Angélica! Um nome bonito numa menina bonita! Flora disse, arrebatada de carinho ao ver os traços perfeitos, o rosto oval, corado, os olhos azuis, muito azuis e vazios…
– Obrigada! Respondeu a menina encabulada.
– Ela já nasceu assim… Disse a mulher como justificativa, respondendo sem saber, à pergunta que ia na cabeça de Flora. Estamos tentando agora o transplante. É difícil conseguir um doador. Angélica está na fila; se Deus quiser, um dia…
– Claro! Ela conseguirá sim! E voltando-se para a menina, alisando seus cabelos encaracolados e castanhos: o que você tem mais vontade de ver, Angélica?
– O mar… Um por do sol… E o rosto de mamãe!
Flora notou lágrimas discretas no rosto da mulher.
– E vai ver sim, muito em breve, quem sabe?
A atendente chegou até à porta e chamou Guilherme. Lá se foi ele com Marisa, com uma nova esperança no coração.
6.
Chegou afinal o dia em que o grupo ia conhecer Salvador. Já morando dois anos em São Paulo, Flora recebera a visita dos pais e do irmão. A irmã não fora ainda, mas o cunhado lá passara uns dias rapidamente a negócios. Mesmo assim, Eduardo e Flora mostraram tudo o que foi possível.
Ela agora tinha seu próprio programa de televisão e sentia-se realizada, seu talento reconhecido na maior capital do país. Era pouco tempo, mas tinha uma fala decisiva, naquilo que gostava tanto: arte.
Chegaram a Salvador no início de janeiro; o sol forte de verão bronzeava todo mundo. Ficaram uns dias na capital, no apartamento de Fernanda que estava na ilha. Eduardo e Flora ficaram em casa dos pais dela. Saiam o dia inteiro. Para o Mercado Modelo, onde as mulheres ficavam horas admirando artesanato, em dúvida do que comprar, mas como boas brasileiras, comprando…
Levou-os ao subsolo, caminhando aquilo tudo e deixando correr solta a imaginação de como seria a chegada dos escravos até ali…
À saída, todos levavam berimbaus, pulseiras coloridas e patuás da Bahia.
À noite, corriam os restaurantes. Viram todas as versões de capoeira, candomblé e samba de roda. Na Moenda, no Pelourinho, no restaurante do SENAC. Todos ficaram encantados com a arquitetura do Pelourinho. Sônia, que é arquiteta, deixava-se ficar de rosto pra cima, olhando, olhando… Caminhava até o Carmo, pisava forte nas pedras desiguais, balançava a cabeça, deixando o vento embaraçar seus cabelos negros, enquanto comentava num suspiro:
– Vocês baianos não sabem, o acervo cultural que possuem! Como isto é bonito, gente!
Passavam a manhã nas praias. Cada praia, fazia com que o grupo tivesse mais palavras de admiração: Itapoan, Buraquinho, Arembepe, Interlagos e Guarajuba. Ah! Guarajuba! Foi a paixão maior e mais generalizada: todos lá passaram o dia e se deixaram ficar, na praia estendidos, ou na água, brincando feito crianças… Do grupo, somente Flora não tinha filhos ainda; assim, as crianças aproveitavam o máximo, junto com os adultos as diversões da praia. O zoológico, foi uma tristeza! Comparando com o de São Paulo, eles não comentaram por educação, mas Eduardo e Flora sentiram-se constrangidos. Salvador merecia coisa melhor!
Chegou a festa do Bonfim. Alugaram um caminhão com os amigos de Fred e lá se foram eles pela cidade baixa até a confusão da Lavagem. Viram as baianas vestidas de branco com os jarros cheios de água, flores perfumadas para lavar com devoção as escadas da santa igreja. Sambaram com o povo, comeram acarajé, abará, cocada, bolinho de estudante, etc. E beberam chope. Estavam alegres e cansados. Mas felizes!…
Resolveram então passar uns dias na ilha. O sítio dos pais de Flora era grande, a casa espaçosa com 6 quartos e ainda tinha um apartamento extra para os amigos de Frederico. Lá ficaram os amigos de Eduardo alojados. As crianças se misturaram com os três de Fernanda e foi uma maravilha. Praia de manhã cedo, almoço gostoso e fumegante, descanso até o sol baixar um pouco. À tarde, saiam pela ilha conhecendo povoados, pessoas, praias lindas. Foram ao Mediterranée. Lá passaram um fim de semana. Foram à Itaparica, onde viram uma parte da história do Brasil, da Bahia. Lucila era professora de História na USP; ouvia deliciada tudo o que o guia explicava.
Às vezes, à noite, faziam serenatas sozinhos ou juntando-se ao grupo de veranistas, amigos de muitos anos.
Chegou fevereiro e com ele a festa de Yemanjá, no dia dois. Ninguém segurou Flora.
– Eu, não levar minhas rosas brancas para Yemanjá? Só se estiver doente! Boa, eu vou nem que seja de lancha!
– Ou a nado, não é minha irmã fogueteira? Perguntou Fernanda sorrindo.
– Mais ou menos… Respondeu Flora no mesmo tom.
– Flora sempre foi assim, comentou Fernanda sorrindo com aquele jeito calmo que a caracterizava. Quer viver cada segundo da vida intensamente! Explicava aos amigos a maneira de ser da irmã, tão diferente dela.
– É como se a vida fosse acabar amanhã… Ponderou a mãe sorrindo.
– Cruzes! Disse Flora arrepiada. Acabar nada! Vou viver cem anos, lúcida, forte e danada como sempre fui! E pulando a janela da sala, saiu correndo para o jardim ao encontro dos sobrinhos que brincavam de “batatinha frita”. E lá ficou com as crianças correndo e pulando, os longos cabelos balançando ao vento.
A mãe continuou, como se falasse para si mesma:
– Sempre foi assim: alegre, ágil, correndo, pulando, brincando… Poucas vezes, vi Flora chorar… E quando o fez, foi por pena dos outros ou pela maldade das pessoas… Sabia sempre dar a volta por cima, quando alguma coisa de desagradável acontecia com ela… Graças a Deus, minha filha foi muito feliz em tudo… Na carreira, no casamento, na saúde…
– É… Flora tem uma saúde de ferro, disse Fernanda; sempre foi muito forte. E tem um coração maravilhoso! E para completar tem um maridão, talhado para ela no céu, com a mesma energia inesgotável e que gosta das mesmas coisas que ela! Ainda bem! Se não fosse assim, nem sei o que seria da minha irmã…
– O que? Frederico entrou na conversa sorrindo. Flora o faria gostar de tudo que ela gosta. Com tanta energia, quem poderia fazer Flora parar? Ela morreria de tédio…
Ficaram todos sorrindo observando-a brincar.
Afinal, após uma rápida votação, em que Flora venceu, foram os adultos para Salvador ver a festa de Yemanjá. As crianças ficariam com Fernanda e dona Jacira.
Chegaram quase ao meio dia e a cidade pros lados do bairro do Rio Vermelho havia parado. O trânsito desviado, o povo indo e vindo, as filas imensas para entrega dos presentes. Flora levava uma linda braçada de rosas brancas e as amigas a imitavam. Marisa, muito romântica, olhava o mar batendo barulhento nas pedras e ficava sonhando, enquanto descrevia minunciosamente tudo para Guilherme.
Chegaram enfim até o grande cesto preparado para a rainha do mar. Colocaram as flores e fizeram os pedidos. As outras não tinham fé; mas Flora tinha: ela pediu um filho à rainha do mar! Uma menina, linda e forte e cheia de risos, que viesse coroar sua felicidade. Pediu saúde, alegria para seu lar e dos seus, pediu, pediu e agradeceu tudo que tinha de bom. Beijando as rosas, colocou-as cuidadosamente no cesto e sem dar as costas para ele, voltou-se e saiu com as amigas indo encontrar-se com os maridos. Ficaram por ali nas barracas, comendo caranguejo, acarajé, etc. E bebendo chope. Viram o por do sol, quando o céu se cobre de cores do rosa ao laranja, escondendo o azul. Viram o sol explodindo em beleza enviando os fracos raios para dizer: até breve! E o mar ficando escuro e céu e mar se confundindo numa só cor, num só mistério…
– E quando acaba há quem diga que não existe Deus! Comentou Flora suspirando.
– É… Diante de tanta magia e tanta beleza, como se pode pensar que não haja um Ser Superior que controle toda esta força majestosa que é o mar? Respondeu Marisa emocionada.
– Vocês querem saber de uma coisa? Disse Sônia também suspirando. Já viajei muito, conheço toda a América Latina, os Estados Unidos, o Canadá e quase toda a Europa. Vi paisagens bonitas. Vi realmente lugares lindíssimos, que de tão belos me fizeram chorar de emoção! Mas a Bahia, com todas as suas limitações, é um lugar privilegiado! Como é bonito isso aqui, minha gente! Como é romântico! Que energia diferente e mística existe no ar… Que força inigualável esta terra tem!
– Obrigada, amiga, respondeu Flora emocionada. Fico tão feliz vendo que vocês estão gostando da nossa terra… Não é, Du? E levantando-se chegou perto do marido e abraçou-o. Eduardo correspondeu puxando-a docemente para si.
– É sim… Estamos muito felizes. Nossa Bahia, com licença da falsa modéstia, é uma beleza!
Passavam as tardes nos museus. Conheceram Salvador, seu sol, sua comida típica; tiveram indigestão, tiveram tudo que tinham direito e que acontece a todo turista que se presa quando abusa do dendê.
Voltaram para a ilha. E… Chegou o Carnaval! Todo mundo com mortalha comprada por Frederico, para pular no bloco Eva, como Flora pulara desde jovem. Os paulistas adoraram o bloco, as noites de samba na Barra. O trio elétrico foi a apoteose! Frederico conseguira com amigos colocar o pessoal todo num trio e eles pularam até cansar! Subiam e desciam a rua Chile iam até ao Campo Grande. A multidão colorida, pulando, sambando… Numa integração total…
Afinal, chegou o dia da volta. Os carros iam um atrás do outro dando cobertura. Flora ia quieta, chorando às vezes lágrimas indiscretas, para não magoar o marido. Tinha saudade da família, da terra, de tudo!
Fizeram boa viagem, chegaram cansados, mas felizes.
Flora e Eduardo ficaram satisfeitos quando os amigos diziam o quanto haviam gostado da Bahia, do seu feitiço, da sua beleza, da sua magia. Vibravam recordando as praias, os museus, as igrejas, as ruas de grandes pedras isoladas, coloniais. Falavam nas cidades históricas. Haviam adorado Cachoeira: as igrejas, as ruas, o rio e a arquitetura colonial. Enfim, haviam gostado muito! E da família, nem se fala! Parecia já se conhecerem há tanto tempo!…
Eduardo e Flora sentiram-se chocados apenas com as críticas à sujeira e à lentidão do povo. E também à sua grosseria!
– Cadê aquele povo brando, de fala macia, que encantava a todos, porque os recebia sorrindo? Cadê aquele baiano que levava o turista quando lhe solicitavam uma informação, ao lugar que ele pedia, ao invés de grosseiramente esticar a mão e dizer com desdém:
– Ali…
O que fez tão de repente mudar assim seu povo? A chegada de gente de fora, com a abertura do Polo Petroquímico? A vida difícil, cara, extorsiva, que preocupa a todos os brasileiros? A civilização? O crescimento da população?
Cadê aquele baiano que conversava com desconhecidos nas esquinas, nos pontos de ônibus, nos coletivos, conversar por conversar, jogando papo fora, sorrindo, com a meiguice que sempre e de maneira tão forte, caracterizou todo este povo? O baiano que come nas ruas, que conversa com as baianas do acarajé, com os feirantes, com o açougueiro, com o padeiro? O baiano que, atravessando a rua, em plena avenida Sete, parava o trânsito, quando se voltava para o passeio e vendo alguém amigo, dizia:
– Vá sábado lá em casa comer uma maniçoba!
E, parado no meio da rua, atrapalhando tudo, esperava calmamente a resposta do outro:
– Está bem, eu vou!
Aí ele, indolentemente, voltava-se e após acenar uma despedida, terminava de atravessar, enquanto os carros, parados pacientemente, retomavam seu curso…
– Ah! Pensava Flora. A Bahia de outrora! A Bahia dengosa, a Bahia brejeira, a Bahia carinho! Cadê, gente, aquele povo amoroso? Por que tanta grosseria, tanta violência? Por que? Quem matou a doçura deste meu povo?
7.
Este era o último ano de Eduardo em São Paulo. Flora já fazia planos para suspender as pílulas anticoncepcionais e preparar-se para ter bebês. Eduardo também estava animado; só falavam nisso os dois, sobretudo na Bahia, na companhia dos sobrinhos de ambos e dos filhos dos amigos. O barulho da garotada os divertia, tomavam banhos de mar com eles, jogavam bola e peteca, faziam comidinhas brincando de boneca. Agora era a volta à solidão do seu pequeno apartamento, acolhedor, porém silencioso, para eles habituados à família numerosa e alegre.
Flora levou dois dias com a faxineira para limpar tudo e deixar a seu gosto: a poeira acumulada durante dois meses, com o apartamento fechado, não cheirava bem. Tudo foi sacudido, revirado, os poucos móveis trocados de lugar; sua energia estava em todo canto, suas mãos ágeis e nervosas arrumavam e colocavam as coisas de modo gracioso e pessoal. Um quadro aqui, um arranjo de flor ali e já estava uma gracinha seu espaço!
Com sua alma de artista, ela pintava; não poderia ser considerada uma pintora em verdade. Mas fazia uns desenhos bonitos, acadêmicos, paisagens alegres como a autora. Eram os seus quadros que enfeitavam a pequena sala. Em cima do sofá um pôster seu, sorrindo, muito bonita, os cabelos longos e sedosos caindo pelos ombros, o olhar brilhante de mulher feliz.
Voltaram à vidinha normal; estudo para ele, trabalho para ela, com cursos encaixados nos horários vagos. Entre estes, ela resolveu fazer pintura à sério. E, à noite ou nos fins de semana, os passeios ou encontros com a turma, para cinema, teatros e pequenas viagens.
Várias vezes Flora acompanhou Marisa e Guilherme ao hospital; frequentemente via sua amiguinha cega. Quando não tinha programa, pedia a Eduardo para acompanha-la à casa da menina num bairro de classe pobre, longe, na periferia. Tanta era a alegria que Flora levava à menina que esta a batizou de Luz.
Maria José voltou em suas férias para saber como ia a fila de transplante; ainda não chegara sua vez. Flora acompanhava a amiga, sempre constrangida, vendo sua luta para viver. A moça submetia-se a exames, fazia seu controle médico, distraia-se um pouco e voltava para São José do Rio Preto.
Flora não deixava que a rotina assumisse suas vidas: inteligente e alegre, vivia inventando programas, cursos, passeios. Eduardo costumava comentar rindo:
– Dizem que o amor acaba no casamento devido à rotina; disto não me queixo eu: com Flora, cada amanhecer é realmente um novo dia! E nunca se sabe como será o anoitecer!
Finalmente, um dia, chegou para Guilherme e Marisa o momento tão esperado: a doação de córnea!
Era muito cedo ainda e Flora acabara de acordar. Estava de robe, tomava calmamente seu café da manhã; Eduardo saíra há muito tempo e a moça assistia televisão distraída, com o pensamento longe, em Salvador, na família.
Quando a campainha tocou ela assustou-se; àquela hora não imaginava quem poderia ser.
– Será que Eduardo esqueceu alguma coisa? Hoje não é dia da faxineira… Quem será?
Olhou cautelosa pelo visor. Quando percebeu Marisa e Guilherme tão sorridentes, abriu logo a porta e foi perguntando:
– Que brisa benfazeja os traz aqui tão cedo, meus queridos? Beijou-os e arregalou os grandes olhos verdes ao ouvir a resposta da amiga:
– Afinal, Flora, conseguimos! E Marisa em prantos de felicidade, abraçou-a.
– A córnea? Perguntou Flora receosa de que não fosse isso e pudesse magoá-los.
– Foi! Exultava Marisa, enquanto Guilherme, parado, em pé, chorava silenciosamente.
Flora abraçou os dois emocionada. Por algum tempo assim ficaram, deixando-se levar pela emoção. Depois, Flora recuperando a calma, convidou, enxugando os olhos, para sentarem. E ficaram conversando, animados pela esperança do êxito da operação…
Marisa e Guilherme faziam planos, trocavam ideias, choravam e riam, abraçavam-se e Flora participava da sua alegria.
Chegou afinal a manhã tão esperada da cirurgia; do grupo, apenas as mulheres puderam vir dar apoio ao casal, devido ao horário integral dos rapazes na Universidade. As famílias dos dois sendo do interior, apenas a mãe e uma irmã do Guilherme estavam no hospital.
Flora pegou o casal; Sônia pegou Lucila e Teresa e encontraram-se no hospital. Tentaram passar para Guilherme força e coragem com palavras amigas. Marisa tremia toda quando o médico entrou no quarto e avisou que estava na hora. Controlando sua emoção, beijou o marido com carinho e disse:
– Coragem! Estamos a um passo do nosso sonho! Tudo vai dar certo!
– Eu sei! Respondeu ele com voz entorpecida pela medicação. Torçam por mim… Pediu, beijando a esposa e apertando com força a mão das amigas. Cada uma delas, por seu turno, beijou-o na mão com carinho. Guilherme acenou sorrindo emocionado, balbuciou:
– Até que enfim! E fez com a mão sinal ao maqueiro que podia seguir para o centro cirúrgico.
Flora e as amigas partilharam com Marisa os momentos angustiantes da espera; a sogra e a cunhada, afastadas, rezando o terço baixinho, nada diziam para minorar a angústia da moça.
Flora admirou-se com tanta frieza e mentalmente comparou aquela atitude com a sua família e a de Eduardo, no meio das quais há lugar para todos, há carinho nas horas de espera, de angústia e há sorrisos na hora da alegria. Ela fitava as duas juntas rezando e deixava-se ficar pensando:
– Jamais mamãe e Fernanda, ou dona Dulce e Cecília, me deixariam sem uma palavra de conforto numa hora assim…
Parecia que a dor e a ansiedade eram só delas; Marisa nem fazia parte do contexto familiar; que ficasse com as amigas!
Estas se desdobravam. Os minutos pareciam séculos! Combinaram rezar juntas para sentirem-se mais fortes. Às vezes, Marisa comentava, os olhos molhados:
– E… Se não der certo?
Ao que Flora imediatamente reagia:
– Tem que dar certo! Não tenha pensamentos negativos, minha querida! Vai dar certo, não vai haver rejeição, Guilherme vai voltar a ver você, o sol, o mundo! Tão bem quanto via antes! Tente se alegrar, para esperar o melhor!
As outras diziam palavras encorajadoras. Sônia, muito católica, pedia:
– Continuemos a rezar…
– A cirurgia foi bem! O rapaz está ótimo! Disse o oftalmologista, entrando no quarto. Logo ele virá para cá. Mantenha a janela sempre de cortinas fechadas. Minha auxiliar explicará a senhora a conduta a seguir. Foi um sucesso, fique tranquila! Disse, batendo de leve no ombro de Marisa.
– Obrigada, doutor! Respondeu a moça e começou a soluçar.
– Mas o que é isso? Onde está aquela coragem toda que a senhora demonstrou durante a espera?
Marisa tentou controlar-se e, limpando os olhos balbuciou:
– É felicidade, doutor! Muito obrigada!
O oftalmologista sorriu, abraçou-a e apenas disse:
– Vamos aguardar agora o momento de tirar a venda. Preciso e muito de sua ajuda. Meu paciente deve permanecer tranquilo durante todo o tempo… Seu estado de espírito vai ajudar nestes dias de espera.
– Nós estaremos aqui! Disseram juntas chegando para perto do grupo, a mãe a irmã de Guilherme.
– Muito bem, senhoras. Quero o apoio de todos, família e amigos! Ele vai precisar!
E gentilmente despediu-se do grupo.
Algum tempo depois, Guilherme chegou. A auxiliar do médico já tinha vindo preparar o quarto e orientar a família sobre os cuidados necessários com o transplantado. O quarto escuro, silencioso, Guilherme ainda no efeito de sedativos. Pela recomendação do médico, todas se retiraram, ficando Marisa sozinha nas primeiras horas, numa ante sala, as outras esperavam; algum tempo depois, Flora despediu-se pois precisava ir ao jornal. As outras fizeram o mesmo, pois precisavam ir ver o almoço das crianças e trabalhar. No horário do almoço, os rapazes vieram visitar Guilherme.
Foram dias de ansiedade aqueles. Ninguém nem sequer pensava em passear. Revezavam-se para dar apoio ao casal, de modo que não ficassem sem alguém amigo por perto.
Foi nessa época que Flora, começou a sentir náuseas pela manhã ao escovar os dentes, umas tonturinhas e a menstruação demorou a vir. Já havia dois meses que não menstruava. Perguntou à Sônia o nome do seu ginecologista e foi logo procura-lo.
Era um consultório bem montado; a sala de espera clara, espaçosa e decorada com muito bom gosto. Senhoras bem vestidas, conversando fiado. A atendente com um uniforme distinto de modo que causava boa impressão. Sônia viera com ela para acompanhar, mas na hora de entrar deixou-se ficar na sala lendo revistas.
– Venha! Pediu Flora.
– Está bem… E Sônia entrou.
Foram para uma primeira sala onde havia a carteira do médico. Ele atendeu-as com um sorriso amigo; alto forte, louro, corado, sorriso largo, comunicativo, foi logo perguntando:
– Dona Sônia, o que a traz aqui, outro neném ou seu controle semestral?
– O controle e a minha amiga que está com distúrbios menstruais… E Sônia apresentou Flora.
– Da Bahia? Ah! Como gosto daquela terra! Conhece lá Dr. Domingos Machado, Alexinaldo Portela, Elias Darzé, Ival Dalmo, Carlos Alberto Dantas, Assis Fernandes?
– Dr. Alexinaldo é o médico da nossa família; os outros conheço de nome.
– Muito bem. Vamos ver o que sente.
Flora contou tudo e depois passou para uma outra sala de exames. Tremia, preocupada que fosse alguma coisa grave; temia que, longe de casa, alguma coisa pudesse lhe acontecer. Trocou a roupa no vestiário: tudo limpo, fino e perfumado. Ela vestiu o robe verde, cheiroso, passado a ferro, envolto num plástico mostrando que não havia sido usado. Seguiu para a mesa de exame. Tremia ligeiramente, preocupada.
Foi com surpresa que ouviu a auxiliar dizer:
– Se quiser urinar, pode fazer a higiene, despreze a primeira porção e urine aqui! Ela apresentava um cálice de vidro limpíssimo.
Flora obedeceu, não antes de fazer um asseio cuidadoso. Depois, entregando o cálice à moça, seguiu para a sala designada. Após o exame, o médico virou-se para ela, perguntando:
– Há quanto tempo sua menstruação não vem?
– Dois meses, doutor.
– E as náuseas?
– Mais ou menos um mês…
– Ficaria feliz, se eu lhe dissesse que está grávida? Tenho quase certeza; vamos aguardar apenas o resultado do seu exame de urina. Vou fazer também a ultrassonografia.
– Grávida, doutor? Engraçado! Boba que sou, nem havia pensado nisto!
– Que significa esta notícia para a senhora? Perguntou ele, com um olhar penetrante.
– Felicidade! Oh! Doutor, o que mais queremos, eu e meu marido! Evitamos antes, porque ele estava fazendo uma bolsa de estudos e não queríamos atrapalhar… Mas agora, deixei os anticoncepcionais porque queríamos tentar um bebê… E ele veio bem antes do que planejávamos! Que maravilhoso!
O médico fitou-a sorrindo e apertando-lhe a mão já sem as luvas, disse:
– Parabéns! É tão bom quando a futura mamãe recebe o novo ser com tanto amor, senhora! Isso já é meio caminho andado para uma gravidez sadia e um parto bem sucedido!
Sônia foi a primeira a saber a notícia. Quando Flora vestiu-se e chegou à sala, a auxiliar já lhe entregava sorrindo o resultado positivo. Flora abraçou Sônia e disse:
– Vou ser mãe, Soninha! Como Eduardo vai ficar feliz!
– Parabéns! Respondeu a outra emocionada. Que bom!
Sônia fez seu exame e depois as duas saíram para comemorar. Lancharam no Eldorado. Olharam umas vitrines e Flora comprou uns sapatinhos um par azul e outro rosa. Sônia comprou um casaquinho amarelo e presenteou a amiga. Felizes, retornaram à casa, cada qual com a notícia para contar…
Eduardo chegara antes dela. Estava recostado na poltrona, lendo os jornais. Flora rodou a chave na porta, ensaiou as palavras e chegando perto do marido sentou no tapete aos seus pés. Olhava-o sorrindo tão misteriosa, que Eduardo perguntou divertido:
– Que é isto? Comprou algum presente para mim?
Ela beijou-o com muito amor. Olhou-o profundamente e devagar, com grande emoção, falou:
– Como esperei por esse momento, querido!
Eduardo olhou para a esposa.
– Qual foi o presente que você trouxe, princesa?
Flora sorriu com ternura e pegando sua mão, colocou-a delicadamente em sua barriga, dizendo:
– Está aqui: é nosso bebê!
– Verdade? Você não está brincando, sua moleca? Perguntou o rapaz emocionado.
– Claro que não! Fiz os exames no consultório e logo o doutor me deu a resposta! É um bebê! E já estou grávida há dois meses…
– Nosso bebê! Que presente maravilhoso! Puxando-a para si, os dois beijaram-se, passaram um para o outro todo o amor que sentiam naquele instante…
Só muito depois, Flora foi mostrar ao marido o presente que o bebê recebera e os sapatinhos que ela comprara.
– O que você prefere? Perguntara ela a Eduardo.
– Um rapazinho para começar. Depois, uma menina igualzinha à você! Mas… Sabe, o que vier será bem-vindo! Tudo é filho! Vou ficar feliz de qualquer jeito!
No fim de semana, os amigos foram comemorar a grande novidade…
8.
Afinal era a hora crítica de tirar a venda de Guilherme; Flora chegou cedo, entregara logo na passagem sua matéria no jornal e era sobre transplante. Para que ficasse livre e pudesse acompanhar a expectativa dos amigos. Vestira uma blusa branca e uma saia estampada, com brincos grandes o que lhe valera no jornal o apelido de “cigana”. Chegou quando Guilherme ainda dormia. Marisa já estava de pé, angustiada e tensa, andando de um lado a outro do corredor. A mãe de Guilherme dormia na cama do acompanhante, um sono tranquilo. Flora olhou distraidamente o quarto, mas com sua discrição, nada comentou.
Pôs-se a andar também, conversando para animar a amiga. Ora rezavam, ora falavam e assim o tempo fez-se mais curto. Flora virou-se quando percebeu passos vindos na direção delas: o médico e seus auxiliares e assistentes, chegavam. Eles cumprimentaram as duas.
– Bom dia! Disse o médico sorrindo. Hoje alguém bondoso vai continuar a ver através os olhos do seu marido, dona Marisa! Oxalá muitas pessoas seguissem este exemplo!
– Bom dia! Repetiram as duas. Com licença doutor, vou acordar minha sogra… Disse Marisa entrando no quarto.
Guilherme acordou quando Marisa pedia à sogra para ir ao banheiro enquanto a equipe médica entrava. Virou o rosto, procurando Marisa e perguntou ansioso:
– Está na hora, Mari?
– Está, meu querido, respondeu a moça docemente. E, ajeitando-o, entregou-o às mãos da equipe, saindo sorrateiramente do quarto para não perturbar.
– Volte aqui, madame; quero que a senhora seja a primeira pessoa que seu marido veja! Ordenou o médico em tom de brincadeira.
– Fique comigo, Flora! Chamou Marisa, pedindo força à amiga.
– Posso, doutor? Não atrapalho?
– Absolutamente, respondeu o médico. Até, muito pelo contrário, ajuda!
A mãe, Flora e Marisa ficaram nos pés da cama, aguardando. O curativo ia sendo removido cuidadosamente. Todos, inclusive a equipe, estavam temendo pelo que poderia acontecer… Haviam tido muitos sucessos, mas também alguns fracassos. E sempre ficavam tensos, imaginando como cada paciente reagiria…
O médico era seguro, seus gestos delicados mas objetivos, não perdia tempo. O curativo estava sendo retirado; o quarto continuava escuro. Aos poucos, os olhos azuis de Guilherme foram aparecendo, o branco do olho, vermelho, congesto, coisa natural pelo trauma da cirurgia. Guilherme fitava o longe, um ponto qualquer do quarto, como se buscasse o infinito… Também ele estava tenso, mas seus olhos parados não traduziam nenhuma expressão especial. O médico pediu que ele se mantivesse quieto; que continuasse olhando para um ponto fixo e não fizesse nenhum movimento, mesmo que a luz com que ia examiná-lo o incomodasse.
E começaram os testes: ele revelou após algum tempo, enxergar uma fumaça clara, muito longe, como se fosse uma nuvem prateada…
– Por hoje é só, disse o médico. Estou satisfeito com os resultados. Acho que você, meu rapaz, vai recuperar sua visão de modo bastante satisfatório! Batendo no ombro do paciente, apertou a mão das senhoras e saiu do quarto, seguido da equipe.
Flora arriscou um tímido pedido:
– E Angélica, doutor, sua pequena paciente, quando fará o transplante?
O médico voltou-se espantado para ela.
– Angélica Brandini? A senhora a conhece?
– Sim, conheci-a quando vim um dia trazer Marisa e Guilherme… Respondeu a moça quase num sussurro.
– O caso dela é mais complexo que o de Guilherme. Mas esperamos que logo seja operada; é questão de tempo, encontrar o doador… A senhora compreende, é muito difícil!
– Compreendo… Desculpe pela interferência…
– Absolutamente, de nada! Com licença…
Guilherme deixou o hospital e só algum tempo depois começou a enxergar de novo. Eram vultos claros que passavam, depois o contorno das pessoas, depois o sol, depois… A luz se fez total! Ele e Marisa, abraçados, choravam emocionados.
Depois de muito tempo, Marisa, ainda chorando, ligou para Flora:
– Você e Eduardo querem vir lanchar com a gente?
Era um domingo e eles estavam em casa.
– Um momento, vou consultar Eduardo. E, logo, voltando, respondeu com sua bela voz de soprano:
– Vamos sim; no caminho pego uma “pizza” e levo conosco.
Logo depois que Flora e Eduardo chegaram, a campainha da porta tocou e chegaram Sônia e Marcelo, Lucila e Hélio, Tereza e Renato. Cada qual trazia consigo um prato gostoso e as respectivas crianças, que juntando-se às de Marisa, foram após o lanche brincar no térreo. Muito depois de comerem e da louça ser devidamente lavada e guardada, Marisa deu a boa nova. Sentou no braço da poltrona do marido e cochichou com ele:
– Querido, descreva a roupa deles. Assim terá mais força o acontecimento…
– Guilherme sorriu: era uma excelente ideia! Virou-se para Flora e brincou:
– Já lhe disseram, Flora, que você fica uma linda cigana com esses brincos e essa roupa estampada, colorida?
– Todos se espantaram, mas imaginaram que era brincadeira dos dois. Marisa cochichando com ele.
Flora sorriu e agradeceu:
– Obrigada; devo ter sangue cigano porque adoro roupas, brincos e pulseiras de cigana!
– Que lhe vão muito bem!
– Obrigada, respondeu a moça sem se tocar que ele a estava “vendo”!
– E você, Sônia, como fica bem de azul! Deveria explorar mais essa cor! Lucila de escuro fica mais bonita, porém muito séria… E Teresa deveria usar mais vermelho: combina com a cor de seus cabelos!
Uma a uma, as pessoas foram se voltando para ele. Fitaram Marisa que ria, feliz. Flora foi a primeira a voltar a si do espanto:
– Você cochichou pra ele ou…
– Ele está enxergando, meus queridos! E Marisa abraçou o marido chorando.
Foi uma emoção só. Todos queriam abraçá-los. A família dele estava lá e a comemoração foi à altura da felicidade que todos sentiam com a grande vitória de Guilherme contra a escuridão.
Flora, no canto, ficou pensativa. Marisa puxou-a e perguntou-lhe:
– O que você tem, futura mãezinha?
– Estou pensando, Mari, todas as pessoas deveriam doar as córneas quando morressem; para elas, não serão mais necessárias, mas veja quanta felicidade essas córneas trouxeram para nós!
– É mesmo… Nem tinha pensado nisso! Disse Marisa puxando a amiga para o grupo. Flora continuou:
– Quero que vocês sejam testemunhas do que vou dizer! Eduardo, venha cá!
Ele veio solicito e todos se voltaram para a moça, aguardando o que ela diria:
– Não sei e ninguém sabe quando vai morrer… Mas se quando eu me for, tiver órgãos fortes e sadios que possam ser aproveitados por alguém, quero que você, meu amor, mesmo sofrendo por me perder, permita que seja doado tudo que eu possa doar, para que muitas pessoas sejam felizes como hoje nós somos aqui… E assim, eu continuarei vivendo em cada pessoa a quem doei, amando, sorrindo e fazendo os outros serem felizes!
– Querida! Que conversa tola! Você vai viver ainda muito tempo, nós vamos criar nossos filhos, vamos envelhecer juntos e quando você morrer, estará tão velhinha, que seus olhos estarão enxergando pouco, seu coração não poderá continuar a bater…
– Está bem… Mas… Me prometa: se, por um acaso do destino eu morrer cedo, doe tudo que possa ser doado, para que muitas pessoas possam ser felizes!
– Muito bem: prometo! Eu sei que você vai viver até mais do que eu!…
– Deus me livre! Viver sem você! Não sou ninguém!
– Então vamos mudar de conversa, minha gente? Interveio Sônia. Você é sobretudo vida, Flora, ninguém pode imaginar você morta, sem vida!
– Mas claro! Concordou Marisa. Todos vamos viver muito e ainda vamos passar momentos maravilhosos como este, juntos, amigos, vendo nossos filhos crescerem também amigos.
– Vou botar música para alegrar o ambiente… Disse Guilherme e todo satisfeito, escolheu ele próprio o que queria ouvir.
E a reunião voltou ao clima feliz pela vitória alcançada.
– Ao doutor! Brindaram todos.
– Ao doutor! Repetiram o brinde com respeito.
Mas no fundo do seu coração sensível, Flora nunca mais esqueceu a alegria que viu brilhar nos olhos de Guilherme por ter recuperado a visão. Uma córnea que fatalmente se perderia na decomposição do corpo, havia sido tão útil para uma pessoa e toda a sua família. Para a carreira de um homem e a alegria do seu coração!
9.
Flora ficou muito enfronhada na problemática – Transplante – ao levar Maria José para a Unidade cardíaca e Guilherme para a Unidade Oftalmológica.
E um dia, um acontecimento macabro fez com que ela se decidisse a fazer uma grande matéria sobre o assunto.
Acordara pensando no que deveria escrever. Cuidadosamente esquematizou sua linha de ação e partiu para realiza-la.
Procurou os centros de transplante de São Paulo e começou as entrevistas. Ela não sabia que mergulhava em um mar revolto e profundo; onde havia a grandiosidade da doação em alguns seres humanos e a extrema sordidez de sequestrar pessoas para tirar-lhes os órgãos, vendendo-os por preço altíssimo: o mercado negro de órgãos!
Conversando com médicos, enfermeiras, fisioterapeutas e psicólogos e com inúmeros pacientes, aos poucos, o que ela pensava ser apenas um problema cientifico, revelou-se um novo mundo que foi penetrando paulatinamente em sua vida.
Tomou conhecimento das dificuldades para encontrar-se doadores; dos problemas de incompatibilidade, com todo aquele processo para contornar os distúrbios imunológicos surgidos. Aprendeu nomes complicados, como a Ciclosporina e os Corticoides, usados como medicação para evitar a rejeição dos órgãos. Ouviu falar muito em imunopressores e aprendeu que eles são medicamentos que diminuem as defesas orgânicas dos pacientes, para que seu organismo não detecte o órgão recebido, como proteína estranha e, consequentemente, possa aceitá-la, como igual às suas proteínas. Assim, o órgão ficará funcionando normalmente no corpo novo, sem problemas.
Aprendeu, e isto foi sempre colocado por todos a quem entrevistou, que havia uma necessidade médica, legal e humana de ser constatada a morte cerebral do doador, pela equipe da Unidade da Terapia Intensiva e da Neurologia; utilizando para isto exames físicos, neurológicos e exames complementares.
E também, a orientação de só se receber órgãos oriundos de Centros de Transplantes dos hospitais referenciados.
Flora aprendeu que muito já se sabia sobre o assunto, mas que na verdade, o homem ainda engatinhava naquele terreno…
E por tudo isso, Flora lançou-se com avidez na fonte do saber sobre a ciência dos Transplantes.
**********************
– Flora, disse um colega de redação. O chefe quer falar com você! E parece que é coisa importante! Sua matéria está sendo um sucesso, parabéns!
– Que chefe? Perguntou Flora, estranhando.
– Ora, o chefe maior, garota.
– Dr. Carone? Ela duvidava.
– Sim, o nosso diretor.
Levantando-se, a moça colocou o jornal que estava lendo na mesa onde trabalhava, benzeu-se e saiu.
Bateu discretamente na porta do chefe.
Uma voz masculina respondeu com delicadeza:
– Entre.
Flora entrou. Dr. Carone, era um verdadeiro cavalheiro. Levantou-se, cumprimentou-a e falou, pausadamente, como se medisse as palavras:
– Leia isto! Chegou às nossas mãos agora. Veja!
Flora pegou o papel e leu atentamente.
Seus olhos verdes iam revelando emoções, como se fossem um caleidoscópio feericamente colorido e iluminado.
Mordeu o lábio inferior como fazia quando estava preocupada.
– Aceita ir a Porto Alegre? Perguntou o chefe. O Centro de Transplante Pulmonar de Porto Alegre, sugere uma reportagem com você. Leram sua matéria e gostaram! Está ficando famosa, hein, baiana? O jornal decidiu enviá-la. Está disposta a enfrentar o desafio?
– Mas… Eu…
– Ora… A semeadura deu frutos e você precisa colhê-los! Mas saiba que você mexeu em um vespeiro, que até eu, muito mais velho e experiente, desconhecia! O certo é que estou entusiasmado. Como é, compramos esta briga?
– Eu…
– A decisão é sua. Pode dar a resposta amanhã. Pense bem. É sua carreira! Poderá ajudar à muita gente. O jornalista, o escritor, enfim, o intelectual, tem a espinhosa missão de falar, mostrar os erros, escrever esclarecendo as pessoas. Você descobriu um veio riquíssimo! E nele, poderá ser útil à muita gente! Quer aceitar o desafio conosco? Terá todo o respaldo do jornal.
10.
Chegou a Porto Alegre; era uma manhã de sol e fazia muito calor. A cidade lembrava Buenos Aires, em tamanho menor. E Flora de repente, questionou-se se não estaria no lugar errado. No hotel descansou um pouco. Depois comunicou-se com o Centro de Transplante Pulmonar e com o hospital da PUC.
Uma voz feminina atendeu, no Centro.
– Alô!
Flora identificou-se.
A voz respondeu, delicada.
– Jornalista? Muito bem. Venha até aqui. Nosso serviço terá muito prazer em recebê-la!
– Quando deverei estar aí? Flora quis saber.
– Olhe, hoje, às quatorze horas, teremos um transplante de pulmão inter vivo. A senhora poderá fazer sua matéria baseada nele. Que tal?
– Uma beleza! Comentou Flora.
Bia continuou explicando.
– A senhora pode vir agora, na parte da manhã. Percorrerá o serviço e, à tarde, tentaremos colocá-la no visor, para acompanhar a cirurgia. Temos outros jornalistas credenciados, mas colocaremos a senhora.
– Obrigada, disse Flora feliz. Por favor, dê-me as coordenadas para chegar até aí. Não conheço bem Porto Alegre.
Flora logo depois chegava à portaria. E pediu:
– Desejo falar com a Sra. Beatriz Vaucher, da Fisioterapia.
– Um minuto, por favor.
Logo a moça saiu do elevador. Alta, morena, bonita, sorriso deixando ver duas covinhas profundas e graciosas.
– Alô! Tu és Flora? Eu sou Beatriz. Mas aqui todos me chamam de Bia. É mais fácil. Venha comigo.
Flora foi caminhando com Bia pelos extensos corredores do hospital; subiram o elevador e afinal a moça parou.
– É aqui o serviço de Fisioterapia. Vamos começar a visita por ele; afinal, é o meu trabalho! Bah!
Depois de uma olhada geral por todo o hospital, Bia foi mostrar o prontuário do paciente.
– O pai do guri irão doar cada qual um pedaço de seu pulmão; o transplante, será pois, bilateral. Você só poderá ver o paciente através do visor, pois ele não poderá ter contato com ninguém alheio ao serviço, para evitar contaminação.
Beatriz ia explicando o caso, enquanto andavam lado a lado, pelos corredores do hospital.
Flora viu, com emoção, o garoto deitado, sonolento, aguardando. O pai, ao lado, sendo preparado para o grande momento. Médicos e enfermeiras iam e vinham de todos os lados. Parando, examinando, executando procedimentos.
Beatriz continuava explicando cada detalhe do que acontecia. O fotógrafo do jornal teve consentimento para tirar algumas fotos.
Depois voltaram ao serviço de Fisioterapia; Flora viu e mandou fotografar os aparelhos, a sala dos exercícios. Só foi documentado aquilo que Bia permitia.
E Flora começou a entrevista.
– Como tudo começou em seu serviço?
– Começou em Pelotas. Fundou-se uma associação chamada ADOTE (Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos). Após a morte de seu filho Eduardo e de sua sobrinha Carolina, o agrônomo Francisco Neto de Assis fundou a associação. Pouco antes de morrer, Eduardo pediu ao pai, que abrisse uma página na internet, para incentivar a doação de órgãos. A página teve grande repercussão e deu origem a ADOTE.
– Vocês se basearam em outros serviços, do Brasil ou do exterior?
– Sim; em 1960 foi feita uma experiência em Toronto, Canadá. A Ciclosporina em 1983. Em 1989, foi realizado o 1º transplante pulmonar unilateral, em um paciente de 27 anos, portador de enfisema pulmonar e bronquiolite obliterante. Era oxigênio dependente havia três anos.
Foi efetuado na Santa Casa de Misericórdia. Foi um transplante à esquerda.
– E a sobrevida? Perguntou Flora. Vocês documentam tudo, não?
– Com certeza! Ele sobreviveu dez anos, veio a falecer por Tuberculose Pulmonar.
Depois temos o bilateral; foi pioneiro na América Latina e no Brasil. Foi em 1993, no serviço do professor Camargo, aqui no Rio Grande do Sul. Temos até uma revista, a Transplanet, que fala de toda esta caminhada do transplante; darei a você um exemplar. Interessa?
– Claro; fico muito agradecida. Embora desconheça a maioria dos termos que você usa, procurarei aprendê-los. Disse Flora sorrindo.
– Em 1998 foram realizados mais sete transplantes. Em 1999, mais quinze, contando com este que você vai vivenciar logo mais. No total temos hoje, aproximadamente, uns 82.
– Como vocês aceitam os pacientes para o transplante?
– Há uma lista de gravidade; o paciente é listado à medida que fecha critérios de transplantes para o órgão especifico. Esta lista é organizada em critérios de gravidade.
– E este paciente de hoje? O que posso passar para os leitores? Quis saber Flora.
– A senhora é quem vai separar as informações. Ele veio para avaliação por uma doença chamada Bronquiolite obliterante.
O Dr. Camargo já tinha ouvido falar que nos EUA havia sido feito um transplante “in vivo”. Resolveu então tentar aqui e transplantar para a criança.
– Sendo pai ou mãe, faz-se os exames de compatibilidade?
– Bah! Com certeza! Não podemos, de nenhum modo, correr riscos!
– Onde é feita a incisão?
– À altura da região mamária.
– E o tratamento, como é feito?
– Há o tratamento pós operatório. O paciente luta pelo órgão. Existem várias centrais de órgãos no Brasil. Aqui, quero que você dê ênfase ao que vou dizer agora. Se possível escreva em letras garrafais:
1) Só se deve aceitar órgãos enviados pelos centros de transplantes credenciados e respeitados.
2) É necessário, no caso de transplante de órgãos de doadores falecidos, exigir o atestado da morte cerebral! Isto é coisa seríssima! A morte cerebral, deverá ser atestada após exame cuidadoso de médico neurologista que trabalhe em centro gabaritado e conhecido. Só depois dela constatada é chamada a central de órgãos.
– E a lista de espera é única?
– Sim; porque órgãos chegados de todo o país, poderão ser úteis a qualquer um que esteja na lista de espera. Compreende? Peço que a senhora esclareça ao público sobre a morte cerebral e as centrais para que todos saibam que, se há muita gente agindo de má fé, há muitos que trabalham nisto com amor e verdadeira dedicação!
Beatriz tinha os olhos umedecidos por gotículas de lágrimas, pela emoção com que falava. Flora compreendeu. E completou:
– Senti isso logo que comecei a percorrer os corredores deste hospital! Eu desejo que muitas pessoas trabalhem nesta seara com seu amor e sua dedicação.
– Tenho consciência disto. Mas agradeço teu elogio! É preciso sim, procurar ser competente e correto!
– E antes da cirurgia? Surge o órgão. Como vocês preparam o paciente?
– Ele é preparado no momento que chega à clínica. Porque quando o órgão aparece, deverá logo ser transplantado. O pulmão, por exemplo, com quatro horas, entra em isquemia. E se perde o órgão. Chega o paciente, é feito seu painel de células, o que significa, o índice de rejeição. São feitos exames de sangue, teste para Aids e Toxoplasmose. E outros exames de rotina, que não vou explicar, para não cansar seu leitor… Inclui nisto, radiografias, ultrassonografias, etc. Como medicação usa-se antibioticoterapia profilática, para evitar possíveis futuras infecções. Imunossupressores: ciclosporinas. O corticoide é controlado. O acompanhamento é mensal.
Faz-se reabilitação pulmonar, no caso nosso específico. Cada paciente tem seu protocolo, onde nós anotamos P.A. (pressão arterial), índice de saturação, frequência cardíaca.
Faz-se aquecimento, fortalecimento (peso) ½ quilo a 1 quilo, com exercícios diagonais de músculos superiores. Aeróbica e alongamento.
Ao término, novamente a FC e o índice de saturação.
– E durante a cirurgia? Flora estava realmente interessada.
– Os cuidados normais de uma grande intervenção. Talvez, algo um tanto mais exagerado, riu Bia.
– E depois?
– Bem, o pós operatório… Aí é que está todo o cuidado! Agora, é ser ou não ser! Os pacientes terão de ser observados cuidadosamente. Em casos em que tudo segue a normalidade, sem rejeições, o tempo de UTI é de 10 a 15 dias. Depois, no quarto, é um tempo de 17 a 20 dias. Quando o paciente obtém alta, deverá retornar duas vezes por semana, em data previamente marcada. Depois, uma vez por mês, a depender do caso. Deverá ficar na cidade onde se deu o transplante até um período de três meses. Depois revisão bimestral, depois trimestral, depois de nove em nove meses e até enfim, a revisão anual.
A medicação do pós é sempre para evitar rejeição: são as ciclosporinas e os corticoides.
– E se houver rejeição?
Flora estava ficando doutora no assunto.
– Boa pergunta; não coloque tudo que eu disse, faça uma triagem. Poderá cansar seu leitor. Afinal, ele é leigo e as palavras complexas cansam… Bom, vamos à rejeição: se ela é aguda, há o incremento corticoterapia, é o que chamamos em gíria de transplante, a Pulso terapia.
– Se crônica, sob a forma de bronquiolite obliterante, terá de ser tratada com aumento de corticoides e com ciclosporinas.
A rejeição surge em forma de alergia comum, com edema, rubor e prurido. Traduzindo, para o leitor não médico: inchaço, vermelhidão e coceira. Com o uso dos imunodepressores, os pacientes ficam mais susceptíveis às infecções. Todo cuidado é pouco!
– E os cuidados do pré e pós operatório?
– Para cada caso, para cada órgão, há condutas específicas a seguir.
– E a cirurgia?
– A cirurgia em si, varia. Com os pacientes, o órgão, a indicação do transplante. Após a cirurgia, é preciso enfatizar, o paciente necessita de acompanhamento psicológico, com pessoal preparado nos centros especializados e fisioterapia, no caso de pulmão e coração.
– E a estatística?
– É importante observar a sobrevida no primeiro, no quinto e no décimo ano.
– Ah! E quais os pacientes que têm direito ao transplante, quero dizer, quais as doenças preferenciais?
– Flora, depende do serviço, só em pulmão são mais ou menos 7. Acho que fica cansativo para seu leitor. O médico saberá indicar ao examinar o paciente. Não acha melhor apenas ventilar o processo para o leitor?
– Você tem razão. Dou então, por terminada a entrevista.
Almoçaram; assistiram à cirurgia. Flora quase desmaiou de emoção. Delicadamente, Bia levou-a à outra sala até que ela parecesse melhor, mais curada.
Voltou ao hotel depois que certificou-se que o paciente estava bem.
No dia seguinte, pela manhã, chegou a PUC. Na pediatria, recebeu-a a Dra. Angela Cristina, residente da Unidade Infantil. Era o Hospital São Lucas.
Percorreu com a médica o serviço observando os detalhes. E começou a entrevista:
– Qual é o caso atual de transplante?
– Nosso pequeno paciente é um menino de oito anos, portador de insuficiência renal crônica, ele está bem, na UTI e até agora não houve rejeição.
– O que significa ter que transplantar? Continuou perguntando.
– Transplanta-se o órgão que não consegue mais atingir sua função, nem nos limites mínimos:
1) O rim que não excreta
2) O pulmão que não oxigena
3) O coração que não ejeta sangue
4) O fígado que não metaboliza
O transplante é, como você já viu, Flora, um tratamento altamente caro, não muito viável, infelizmente, para todo paciente. Porque:
– E… Falamos tanto em imunossupressores. Como defini-los, doutora?
A residente é linda. Uma jovem mulher pequena, de cabelos castanhos e curtos, olhos esverdeados e vivos. Traços delicados. Responde a Flora com propriedade e segurança:
– Imunossupressores são medicações usadas nos transplantes, porque reduzem a resposta do sistema imune aos organismos conhecidos como não próprios. Porque a rejeição é uma luta do organismo para afastar e retirar uma proteína desconhecida para ele. Entende?
Flora agradeceu, desejou bom trabalho à medica e despediu-se.
No dia seguinte, tomou o avião para São Paulo. Voltava ao marido, ao seu viver diário, ao convívio dos amigos. E sobretudo feliz, por tudo que aprendeu no grandioso universo do transplante…
Em sua bagagem, todo um arsenal sobre transplantados.
E, por incrível que pareça, tudo isto mudou o curso de sua vida.
Ela, nunca mais foi a mesma criatura!…
**********************
11.
Para comemorar a cura de Guilherme, o grupo todo resolveu assistir à temporada de ópera no Municipal. Era o último dia; a primadona, após uma interpretação magistral da “La Traviata”, ao receber a ovação calorosa do público de pé, flores, e aplausos, despediu-se de todos, com voz embargada de emoção, dizendo possivelmente nunca mais voltar a cantar. Explicou que a doença em suas cordas vocais a iria privar paulatinamente da voz e ela teria de abandonar a carreira em meio a todo um trabalho de amor. Apenas haveria um jeito, dissera, se ela se submetesse a uma tentativa de transplante, pois um médico otorrinolaringologista que viera do exterior estava iniciando experiências neste campo; mas os resultados ainda eram duvidosos, deixando muito a desejar. Alguém perguntara da plateia:
– Você se submeteria, Violeta di Parma?
A moça, procurando com os olhos negros a pessoa que falava, pensou por um instante e emocionada, respondeu:
– Claro! Cantar é minha vida! O que gosto de fazer! Como poderei viver sem minhas óperas? E seus olhos umedeceram.
– O que espera então? Perguntou outra pessoa.
– Alguém que possa doar suas cordas vocais… Tem que ser uma mulher, com voz de soprano lírico, como a minha, e com componentes imunológicos compatíveis com os meus… Suspirou a moça, já agora sem chorar, comovida com o interesse da plateia.
– É difícil então! Falou alguém.
– Mas não impossível! Gritou outra pessoa, que não era outro senão Guilherme. Espere e obterá seu transplante; também eu, veja, estive cego por alguns anos. Hoje, recuperei a visão graças a um transplante de córnea, que o Dr. Lauro Facchini fez. Não perca a esperança!
Agora Guilherme sentava-se visivelmente emocionado. Todas as pessoas haviam sido tomadas pela emoção. Dando-se as mãos, comandadas ninguém sabe mesmo por quem, as pessoas começaram a rezar. “O Senhor é meu pastor, nada me faltará!” De repente cantavam, meneando o corpo, num balé original! Os músicos tomaram aos poucos seus instrumentos e acompanharam baixinho a multidão. Violeta di Parma chorava, a cabeça entre as mãos, tomada da mais pura emoção; mas, mesmo assim cantava…
Quando a última nota soou, uma salva de palmas encheu o recinto. Violeta também aplaudia e agradecia chorando. Alta, elegante, muito alva, de cabelos e olhos negros, um pouco cheia de corpo, era uma mulher jovem ainda, os cabelos soltos nas costas, brilhantes e revoltos, ela parecia ter 30 anos mais ou menos. Rosto bonito, traços delicados, bem parecia a heroína de Verdi, lânguida e delicada…
Quando chegaram ao salão do teatro, Flora comentou:
– Parece que todo mundo precisa de transplante! Meu Deus, se eu morresse amanhã, queria que todos os meus órgãos fossem doados. Puxa! É horrível ver as pessoas pedindo órgão para viver e diariamente, milhares de pessoas sendo enterradas para apodrecer, levando tudo para o túmulo, quando poderiam ser tão úteis! Você já sabe, meu amor: quando eu morrer, doe tudo que puder de mim! Só assim ficarei para sempre ao seu lado! E veja bem: não desgrude mais das pessoas que me receberam, pois eu estarei lá vivendo por você e para você! Flora sorriu para Eduardo, beijando-o.
– Flora, por favor! Já lhe pedi que não fale em morte; pense em nosso filho! E acariciou a barriguinha que já se anunciava.
Todos sorriram.
– Você prestes a doar a vida, menina, e falando bobagens! Repreendeu Lucila. Credo! Alguém dará as cordas vocais para Violeta! Nós vamos viver ainda muito!
– Isto é que é falar! Disse Eduardo. Vamos viver ainda muito!
– Além disso, ninguém aqui tem voz de soprano… O que mesmo? Perguntou Teresa.
– Eu tenho! Afirmou Flora estremecendo. Soprano lírico… Explicou delicadamente à amiga.
Uma sensação de mal estar perpassou pelo grupo.
– Vamos ao jantar? Perguntou Guilherme, quebrando o gelo.
– Vamos! Disse Flora. Estou faminta. Parece que como por quatro!
Riram todos e logo, esqueceram o acontecido; não se falou mais em transplante durante muito tempo…
Uma manhã Flora pediu ao marido, enquanto ele fazia a barba para ir à Universidade:
– O que você acha de eu ter este nenê na Bahia?
Eduardo pensou um pouco e respondeu:
– Excelente ideia! Lá você tem sua mãe, sua irmã e meu pessoal. Tem seu médico de confiança…
– É… Quero ter este peralta acompanhada por Dr. Alexinaldo Portela; você sabe, minha irmã, sua irmã, foram bem sucedidas com ele…
– Não precisa justificar, querida! É muito bom que você se sinta bem no momento maior de nossa vida, seu parto! É muito importante para o bebê e para você que o ambiente seja o mais tranquilo possível; veja quando você quer viajar; mas assim que começarem as possibilidades dele chegar me avise! Quero assistir a tudo, quero receber em meus braços este pequeno herói! E Eduardo, largando o aparelho de barba, abraçou a mulher a quem ele tanto amava. Assim os dois ficaram um tempo. Depois, ele desenlaçando a moça voltou à barba, enquanto ponderava:
– Telefone hoje para dona Jacira, combine tudo; o que vocês decidirem, eu concordo. Mande logo avisar ao doutor Alexinaldo: quero para vocês dois, o melhor!
Assim, quando chegou ao 7º mês, Flora já tinha pronto o enxoval do bebê, já sabia que ia parir no Hospital Santo Amaro, tudo estava rigorosamente programado.
Naquela manhã, ela chegou radiante ao apartamento. Fora ao médico fazer uma ultrassonografia. Trouxera o resultado e mal podia esperar o marido para mostrar. Passara como um furacão no jornal, entregara sua matéria e viera para casa. Dormiria à tarde, e à noite eles sairiam para comemorar…
Flora adormeceu com um doce sorriso; que bela peça iria pregar em Eduardo!…
Quando ele chegou, cansado, dirigiu-se ao banheiro. Ela foi recebê-lo toda arrumada, perfumada e com ar misterioso. Eduardo notou, mas nada comentou. Flora fora sempre uma mulher imprevisível: ele nunca sabia o que ela faria dois minutos depois… Era uma surpresa atrás da outra, ainda bem que sempre coisas boas e alegres. Flora era a encarnação da própria alegria.
– Está treinando para quando o moleque chegar, para ver se ele se esfrega direito? Brincou ele.
– É… Mais ou menos… Hoje não tenho vontade de largar você! E brincou com o sexo do marido disfarçadamente.
– Olhe! Eu me descontrolo e vou ai pegar você, sua moleca! E Eduardo ria, enquanto pensava como era feliz: uma mulher completa como Flora pouca gente possuía…
Quando ele foi vestir-se ela perguntou com ar de menina marota:
– Que tal usar uma camisa social, para comemorarmos?
– Comemorarmos? O que, meu amor? Ele perguntou, franzindo a teta.
– Comemorarmos… Veja isto! Disse, pegando estabanadamente o exame na cabeceira da cama. Veja! E sorria, seus dentes lindos, alvos e certos, aparecendo como um colar de pérolas perfeitas.
Eduardo fitou os quadrinhos, o exame e nada aconteceu. O que a deixa tão feliz? Perguntou. Já sabemos que é um bebê, querida! Disse ele espantado.
– Um bebê! Ela sorriu. Leia! Aqui! Aqui em baixo…
Eduardo leu. E deu um grito espantado.
– Caramba! Querida… Como pode ser?
– Sendo, ora esta! E Flora riu deliciada.
– Vamos avisar à turma! Decidiu ele.
– Não antes de comemorarmos sozinhos. Só nós dois!
– Tem razão! Concordou o marido. Só nós dois!
12.
Maria José retornou à São Paulo para fazer novos exames. Sua amizade com Flora aprofundou-se cada vez mais: havia admiração e ternura entre as duas. A moça acompanhava-a ao hospital e depois as duas saiam passeando ou nas praças ou nas lojas. Almoçando pela cidade e geralmente comprando coisas para o bebê.
**********************
Eduardo e Flora resolveram convidar os amigos para dar-lhes uma surpresa. Maria José, estando em São Paulo, iria também.
O pequeno apartamento, bem arrumado e alegre, cheirinho bom de fritura, aspecto festivo; Flora elegantemente vestida, de futura mamãe, recebia a todos com um sorriso enigmático; Eduardo ia e vinha servindo batidas feitas por ele próprio, especialidade da casa.
Quando todos haviam chegado, a música de Vinícius de Moraes enchia o ar com a suavidade de que Flora tanto gostava. Marisa, curiosa e impaciente, perguntou:
– Mas afinal, que mistério é este, gente? Qual é a surpresa de que vocês tanto falam? Flora ganhou na quina?
– Sim, ponderou Sônia. Temos nos perguntado frequentemente qual será a surpresa! E aí, amiga?
Flora olhou sugestivamente para Eduardo e sorriu. O marido levantou-se, abraçou-a e juntos, numa atitude de ternura e de muita felicidade, ele explicou:
– Flora e eu temos uma surpresa, sim! Fale, querida!
Flora pigarreou, olhou um a um os presentes e num rompante, contou a novidade:
– Adivinhem quantos bebês tenho aqui? E vitoriosa apontava a barriga já bem grandinha.
– Quantos? Perguntou Lucila surpresa. Não é só um?
– Dois! Gritou Sônia.
Flora e Eduardo sorriram deliciados.
– Cinco! Aventurou Mazé meio desconfiada.
O casal continuava a sorrir, fazendo a negativa com a cabeça.
– Dou-lhe uma, dou-lhe duas… Dou-lhe três… Disse Eduardo.
– Três! Gritou Flora triunfante.
– Está brincando! Disse Sônia impressionada. Trigêmeos! Meu Deus, que lindo!
– É lindo, mas imaginem o trabalho, comentou Lucila. Três bebês famintos e chorando de uma vez… Cruzes!
– Três meninas? Perguntou Teresa que se mantivera calada observando, como era seu costume.
– Não; parece que são duas meninas e um rapazinho… Disse Flora e seus olhos brilharam com amor.
– Eduardo Júnior, Liliana e Luciana, concluiu Eduardo não cabendo em si de orgulho.
– Produção em massa, hein, companheiro? Brincou Marcelo.
– É isso aí, é para quem pode… Brincou também Eduardo.
– Flora tem tanta energia que até para parir, ela extrapola! Brincou Sônia.
– Lá isso é verdade… Comentou Teresa.
– Vamos então ao brinde… Disse Lucila.
– Vamos! Aos trigêmeos mais lindos do mundo!
Um mês antes dos meninos nascerem, Flora foi com Eduardo para Salvador. Marcou hora com Dr. Alexinaldo Portela. Foi encontrar o médico com aquela tranquilidade que ela tão bem conhecia.
Flora conversou com ele, mostrou os exames que fizera em São Paulo. Dr. Alexinaldo examinou-a cuidadosamente e depois comentou satisfeito:
– Você tem tudo para parir natural, Flora. É jovem, tem uma bacia larga, é saudável. Vamos partir para um parto normal. Como são trigêmeos entretanto, vamos ficar alertas. Quero que me faça estes exames e volte aqui quando estiverem prontos. Qualquer novidade nem telefone, venha logo aqui.
Foi levá-la à porta; seus olhos verdes, tristes e doces, sua segurança, fizeram a moça sentir-se em casa, confiante, tranquila.
– Voltarei, doutor, disse simplesmente despedindo-se e saindo com Fernanda.
– Você é tão forte em tudo, minha irmã, que até para parir começa com três! E Fernanda ria deliciada.
– Acho que é esta ânsia louca que tenho de viver! Explicou Flora. Quero fazer tudo logo, realizar coisas, sinto uma aflição quando tenho de esperar… Deve ser meu temperamento irrequieto…
– É… Deve ser… Também não posso falar… Comecei com Gêmeos… Disse Fernanda sorrindo.
**********************
Flora sentia agora o quanto suas vidas iriam mudar: dependeria tudo daí pra frente do bem estar e da comodidade das crianças; não mais sair por aí nas praias, no campo, na serra, ou na grande São Paulo, os dois com os amigos, rindo e brincando, sem hora para voltar, madrugada a fora, dias a fio de passeios, natação e mergulhos, acampando, conhecendo, desbravando. Agora, por algum tempo, pelo menos até que as crianças crescessem, eles teriam que ficar em casa, chocando os rebentos, até que emplumassem e pudessem acompanha-los em suas andanças…
Mas, mesmo assim, a felicidade dos dois não tinha limites…
Flora recebeu carta de Maria José, de São José do Rio Preto; dizia ela que seu médico a chamara para ir até São Paulo; havia a possibilidade de um transplante. Mostrava-se felicíssima, pois quando os bebês chegassem, ela poderia cuidar deles, pois já seria uma pessoa forte e saudável…
E afinal chegou o dia tão esperado por Flora: um sinal de sangue mostrou-lhe que estava na hora da chegada dos bebês! Telefonou para Dr. Alexinaldo. Do outro lado do fio a secretária da clínica orientou-a para ir até o consultório. Flora foi com Fernanda e dona Jacira. Antes ligou para São Paulo, e deixou o recado com Teresa, que nunca saia às tardes, pois seu trabalho era apenas um turno. Antes dela sair, recebera o telefonema do marido dizendo que aguardava o pronunciamento do médico; conforme o que ele dissesse, iria naquele dia mesmo a Salvador.
Dr. Alexinaldo recebeu Flora com aquele sorriso indefinido, cheio de tranquilidade e bondade, que por gerações a fio, encheu de confiança as mulheres baianas.
– Vamos, Flora. Então os bebês estão chegando? Vou examinar você!
Flora entrou, observou o conforto e o asseio do consultório; ela tremia ligeiramente de medo do desconhecido e de ansiedade. Vestiu o robe verde, olhou a calcinha: a mancha de sangue na calça trocada ao sair de casa não aumentara muito. Seria um sinal? Perguntara a si própria. Ou rebate falso?
Após o exame, Dr. Alexinaldo disse tranquilamente:
– Parabéns! Está na hora! Pode sair daqui, arrumar suas coisas e, com calma, seguir para o Hospital Santo Amaro, como combinamos. Temos algumas horas pela frente. Quero que fique tranquila, descansando, aguardando seu grande momento.
– Estou tranquila, doutor! Respondeu Flora mas sorriu, percebendo que suas mãos tremiam.
– E é para ficar; está tudo bem. Seu parto vai ser normal ao que tudo indica.
Batendo amistosamente em seu ombro, ele levou as três mulheres até a porta e despediu-se, dizendo:
– Está tudo bem; qualquer alteração, telefonem. Passarei no hospital daqui a umas duas horas…
– Até logo, então.
E despediram-se.
Em casa, pegaram a mala dos bebês, as roupas de Flora; Eduardo ligara e fora informado do andamento da situação. Viria diretamente do aeroporto para o hospital. Ele não cabia em si de felicidade. Era todo emoção quando chegou. Flora já estava na sala de partos. Ele entrou, olhou-a com muito amor, segurou a mão que ela lhe estendia sorrindo vagamente. Beijou sua testa suada. Dr. Alexinaldo conversava animadamente com seus auxiliares e com Flora… Que não gritava para não prejudicar aos filhos e nem apavorar Eduardo. Tomava soro e Eduardo se deixava ficar olhando o líquido descendo calmamente, gota a gota, para ir cair nas veias da esposa. Às vezes, uma contração mais forte, que cada vez se fazia mais frequente. Aí então ela gemia e suava.
Eduardo, como todo homem, nesta hora, sentia-se impotente; alisava o rosto suado da esposa e ela sorria debilmente, pousando nele, seus doces olhos verdes…
As contrações intensificaram e Flora mexia-se inquieta, suando mais, gemendo e rezando. Eduardo saiu um pouco. Estava nervoso e não queria passar sua emoção para Flora. Uma atendente chegou perto dele e tocou-o no braço:
– O primeiro bebê coroou; o senhor não quer vê-lo nascer? Sua esposa está chamando.
Recompondo-se, ele sorriu e tentou ser corajoso.
– Claro! Vamos!
Com maestria, o médico puxou o bebê, segurou-o com jeito, e o entregou à atendente que o esperava para arrumá-lo e embrulhá-lo. Ele berrava, zangado por terem empurrado seu corpinho para fora do seu leito quente e macio…
– É um menino! Falou Alexinaldo.
– Miudinho, não é doutor? Arriscou Eduardo.
– Não se esqueça de que são três, meu amigo! Brincou o médico.
Eduardo perguntou timidamente:
– Posso beijá-la? E apontou Flora.
– Pode e no fim, vão ser três comemorações…
– Está bem.
Flora olhou-o e sorriu. Logo sua testa voltou a pingar gotinhas de suor; as contrações voltaram e começou tudo de novo. Meia hora depois, nascia uma menina. E assim foi até que o último bebê nascesse: outra menina!
– Todos nasceram bem, apesar do pouco peso. Mas isto o pediatra vai contornar. Gostou dos presentes? Perguntou sorrindo o médico.
– Muito, doutor! São… Perfeitos? Perguntou Flora num sopro de voz.
– São; está tudo bem? São perfeitos e saudáveis. Já fui vê-los, fique tranquila. Seus garotos estão ótimos! Descanse agora; à tarde voltarei aqui. Até logo! Qualquer coisa Eduardo, você tem meus telefones. É só ligar…
**********************
Flora ficava toda atrapalhada para dar mama às crianças. Fernanda ajudava, Jacira também. O pior era que os três berravam ao mesmo tempo. Uma das meninas, a que tinha menor peso, teve que ficar um pouco mais no berçário. Flora recusou-se a deixar o hospital sem a filha:
– Só saio com os três. Não me custa esperar um pouco mais…
A pediatra convenceu-a que poderia vir todos os dias ver a filha e amamenta-la. E assim, ela concordou. Vinha amamentar pela manhã e à tarde. Conversava com o bebê como se ele entendesse e sempre saía triste, com uma leve sensação de perda…
Seus olhos voltaram a brilhar no dia em que Dra. Teresa Eugênia, a pediatra, disse, com um sorriso:
– Sua mocinha terá alta hoje, dona Flora. Passe em minha sala para que lhe dê algumas informações…
E assim, Flora se viu em casa, com três bebês que berravam por comida, feliz com aquele azáfama de trocar fraldas, de dormir mal às noites, de passar o dia envolvida com mamadeiras…
**********************
Quando voltaram a São Paulo, os meninos já estavam taludos, com três meses mais ou menos. Eduardo veio busca-los. Dona Jacira e Dr. Fernando iriam com eles até que as crianças ficassem um pouco mais fortes. Flora arranjara uma empregada antiga de toda confiança e uma especialista em bebês para cuidá-los. O pequeno apartamento de São Paulo agora ficara menor. Em seu quarto dormiam eles e os três bebês. Na sala, os pais de Flora e no quarto de empregada as duas moças. Flora, habituada à solidão, ficava feliz vendo tanta gente que se atravancava pelo minúsculo corredor, indo e vindo em função das crianças. Eles eram calmos e bem humorados, não choravam demais. Só quando tinham fome ou quando sujavam as fraldas. Como se alimentavam bem e Flora tinha muito leite, sua alimentação não era problema.
E os três bebês cresciam fortes e saudáveis. Tinham seis meses cumpridos quando os pais de Flora decidiram voltar à Salvador. Apesar da saudade, a vida voltou ao normal; Flora sabia que logo retornariam e ficaria perto da família novamente.
Os meninos já haviam feito o primeiro aniversário. Eduardo terminara o curso; fizeram despedidas, trocaram endereços e ei-los que voltam para Salvador.
Começaram vida nova, aos poucos foram adaptando-se à sua realidade.
Voltaram à rotina de vida: trabalho, visitas à família, idas aos parques e à praia com as crianças.
**********************
Dois anos depois, Eduardo entrou em casa, um dia, sorridente, balançando um papel na mão direita. Flora olhou-o divertida e perguntou:
– Que é isso Du, carta?
– Adivinhe, se é capaz! Dou-lhe uma… Dou-lhe duas…
– Carta de São Paulo… Deixe ver: de Mazé!
– Hum… Hum… Não senhora! E balançava a cabeça negativamente.
– Sônia! Respondeu Flora impaciente.
– Também não! Errou, mocinha…
– De quem então?
– Errou: não é carta!
– O que é então?
– Aí é que está: adivinhe!
Depois de algum tempo dando tratos à bola, Flora respondeu:
– Está bem, desisto. O que é?
– Duas passagens para curtirmos as férias em São Paulo! Só dois… Que tal uma nova lua de mel?
– Mas Du e as crianças?
– Ficarão com dona Jacira e Dr. Fernando. Já falei com ela. Mamãe também se prontificou a ajudar… Achamos que você precisa de férias de verdade… Com as crianças você não vai poder aproveitar. Passaremos 15 dias lá e depois voltaremos para a ilha onde reencontraremos as crianças e toda a família. Que acha disso? Se você não concordar, vendo as passagens e iremos logo para a ilha… Disse ele, não querendo desagradar à esposa.
Flora pensou por uns instantes. Depois, olhando para Eduardo, compreendeu como aqueles dias sozinhos seriam importantes para os dois. Com um brilho de felicidade nos olhos verdes respondeu suavemente:
– À nossa lua de mel! E atirou-se ao pescoço dele beijando-o sofregamente.
– Que seria de mim sem você, querida? Perguntou ele com carinho.
– E que digo eu, meu amor? Perguntou Flora já excitada com os carinhos de Eduardo.
E naquela noite ficaram os dois até tarde decidindo detalhes, passeios, e dando risadas felizes saboreando o gosto doce dos sonhos…
**********************
13.
Em São Paulo foram recebidos pelos amigos com muita alegria; as crianças haviam crescido. Maria José não conseguira ainda seu transplante e estava cada vez mais fraca e deprimida. Angélica também aguardava. Flora levara para ela vários presentes o que fizera a menina muito feliz.
Essas férias se repetiram anualmente; eles se sentiam presos a São Paulo por aquelas pessoas tão queridas. Os meninos já haviam feito quatro anos quando os pais voltaram sozinhos no mesmo esquema. Perto da volta à Salvador, combinaram uma ida à Santos. Iriam de carro, todo o grupo e lá ficariam um fim de semana. Depois arrumariam as malas para a volta à casa.
Flora aproveitou excepcionalmente Santos: a praia, as boates, as lojas. Riu muito, dançou, conversou, bronzeou-se sob o sol. Como tudo que fazia, como se fosse pela última vez, com aquela gana de viver intensamente. Na volta para São Paulo, o carro em que vinham quebrou a barra de direção. Rabeou na estrada, derrapou e foi cair numa ribanceira, capotando duas vezes; Flora foi jogada fora e bateu com a cabeça numa pedra grande. Sua vida, tão forte, esvaiu-se ali num pequeno filete de sangue que lhe saia da nuca e tingia a roupa clara. Um leve sorriso lhe entreabria os lábios… Era o esgar da morte…
No interior do carro, os passageiros estavam desmaiados. Como o acidente fora ao entardecer, vários carros iam e vinham pela pista e logo pararam para dar socorro. Chamaram a polícia rodoviária; chegaram duas ambulâncias. E os corpos foram retirados, e levados com vida para o hospital mais próximo. Logo deram conta do corpo estendido a poucos metros do carro: Flora já não respirava mais… O filete de sangue já coagulara, mas o sorriso persistia como se ela dissesse:
– Não disse que precisava viver logo? Não tinha muito tempo disponível…
O corpo foi removido.
Os outros amigos que vinham atrás em seus carros, assistiram à cena dolorosa. Acompanharam as vítimas e logo avisaram a Salvador. Marisa telefonou e conseguiu falar com Fred.
– Qual é o voo da macacada? Perguntou ele, brincando. Estou a postos para buscá-los…
Marisa estremeceu. Como dar a notícia? Pensou.
– Fred… Aconteceu um acidente… Nós vínhamos de Santos e…
– Estão feridos? O que posso fazer para ajudar?
– Escute Fred… Eduardo está ferido com as duas pernas fraturadas e alguns ferimentos, mas está sem perigo de vida. Só que terá que ficar em São Paulo por mais alguns dias…
– Mas está vivo e bem, não é? Perguntou o rapaz animado. E minha irmã, como está?
Marisa engoliu em seco; sabia o que Flora representava para ele. Reunindo toda a sua coragem, ela falou, num fio de voz:
– Flora… Flora faleceu no local do acidente…
– O que? Gritou Fred do outro lado da linha. Você está brincando! Isto é um trote, um trote desgraçado!
Com os gritos do rapaz, Jacira correu para saber o que estava acontecendo. Desesperado pela dor, ele falava sem perceber o que estava dizendo:
– Um acidente, mamãe, com Flora e Eduardo. Mas eles estão bem…
Marisa aguardava na linha. Fred voltou a falar com ela:
– E Flora, minha irmã, repita tudo por favor! Não entendi bem…
– Infelizmente para nós todos, Flora faleceu no local do acidente… Bateu a cabeça num penhasco… Nada se pode fazer… Meus sentimentos…
– Você quer dizer que Flora morreu? Ele perguntou desarvorado.
– Infelizmente… Respondeu Marisa constrangida.
– Meu Deus! Minha irmã! Não, não é possível! Vou desligar, Marisa, falo com você mais tarde…
Já era quase noite, Marisa e Guilherme aguardando o corpo de Flora.
Eles iam começar a tomar as providências para transportar o corpo, quando veio um chamado telefônico:
– O senhor é o responsável pelo corpo de Flora Guimarães Junquilho?
– De certo modo, sim, respondeu Guilherme emocionado. O marido dela foi acidentado e o resto da família está em Salvador. Somos amigos.
– Aqui é da Unidade de Transplante; a dona Flora doou seus órgãos para nós, temos a papelada toda preparada. Doou também as córneas. Podemos pegar o corpo?
– O levantamento cadavérico já está sendo efetuado. Vou chamar o responsável; o senhor deve comunicar-se com ele. Nós estamos cientes do desejo dela; sempre externou publicamente sua opinião de doação.
Guilherme saiu do telefone com um aperto no coração. Lembrava do tempo em que aguardava, ele próprio, as córneas que lhe devolveriam a visão; tanto que Flora os ajudara e do quanto ela ficara revoltada porque as pessoas não doavam órgãos, preferindo apodrecê-los embaixo da terra… Ninguém jamais pensara que tão jovem, tão cheia de vida, ela se fosse assim, desta maneira estúpida, tão cedo!
Logo Fernanda ligou em prantos; queria detalhes, queria saber tudo sobre a irmã.
Novamente Marisa, com muito cuidado para não magoá-la, explicou em detalhes o acidente e falou na doação dos órgãos. Isto tinha que ser feito imediatamente. Fernanda quis opor-se à determinação da morta; Marisa ponderou-lhe que Flora havia deixado tudo escrito, tudo encaminhado: era sua vontade e ela externara sempre isto em público.
Fernanda discutia:
– Mas deixar que tirem tudo da minha pobre irmã!
– Mas ela queria, Fernanda, queria ser útil mesmo após ter mudado de dimensão… Explicava Marisa.
– Não me conformo, Marisa! Bradava Fernanda com voz de choro.
– Nós também não… Soluçava Marisa. Iremos todos para o enterro acompanhando o corpo… Disse, como consolação para ambas.
Mais cedo do que Marisa pensava, o corpo fora liberado pela perícia e encaminhado à Unidade de Transplante. Dois dias depois Flora embalsamada, voltava para Salvador, com o marido e os amigos no mesmo avião. Eduardo fora transportado com esforço para um hospital de Salvador. Ficaria hospitalizado um período e depois recomeçaria sua vida; recomeçar sem Flora? Como conseguir?
Os gêmeos nada sabiam sobre a morte. Viam o pai chorando pelos cantos, os avós, os tios. Uma família tão alegre, que de repente, ficara tão triste. Eles não entendiam… Mas a saudade e a ausência da mãezinha, tão meiga e alegre, os fez compreender, aos poucos, aquela viagem para longe, tão distante, que nem um cartãozinho chegava lá…
E então choraram, abraçados, à noite, na hora de falar com Papai do céu, como Flora ensinara. E pediam:
– Papai do céu, mamãe do céu, leva a gente pra ver mainha…
14.
Em São Paulo, Maria José foi surpreendida com um chamado da Unidade de Transplante.
– Dona Maria José, temos dois corações à sua disposição. Quer vir até São Paulo?
– Claro, doutor. Irei hoje mesmo!
Estava cansada, mas não podia desistir. Seu coração estava sofrendo muito a grande perda. Mas ela sabia que a própria Flora a empurraria para a cirurgia. E foi.
– Faremos os testes imediatamente; este coração foi rejeitado pelos outros pacientes da lista. Veremos o que ocorrerá com a senhora.
Ela já não tinha muita fé de que conseguiria; a morte de Flora deixara-a tão chocada, que nem tinha ânsia para desejar seu novo coração.
Tremia ligeiramente quando apertou a mão do irmão e da cunhada na ante sala dos testes imunológicos. Falou, quase num murmúrio:
– Se Flora não tivesse morrido, estaria aqui comigo, dando aquela força que só ela sabia ter…
– É isto aí, querida, dissera Sônia; faça de conta que ela está aqui e vá sem medo. Coragem, vai dar tudo certo!
Maria José entrou para a sala acenando de leve, com um ar de tristeza e de conformação; dir-se-ia que tinha certeza de que mais uma vez não conseguiria!
**********************
15.
Para Eduardo, sua vida doméstica, sofrera uma revolução amarga…
Após a morte de Flora e sua alta do hospital, voltara para casa e tivera que enfrentar a nova realidade.
Contratara uma governanta. Manteve as três babás, uma para cada criança. Mesmo assim, a sogra e as cunhadas, a mãe e irmãs, alternavam-se nos cuidados com as crianças. Chegou a um ponto que todos da família sabiam tudo sobre os gêmeos. Ele sabia que isto era amor; mas percebeu um dia, com um sentimento impreciso de angústia, que a privacidade de sua casa, havia sido terrivelmente invadida.
Nunca ficava a sós com os filhos; havia várias pessoas a inventar jogos, brincadeiras, procurando distraí-los.
Frequentemente levavam os meninos para passear; seus pais chegaram ao ponto de levar as crianças para viajar e só depois comunicaram a ele, o pai!
Flora e Eduardo formaram um casal alegre; gostavam da família e dos amigos perto deles. Mas sempre foram zelosos demais com seu lar, seu ninho e o mantiveram, sem causar mágoas, seu cantinho reservado para os dois e os filhos, sem permitir intromissão de ninguém. Resolviam seus problemas juntos, tudo combinado e bem esclarecido. Raramente solicitavam opinião de alguém.
Unidos, por aquele amor infinito, haviam construído seu universo indestrutível.
Tudo isso, fez com que se decidisse a viajar, pensar melhor distante, porque desejava ardentemente mudar tudo…
**********************
Chegou a São Paulo ansioso para rever os amigos.
Marisa e Guilherme foram buscá-lo no aeroporto e o levaram para sua casa.
– Quero ficar em um hotel, perto de vocês; não desejo dar trabalho, dissera Eduardo, logo que colocara as malas no carro.
– Na… Nani… Na… Não! Dissera Marisa, sorrindo. Onde já se viu? Ora, convenhamos! Está se sentindo muito importante, doutor! Você vai ficar conosco, está decidido e pronto!
À noite, começaram a chegar os outros do grupo. Era a primeira vez que se fazia uma reunião festivamente sem Flora. Eduardo sentiu uma dor aguda no coração quando viu os casais juntos. Eles tudo faziam para não magoá-lo. Nem sequer perto ficavam, respeitando sua dor.
Foi uma surpresa para todos a entrada de Maria José na sala; ela chegara sozinha, pois se atrasara no elevador.
Estava ansiosa para rever Eduardo; viera para sua avaliação anual e, ao saber da sua vinda, ficara mais uns dias para aguardá-lo.
Foi uma alegria eivada de forte emoção, pois parecia que Flora viera com ele, tal a forte sensação de sua presença.
Quando Maria José entrou, Eduardo teve uma grande surpresa ao vê-la: mais forte, mais bonita, mais elegante e bem vestida, maquiada e penteada. Os cabelos mais viçosos e os olhos tinham um brilho de felicidade…
Ao fitá-la, sentiu uma amargura inexplicável e, prorrompeu em soluços convulsos.
Os amigos fitaram-se atônitos. Ficaram comovidos e sem saber o que fazer, envolvidos também por aquela forte emoção.
Algum tempo ficaram assim; o grupo entreolhava-se, mas ninguém falava nada. Maria José ao vê-lo chorando, sentiu, de repente, uma vontade inadiável de abraçá-lo e confortá-lo. Caminhou em sua direção, coração aos pulos, como se lhe quisesse saltar pela boca e abraçou o amigo.
Com um carinho, quase amor, que nunca sentira antes por aquela criatura!…
Ao contato com aquele corpo jovem, agora cheio de vida, Eduardo sentiu voltar-lhe a vontade de ter alguém, uma mulher sua, uma companheira para amar…
Aos outros, esta reação não passou despercebida; antes, ficou bem clara. Eles se olhavam, procurando palavras para esclarecer um fato que lhes parecia sério demais para deixar-se passar em branco…
E recomeçaram os encontros do grupo: jantar aqui, almoço ali, sempre juntos.
Até, que uma noite, ao deitar-se, Maria José compreendeu, estarrecida e irritada, estar irremediavelmente apaixonada por Eduardo.
– Meu Deus, ela repetia em suas orações, eu nunca pensei nele como um homem; não sou traidora, seria incapaz de amar o marido de uma amiga. Logo Flora, que me ajudou tanto e tanto! Será que sou alguma vadia? Me ajuda, por favor, não permita que eu caia nesta tentação horrível!
Dois dias se ausentou para realizar seus exames; e usou este argumento, para ausentar-se definitivamente da vida do rapaz…
Quando Eduardo foi procurar com os vários médicos sobre os nomes e endereços dos receptores dos órgãos de Flora, descobriu que Angélica, a menina de quem ela gostava tanto, ficara com suas córneas. Uma senhora com o fígado. Outra com o rim. Violeta di Parma com as cordas vocais e… Maria José… Sim, Maria José, recebera o coração da sua amada.
Por este motivo, do desconhecer de Eduardo os receptores dos órgãos de Flora, os amigos ficaram atônitos com o que causou a ambos tanta emoção!
Eles ficaram comovidos, sem saber o que fazer, envolvidos que estavam também, naquela forte e intensa realidade!
Ele fora até a casa de Marcelo e pedira a Maria José para sair com ele, com o pretexto de comprar os presentes dos gêmeos. Pararam na praça que ficava em frente ao apartamento, na volta das compras e ficaram conversando. A moça tremia de emoção. Afinal, Eduardo falou o que ela mais temia:
– Eu já sei sobre você e o coração de Flora! Soube ontem, quando pedi os nomes dos receptores, pois quero visitá-los a todos. Maria José chorava silenciosamente. Ouvia calada, sem esboçar a mínima reação. Apenas dor.
– Você sabia? Ele perguntou com voz magoada.
– Marcelo me contou dois dias antes de você chegar, pois meu médico falou com ele que eu já suportaria a relação. Mas eu tive um choque, amigo! Foi preciso uma sedação, pois fiquei arrasada!
– Não gostou de ter o coração de Flora com você? Ele quis saber, meio magoado.
– Claro que gostei! E por isto, a emoção foi tão grande, que nem sei explicar… Quase morri quando me contaram…
Ela fitou Eduardo com tanto amor, que o rapaz estremeceu.
E naquele momento, ela compreendeu que a amiga o amara tanto, que seu coração continuava cheio de amor… Pelo marido!
Eduardo, pegando-lhe a mão com carinho, perguntou, quase num sussurro:
– Maria José, quer ser minha esposa?
Ela voltou a chorar convulsivamente. Demorou a responder e o fez ainda fungando e enxugando os olhos.
– Eduardo, não posso compreender meus sentimentos. Mas estou amando você, de maneira forte, vigorosa… É como se de repente, meus sentimentos se transformassem nas águas de um rio caudaloso, despencando em uma cachoeira tão alta, que meus olhos não podem alcançar o início da queda… Eu me sinto uma traidora!
– Não estamos traindo Flora; eu continuo amando-a como sempre. Mas… Infelizmente, ela não está mais aqui… Quer ser minha companheira, daqui em diante?
– Compreenda: não estou bem certa do que sinto. Meu coração ama perdidamente você. Mas… Não será Flora que o ama, através do seu coração a mim doado? Estou tão confusa! Não quero trair minha amiga! Compreende? E não sei mais sequer se o amor é meu ou dela!
– Também estou confuso… Há um sentimento forte que nasceu desde que lhe vi. E eu não sabia sequer que fora você a receptora. Será amor por você, ou pela energia de Flora, que ficou aprisionada em seu corpo? Não sei… Sinceramente, não sei!
– Eu não sei, Ed… Eu não sei!
Eduardo puxou-a para junto de si e passou os braços pelos seus ombros. Percebeu o quanto ela tremia. E perguntou, sorrindo:
– Quer tentar comigo, começar uma relação de amor?
Maria José respondeu, as lágrimas descendo lentamente por suas faces:
– Você sabe todo meu problema de saúde; conhece minhas limitações. Arriscaria tudo isto, mesmo assim?
– Mas claro! Sinto que amo você! Eduardo respondeu, puxando-a mais para si e beijando-a.
A moça deixou-se beijar. E aquele beijo, corroborou a certeza do quanto amava aquele homem.
– Você me dá um tempo para pensar?
Eduardo respondeu com outro beijo.
– Mas não demore demais… Preciso de você, Flora querida!
Ela fingiu não ouvir a troca de nomes. Sorriu tristemente para ele, enquanto pensava:
– Será que vou suportar, ser uma sombra, o fantasma de outro alguém? Mesmo que este alguém seja uma pessoa a quem quero tão profundamente, que até carrego seu próprio coração?
**********************
16.
Naquele dia mesmo, Maria José procurou seu médico e relatou-lhe tudo.
Pediu conselhos. Perguntou, ansiosa:
– Dr. Samuel, é possível, do ponto de vista médico, uma receptora de coração, apaixonar-se pelo marido de sua doadora?
– Por que, Maria? O médico perguntou sorridente. Está apaixonada pelo viúvo de sua doadora?
Maria José corou. E respondeu, angustiada:
– É verdade, doutor. Um estranho sentimento, um amor avassalador tomou conta de mim. Penso em Eduardo o tempo todo, não consigo mais viver sem ele. Quando me beijou, senti-me flutuando nas nuvens… É algo tão intenso, que me assusta! Nunca o havia olhado como homem! Sempre foi um querido amigo, marido de Flora, amiga especial. Depois que soube que foi minha doadora, minha gratidão tornou-se ilimitada! Não quero trair a amizade e a confiança de Flora, usurpando-lhe o marido. Portanto, quero fugir! Por favor, me dê um conselho: o que devo fazer, fugir, sumindo para sempre, ou ficar e casar com ele, sabendo, como sei, que ele ama à ela, mas vê em mim alguém em quem confia e que possui em seu corpo, o próprio coração da mulher amada?
– Mas… Espere, menina! Lamentavelmente, Flora morreu. O rapaz está viúvo, jovem e com três filhos para criar. Você está bem, muito bem, mesmo! Pode casar, sem maiores consequências. Claro que terá sempre uma vida poupada, observando rigorosamente os cuidados de um paciente transplantado. E, para isto, ninguém melhor que ele, para compreender suas limitações. E se este rapaz amá-la mesmo, não vejo porque fugir da felicidade… Vá em frente!
– Mas… E a traição?
– Você não está traindo ninguém, Maria José! Flora já não pertence a este mundo, e pelo que conheci dela, acho que ficaria feliz se vocês dois se unissem, pois ela bem sabe que mãe maravilhosa você seria para seus filhos!
– O senhor pensa sinceramente assim? Perguntou a moça, suspirando.
– Claro, quero ver você feliz! Vá em frente, menina; você merece este amor!
Maria José insistiu ainda:
– E a Medicina explica o fenômeno que está acontecendo comigo? Estou tão confusa!
O médico pensou um pouco e respondeu:
– Explicar, não explica! Mas Deus, em toda a sua generosidade, guarda sempre em sua caixa de Pandora alguns segredos, que esconde do Homem, por sentir que ele ainda não os pode conhecer a fundo. Já dizia o genial Shakespeare:
– “Há mais mistérios entre o Céu e a Terra, do que pode perceber nossa vã filosofia”! Vê? Portanto, pode ser um mistério. Um grande e maravilhoso mistério do Amor! Seja feliz, minha filha! Entendeu?
– Entendi… Muito obrigada!
Despediu-se do médico carinhosamente.
Mas, ao sair do hospital, foi à casa de Marcelo, seu irmão, arrumou suas coisas e deixou dois bilhetes: um para Eduardo, de despedida, com os presentes que comprara para os gêmeos. Outro para o irmão e a cunhada.
E partiu no primeiro ônibus que encontrou para São José do Rio Preto.
Fugia para sempre daquele amor que a deixava perdida e confusa. Que lhe falava de traição! Logo ela, tão rígida e correta em seus princípios de honestidade! Coração apaixonado, esquece este amor capcioso!
E partiu, enxugando as lágrimas que teimavam em umedecer seu rosto e tornar mais tristes seus doces olhos azuis…
**********************
17.
Eduardo procurara o Centro de Transplantes logo que chegara a São Paulo. Identificou-se, pegou o endereço dos transplantados e foi visitá-los.
Somente a receptora do coração não lhe fora revelada, pois seus amigos haviam pedido que eles queriam dizer-lhe a verdade…
**********************
Encontrou a receptora do rim em casa, feliz, sorridente. A moça cumprimentou-o comovida.
– Uma parte de sua esposa vive em mim e eu sou muito agradecida por isto! Apesar das limitações que tenho de obedecer, hoje posso viver sem depender de uma máquina, naquela angústia perene do:
– Haverá amanhã?
Eduardo abraçou-a ternamente. A família estava reunida para recebê-lo. Houve emoção e gratidão naquele encontro.
Flora parecia pairar no ar, tão forte era sua presença. Às vezes, Eduardo achava que, se elevasse um pouco a mão, tocaria na mulher amada!
Era comentário geral que, com o transplante, a moça melhorara o humor e o temperamento, sendo agora uma pessoa acessível, maravilhosa e fácil de conviver.
– Como a minha Flora! Ele disse e todos calaram, em respeito à sua dor!
Quando deixou a casa dela, levava consigo a certeza de que realmente Flora continuara lá, com sua energia generosa, naquele rim abençoado, que drenava fielmente os dejetos do corpo da moça…
E pediu para voltar sempre que a saudade fosse insuportável.
No que foi acolhido com muito carinho, por todos os familiares e pela própria receptora, que não sabia o que fazer para agradar à alguém que sofria tanto pela perda de um ser, que, ironicamente, lhe trouxera a felicidade!…
**********************
Foi procurar a mulher que recebera o fígado de Flora.
Ela abriu a porta sorrindo.
– Entre, doutor Eduardo! Para nós é uma felicidade tê-lo em nossa casa! Preparei, eu mesma, um jantar para o senhor!
Eduardo abraçou-a e não conteve a emoção!
Algo nela lhe lembrava Flora: o perfume, o andar de gazela, o sorriso…
Sutilmente, ele pressentia a esposa no ambiente, como se seu fígado doado generosamente para aquela mulher, houvesse trazido com ele, toda a força e o magnetismo da doadora!
Durante o jantar, o marido e a família, comentaram o quanto a moça mudara seu jeito de ser.
E, a nova mulher que lhe descreviam, era, em muitas nuances, semelhante à Flora!
Despediu-se, pedindo permissão para voltar sempre que pudesse, pois estar com os transplantados, minimizava sua saudade física da esposa!
**********************
Em Angélica, a garota a quem Flora tanto amava, as córneas dos olhos de Flora, iluminavam agora a vida daquela criança cega, ávida por ver a beleza da vida!
Eduardo decidiu doar para sempre uma mensalidade para que ela melhorasse de vida, podendo estudar e ser alguém com os olhos de Flora!
**********************
E a cantora Violeta di Parma?
Após o transplante, ela partiu para ser a prima dona das óperas de Verdi, Puccini e Carlos Gomes cantando com as cordas vocais de outra soprano lírica, chamada Flora. Flora Guimarães Junquilho, que Eduardo conhecia tão bem…
Ela viajara, mas deixara as mãos do seu médico, com presentes para Eduardo e seus filhos e uma carta, onde falava do seu grande reconhecimento pela recuperação de sua voz: ela iria cantar para sempre, com as cordas vocais de uma mulher maravilhosa, que se chamou Flora Guimarães Junquilho, cujo amor destilou tanta felicidade a diversas criaturas!
Obrigada, Flora! Obrigada, família abençoada, por ter recebido um anjo em seu caminho! Mil vezes obrigada!
Violeta di Parma.
**********************
Foi naquela casa humilde, onde morava a receptora das córneas, mais do que em qualquer outro lugar que visitara, que Eduardo sentiu mais forte a presença da mulher amada. Aquelas pupilas negras o fitavam e pareciam sussurrar:
– Posso vê-lo meu querido, eu estou aqui!
E Eduardo pensava:
– Estaria ficando louco?
Saiu comentando com os amigos, quando voltavam para casa, aquela sensação tão forte da presença amada.
– Em cada transplantado, sinto Flora rediviva! Vejo e a revejo, viva e forte, maravilhosa e vibrante. Estarei ficando louco?
– Não é loucura meu amigo, objetou Marisa, são os milagres do amor!
– Mas, você me perdoe Eduardo. Dar conselho é algo difícil, mas… Quem sabe… Encontra outro alguém, tão passível de amor quanto a nossa querida Flora? Isto não é esquecer… É… Como dizer… Continuar vivendo… Pense bem!
– Tenho pensado sim. E estou decidido. Acho que posso encontrar a mulher certa, Marisa. Falou e olhou sorrateiramente para Maria José, que corou até a raiz dos cabelos…
Voltaram para casa, para descansar um pouco. Afinal, a maratona de emoções não fora fácil!
E, foi naquela tarde, que Maria José, cedendo a seu escrúpulo de pessoa íntegra, honesta e transparente, querendo se punir por amar o viúvo da grande amiga, resolveu partir para sua cidade natal…
E lá se fora chorando, esmagando seus sonhos e os de Eduardo…
**********************
18.
Quando Eduardo chegou à casa de Marcelo para buscar Maria José, a empregada entregou-lhe o bilhete com os presentes.
O rapaz não compreendeu logo a atitude da moça. E perguntou:
– Sim, obrigado. Mas… Cadê Maria José?
Meio encabulada, a moça respondeu:
– Ela viajou, senhor. Deixou estas encomendas para entregar em suas mãos.
– Mas viajou como? Para São José do Rio Preto? Viajou quando?
– Ontem à tardinha. Pobrezinha, saiu chorando…
– Chorando? Aconteceu alguma coisa na família? Com ela? Não estou entendendo nada, ora bolas! Que brincadeira é esta? Vou esperar Sônia e Marcelo chegarem. Não posso ficar sem uma explicação!…
**********************
Maria José saíra caminhando pelo sítio.
Olhava os pássaros, que antes enchiam sua vida de alegria; mas, naquele momento, nem seu canto a emocionava mais…
Via os bichinhos, a quem sempre cuidara, mas, nada, nada mesmo, a interessava.
Era manhã cedo, o céu ainda tinha leves tons de rosa em suas nuvens. O sol fazia-se presente, com raios dourados tímidos. Uma leve brisa lhe soprava os cabelos e a moça, prosseguia seu caminho, pensando…
Pensava em Eduardo; revia o tempo em que o conhecera. Procurava certificar-se se o amara desde sempre. Não! Aquele sentimento que agora a preenchia e a fazia sofrer tão agudamente, não existia naquele tempo!
Lembrou Flora; sua relação com ela fora sempre da mais restrita amizade, baseada em uma confiança, como jamais tivera outra igual.
– Por que, meu Deus, com tanto homem no mundo, fui logo me apaixonar pelo marido de Flora? Que fatalidade!…
Caminhando devagar, imersa em seus pensamentos, chegou à cachoeira. Sentou-se no mato e deixou-se ficar olhando a água que descia, cristalina e límpida como uma alma pura…
Olhava o riacho, sua água clara correndo sempre, como se aquele fosse todo o trabalho que tinha de realizar na vida…
Cismava, pensando em seus sentimentos. Via as pedrinhas rebolando no fundo de areia alva. Peixinhos nadando em torno das grandes pedras. Tirou os sapatos e pôs os pés na água. Estava fria. Era muito cedo, o sol ainda não a aquecera…
Mas deixou que eles ficassem ali e sorriu vendo vários peixinhos nadarem mordiscando sua pele. Aquele contato profundo com a natureza, estava fazendo-lhe muito bem…
Deixou-se ficar ali, um tempo sem conta. Parecia nada mais importar na vida. Recordou as palavras do médico. Ele a aconselhara a lutar pela própria felicidade; lembrou-lhe que Flora já não pertencia a este mundo. Ela e Eduardo se amavam. Ou “pensavam” que se amavam? Este era seu grande medo! Baralhar as sensações! Não seria uma grande carência de ambos? Ou o grande carinho que nutriam por Flora? Ele a chamara Flora ao beijá-la… Ela suportaria aquela situação? Era generosa, mas… Toda mulher quer ser amada por si mesma, não ser uma sombra na vida de alguém, mesmo que esta sombra seja uma pessoa muito amada…
– Oh! Meu Deus! Que devo fazer? Não consigo deixar de pensar naquele homem! Oh! Eduardo, Eduardo, se eu pudesse te amar!
Sem sentir, alteara a voz…
– E por que não pode, querida? Se eu a amo tanto! Tanto que vim buscá-la para partilhar comigo a minha vida! Você vai dizer, olhando nos meus olhos, que não me quer?
Maria José ficou gelada de emoção. Foi virando o rosto, pensando estar tendo alucinações… Eduardo estava longe, como falaria com ele agora? Quando seus olhos azuis se fixaram no rosto do rapaz que, parado a uma certa distância a observava sorridente, ela desatou no choro e, abrindo os braços, esperou que ele fosse até ela e sentasse a seu lado.
– Eu a amo, Maria. Quer casar comigo? Tem que responder sim!
Ela sorriu. E naquele sorriso, ia sua resposta, plena de amor e entrega. Nem precisaria dizer o que seus lábios pronunciaram, porque os olhos já tinham feito sua terna confissão de amor…
– Ed… Eu amo você tanto e tanto! Por Flora e por mim!
– Vamos então recomeçar as nossas vidas juntos?
– Vamos! Para sempre!
Os pássaros cantavam, os peixes, indiferentes, volteavam perto deles, quando o casal trocou seus carinhos de amor naquela cachoeira, que continuava cantando e saltando, correndo sempre, em busca do grande rio e depois, muito além, desaguando no mar…
Fim