1. Cardápio indigesto
Lá detrás daquela serra
tem uma vaca chocalheira
quem falar primeiro
come tudo o que é porqueira.
– Come meleca e catarro.
– Come lavagem de porco.
– Come toloco de bosta.
– Come cascão de pereba.
– Come carnegão de furunco.
– Come bolo de carniça.
Depois de contar até três, Vavá avisava: “Pronto, tá valendo. ”
– Peraí.
– Perdeu.
– Perdi nada.
– Perdeu, sim. Comeu tudo o que é porqueira.
– Não tava valendo.
Vavá parecia ficar em dúvida, apenas para me provocar. Após alguns minutos de fingimento, concordava: “Tá certo. Vou contar outra vez. Se falar agora, perde. Atenção. Um…, dois…, três. Começou! ”
Ficávamos calados, olhando um para o outro. Vavá fazia caretas; imitava um macaco igualzinho, mas eu permanecia mudo. Fingia que era uma estátua. Queria ver quem iria me fazer falar daquela vez.
Acontece que Vavá era mesmo sabido. Fazia de conta que estava dormindo; nem respirava direito. Enquanto a brincadeira durava e o sono não vinha, eu olhava o telhado; via as teias de aranha, o lodo das telhas e as Muralhas da China, o nome que Vavá dava às estradinhas de barro construídas pelos cupins embaixo das ripas. Ficava imaginando por onde entraria a Pesadeira, o bicho que desce do céu para engolir as pessoas que têm o azar de dormir com a barriga para cima nas noites da quaresma e vomitar tudo o que sobrava delas: tiras de roupa, brincos, relógios, sapatos, cabelos, dentes postiços e outros objetos que o assustador animal não conseguia digerir.
– Tá dormindo? – perguntava quando já me sentia cansado.
Vavá levantava de supetão. Era todo arrelia em torno de mim.
– Perdeu. Comeu lavagem de porco; cascão de pereba fedorenta; bolo de carniça; mingau de catarro. Tá vendo como você é imundo, pixote?
Sempre que eu ficava aborrecido, em convidava para outra brincadeira: “Vamos pegar um sério? ”.
– Não. Você ganha todas – recusava.
Em outras noites, quando eu já estava quase dormindo, Vavá me chamava – gemendo bastante, a mão sobre o peito, os olhos esbugalhados, a língua de fora e o rosto contorcido numa careta horrorosa.
– Ai, aí, Toinho – queixava-se, quase num sussurro, e num esforço muito grande tentava levantar-se; os braços esticados para o alto como se buscassem um amparo invisível. Depois desabava de vez na cama.
– Vavá, o que foi? Vamos, Vavá, acorde!
Eu batia-lhe levemente nas bochechas, tentava reanimá-lo de todo jeito. Ele continuava imóvel; instantes depois começava a rir. Primeiro ria escondidinho. Depois soltava uma tremenda gargalhada na minha cara.
– Bestão, ah, ah, ah, bestão!
Vermelho de raiva, eu voltava para a cama, achando que mais uma vez fizera papel de besta.
– Um dia você vai precisar da minha ajuda e eu vou pensar que é brincadeira. Então, deixo você morrer de verdade – quase numa praga, era a única coisa que eu conseguia dizer.
2. O forte-apache
De quem eu gostava mesmo era de tio Diógenes. Do jeito que ele me tratava eu teria mesmo que gostar muito dele.
– Como vai o moleque? Já tem namorada? Quer uma bala café-leite?
Quando fazia galinha-gorda, tio Diógenes sempre procurava jogar as coisas bem perto de mim. No Natal trouxe-me um Forte-apache. A Vavá deu uma bola de couro, número quatro.
Com o forte-apache, eu passava as tardes inteirinhas preparando emboscadas para a cavalaria do Genetal Custer, matando índios e, em menor número, soldados; dinamitando pontes e rochedos. Quando eu queria que a história terminasse triste, por sugestão de Vavá, matava Marlon Brando – um boneco de chapéu de abas largas, que empunhava duas pistolas e não usava o uniforme da cavalaria e sim roupas de batedor. Outras vezes, era Rin-tin-tin que morria, após salvar o menino, que era seu dono, das fechas de fogo, no acampamento dos índios.
O que desagradava no forte era a ausência de uma mulher bonita (e filha do coronel) para beijar o artista no final da aventura.
3. O segredo de Vavá
Um dia, dizendo que iria me revelar um segredo, Vavá me fez jurar que eu não contaria nada a mãe sobre a nossa conversa.
– Pelo bem que você quer a mãe? – perguntou.
– Pelo bem que eu quero a mãe – jurei.
– Mostre as mãos bem abertas e jure – exigiu ele.
Mostrei as mãos com os dedos bem separados; cruzei o dedão do pé com o vizinho dele e jurei novamente.
– Quer ver sua alma torrada no inferno, se contar o que eu vou lhe falar?
– Quero.
– Quero, não. Diga: quero ver minha alma torrada no inferno – ordenou Vavá.
– Quero ver minha alma torrada no inferno – repeti.
Ele ficou sério. Pigarreou duas vezes. Colocou as mãos para trás.
– Sabe, Toinho, é triste o que eu vou lhe contar – fez cara de enterro. – A verdade é que você não é meu irmão. Foi deixado na porta de casa, numa caixa de papelão. Mãe ficou com pena e, como só tinha a mim, resolveu lhe criar.
– É mentira! – reagi, assustado.
– Não acredita? Então, pergunte a Dona Vermelha – sugeriu Vavá. – Uma vez ouvi ela perguntar se mãe sabia quem havia lhe largado na porta de casa. Mãe respondeu que não sabia. Eu estava escondido e elas não me viram.
Apavorado, corri até a cozinha, onde mãe preparava o almoço, cantando como sempre uma música antiga.
– Diga que é mentira, mãe – gritei ainda da porta.
– Mentira, o que, menino? – ela olhou-me surpresa. – Olhe. Você não vê que estou ocupada?
– Que eu fui deixado na porta de casa e a senhora resolveu me criar.
Ela colocou as mãos nos quadris. Bateu o pé três vezes.
– Quem lhe disse uma asneira dessa? – perguntou.
– Vavá – denunciei.
Mãe esfarinhou os meus cabelos. Que eu deixasse de acreditar nas besteiras de Vavá e fosse brincar. Claro que era mesmo o seu caçula. Até perguntou se eu ainda não havia reparados que nós tínhamos os mesmos olhos de preá assustada, os cabelos muito pretos e a boca pequena. Depois, com uma palmada na bunda, mandou-me brincar, prometendo que mais tarde daria um carão em Vavá.
Ao sair para a rua, já bastante tranqüilo, cruzei com Vavá.
– Mãe vai lhe dar o seu mais tarde – avisei.
– Dedo-duro. Não vai mais ao circo comigo – ameaçou ele.
4. A turma da bola
– Cortei cabelo; cortei cabelo – fui logo avisando.
De nada valeu o aviso. Recebi uma saraivada de tapas no cocorote, como sempre acontecia quando alguém da turma cortava os cabelos.
– Cortou aonde? – perguntou um, aplicando-me um tapa.
– No Abdias – respondi.
– De máquina ou de tesoura? – outro espertinho tirava também a lasquinha dele.
– De tesoura, pô! Não ta vendo?
Os tapas prosseguiram com todos rindo ao meu redor.
– Cortou sozinho ou acompanhado?
O martírio continuava.
– Quanto pagou pelo corte?
– A tesoura estava amolada?
Nesse ponto, estourei. Preveni que quem batesse novamente estava procurando briga e “das feias”, acrescentei. Recebi ainda uns tapas de uns afoitos, mas felizmente a brincadeira parou por aí. Não queria brigar com ninguém, principalmente nas vésperas da decisão do campeonato. O time precisa se manter coeso, como disse Janjão, o técnico da nossa equipe.
– Como é, esse treino começa ou não? – impacientou-se Ruiberto, o centroavante do time, já fazendo aquecimento.
No campo, antes do treino, lembrei-me de que mãe não gostava de me ver jogando bola (durante as férias escolares, eu jogava até nos três turnos do dia).
– Comer direito não quer, mas já vai sair para jogar bola de novo – ralhava mãe, com as mãos na cintura e o rosto endurecido.
Ela ficava furiosa quando, jogando em campo enlameado, eu chegava a sujar três shorts por dia. Mas, o que é que eu estava pensando, hein? Que ela tinha fábrica de sabão e lavanderia em casa? Se eu chegasse com o calção rasgado – devido ao esforço desesperado para salvar uma bola quase perdida – a bronca era maior.
– Ora, mãe, a senhora já viu um goleiro sair limpo de um jogo bem disputado? – defendia-me.
Doutor Eustáquio foi a minha salvação. Mãe levou-me ao consultório dele. Comprou-me até uma cueca – minha primeira cueca – para o caso de eu ter que tirar a calça a pedido do médico.
– Doutor, esse menino anda muito magro; não come direito e só pensa em jogar bola.
O médico me examinou. Disse trinta e três, respirei fundo, pus a língua para fora, ele olhou os meus olhos.
– Seu filho é sadio. Jogar bola é bom para a saúde. Deixe ele jogar a vontade – aconselhou o médico.
Quase pulo de alegria. Tive até vontade de dar um beijo na ácrona avermelhada ou na careca do doutor. A partir daquele dia, mãe não reclamou mais quando eu saia para jogar bola.
O Treino foi bastante puxado. Fizemos meia hora de exercícios e depois treinamos com bola. Como o campo era pequeno, jogamos com cinco na linha e um no gol. Janjão apitava e passava as instruções de que como deveríamos atuar. Tínhamos grande respeito por ele, o melhor lateral direito entre os rapazes da idade dele na cidade.
– Vamos, Ruiberto, mais empenho nas bolas divididas – gritava o técnico do nosso time, o Vila da Mata Esporte Clube, com o apito amarrado a um barbante em volta do pescoço, a mesma ginga de jogador profissional ao correr e a marcação certeira nos lances.
– Não faz cera, Toinho – reclamava ele e eu me livrava da bola com um chutão para a frente.
O time demonstrava entrosamento. A bola corria facilmente de tabela em tabela, mas, bem plantadas, as defesas impediam que ela chegasse aos goleiros. Fizemos, eu e o outro arqueiro, duas ou três defesas sem importância, dessas até meu avô, se fosse vivo e jogasse bola, faria. O treino terminou zero a zero.
– É preciso acertar o pé, rapaziada – alertava Janjão – chutar de longe para tentar surpreender o goleiro adversário que, aliás, não pega muito bem. Não vamos só querer entrar de bola, que ninguém aqui é Rivelino. Você, Ruiberto, deve caprichar mais na pontaria.
Depois da partida, treinamos cobrança de pênaltis. Muitos chutes foram desperdiçados e Janjão se aborreceu. Pô, perder pênalti é demais! Faltava apenas um dia para a decisão e não haveria tempo para outro treinamento.
– Amanhã, às oito e meia na porta de casa – combinou o técnico.
O time ainda não estava escalado. A formação da equipe somente seria revelada momentos antes da partida. Esse era um costume de Janjão. Dos treze jogadores do Vila, dois ficariam no banco de reservas.
5. Morte no rio
Bias, o neto de Dona Vermelha, morreu afogado no rio. Primeiro veio a notícia: querendo imitar o pulo de Tarzan, ele dera um salto no rio e não voltara à tona. Devia ter batido a cabeça numa pedra, desmaiado e se afogado em seguida.
Alguns pescadores deram várias buscas no rio, mas não conseguiram encontrar o corpo de Bias. Dona Vermelha, coitada, teve que tomar tranquilizantes. Perdera o neto mais querido. Mãe ficou todo o tempo ao lado dela.
O corpo apareceu dois dias depois de sumido, muito abaixo do local do acidente. Coberto de vegetação, inchado de água e fedendo bastante; estava irreconhecível. No lugar dos olhos havia duas brocas tomadas por pequenas folhas do rio. Dizendo que a gente não podia ficar ali, pai mandou eu e Vavá para casa.
– Ah, pai, deixa a gente ficar – pedi.
– Vá – ordenou ele.
Fomos.
– Que coisa feia, hein, Toinho? – comentou Vavá.
– Nem parecia o Bias – disse eu, sentindo um aperto na garganta.
– Viu como ele estava duro? – perguntou Vavá.
Nada respondi. Não queria prolongar aquela conversa. Bias era meu amigo. Tinha me chamado para ir ao rio no dia em que morreu. Não fui porque mãe bateu o pé e não deixou. Rio coisa nenhuma; para pegar vermes? Que eu tirasse o cavalinho da chuva. Fiquei ainda com mais pena ao lembrar que Bias era somente um ano mais velho do que eu.
Tinha noites em que eu sonhava com o fantasma dele. Bias vinha me levar para o reino que havia no ponto mais fundo do rio, aonde só chegava a assombração dos afogados e as estrelas eram os peixes que brilhavam n’água. Era um local escuro e frio, habitado apenas por afogados. Todos os afogados, de todos os rios do mundo, vinham para o fundo daquele rio. Tinha até o Rei dos Afogados, um sujeito barbudo e feio, o mais alto e mais forte de todos, que andava rodeado de sargaços e de todos os tipos de peixes. Era ele que mandava os demais afogados subirem à superfície a fim de trazer as pessoas vivas para aquela cidade dos mortos.
Bias vinha sempre me buscar. Não chegava com a mesma cara com que foi encontrado boiando nas águas; mas como sempre o conheci: um menino galego, magro, de lábios finos, orelhas grandes e um pequeno nariz arrebitado. Ele conseguia me levar para o trecho onde desaparecera. Pulava da mesma pedra, soltando o mesmo grito de Tarzan. Só que desta vez voltava à superfície, mas com as suas feições horrorosas de morto. Nessa parte do sonho eu acordava. Oba, foi somente um sonho; apenas um pesadelo, pensava aliviado, tomava coragem para olhar embaixo da cama para verificar se o fantasma de Bias não estava lá; e demorava a pegar no sono outra vez.
6. A doença de mãe
Você sabe o que é ter um amo, meu sinhô?
Mãe gostava de cantar ao pé do fogão. Quando não tinha nada a fazer, eu ficava à soleira da porta da cozinha, ouvindo-a cantar. Era bom ter uma mãe, pensava. Como deveria ser triste a vida dos meninos que não tinham mãe; como Ruiberto, que não chegara a conhecer a mãe dele, morta poucas horas depois do parto.
Desde mocinha, mãe sempre fora uma mulher robusta. Não era gorda; era forte. Irmã mais velha de uma família numerosa. Acostumara-se muito cedo aos trabalhos da casa. Levantava-se no comecinho da manhã; ordenhava as duas vacas que a família possuía, preparava o café e, após a refeição, chamava as irmãs com idade para o serviço e iam ajudar os irmãos e os pais na lavoura. Retornava antes do meio-dia para preparar o almoço. No final da tarde, após nova labuta, fazia o jantar.
Acho que todo esse serviço acumulado, mais o trabalho que veio com o casamento e os filhos, é que foram enfraquecendo mãe, fazendo ela perder peso; chupando aquele rosto, antes corado e nutrido. Eu ficava com mais dó quando olhava os braços dela, antes carnudos e rijos; agora pelanca e ossos. Os braços de mãe eram aquilo que mais denunciam o seu estado de saúde.
Pai disse que ela tinha diabetes. Ele colocou uma moça para cuidar da casa e, dia si, dia não, selava o cavalo e ia buscar o médico na cidade vizinha. Não porque na nossa cidade não tivesse médico, mas porque depois da mudança de Doutor |Eustáquio para a capital, o Doutor Peixoto, já um pouco velho, demonstrava mais interesse pela sua coleção de borboletas do que pela saúde dos seus pacientes.
Muito bem cuidada, mãe foi melhorando pouco a pouco (até voltou a fazer os serviços de casa). Ela não recuperou o peso de antes; porém, ficou até mais elegante.
Não fosse o zelo de pai, acho que mãe teria continuado a murchar até ficar miudinha, como aconteceu com Abelarda Bolo-Fofo, que foi misteriosamente murchando e encolhendo, encolhendo e murchando, até morrer e ser enterrada num caixãozinho de recém-nascido.
7. O duelo do robô
– Robô gigante morre? – perguntou Ruiberto.
– Morre – respondeu Nego.
– Morre nada. Ele mata o chefe dos monstros e fica vivo – apostou Isidoro.
– Se ele morrer não tem graça – disse Dagô.
– Morrem ele e o chefe dos extraterrenos – opinou Beto.
Olhamos todos com raiva para ele. Que mania de torcer contra o artista (era o mesmo que torcer contra a Seleção Brasileira na Copa do Mundo, mesmo que o time estivesse ruim). Bandido não ganhava e pronto. Filme era assim mesmo; por esse teria que ser diferente?
Estávamos todos na casa de Adovaldo para assistir ao último episódio da série “Robô Gigante”. Após salvar, durante vários capítulos, a Terra da invasão dos monstros – cada um mais feio e perigoso do que outro – o Robô finalmente lutaria com o chefe de todas aquelas repelentes criaturas do espaço.
– Ele salva a terra e depois morre – insistiu Beto.
– Nada disso. Ele destrói o chefe dos monstros e depois volta para o planeta onde morava, antes do menino encontrar o relógio que o aciona e comanda – arriscou Nego.
– Isso mesmo – entusiasmou-se Adovaldo.
– Mas assim o menino fica sozinho e isso também não presta – observou Isidoro.
– Fica não. Depois ele encontra o filho do Robô – disse Humberto, o irmão caçula de Adovaldo.
Foi o palpite mais besta de todos. Humberto recebeu uma estrondosa vaia que o deixou envergonhado. Que história mais boba. Quem já viu robô, uma engenhoca de aço, cheio de baterias, válvulas e fios, poder ter filhos. Se ele não era homem, nem bicho? Tudo bem que os monstros pudessem gerar criaturas horrendas como eles, mas o robô…
Estávamos todos ansiosos. Faltavam apenas alguns minutos para o início do derradeiro episódio. Havia no grupo quem se orgulhava de não haver perdido nenhuma aventura da série. Eu não tivera a mesma sorte; acho que perdi uns três capítulos.
Mas, ò azar do cão, subitamente a imagem no vídeo apagou-se; Adovaldo correu ao comutador.
– Merda – xingou –faltou luz.
A apreensão tomou conta da turma. Logo naquela hora. Porque a energia elétrica não faltava quando estava passando o jornal?
– Vou contar até dez e a luz volta. – disse Isidoro, iniciando a contagem. – Um…, dois…, três…, quatro…, cinco…, seis…, sete…, oito (nada de luz) …, oito e meio, nove (a tela ainda escura) …, nove e um pouquinho…, nove e um terço…, nove e meio…, nove e noventa e nove…, atenção: dez.
A imagem ressurgiu nítida no vídeo. A gritaria foi geral.
– Cagada; foi cagada – disse Nego.
– Cagada uma ova. Foi mágica mesmo – defendeu-se Isidoro.
Ele ainda mostrava um sorriso que ia de uma orelha à outra, quando a imagem sumiu outra veza no vídeo. O desânimo dominou o grupo de novo. Era comum a energia faltar e retornar segundo depois, apenas com o fito de pregar uma peça nas pessoas que precisam dela para algo importante. Esperamos mais alguns segundos. Depois, o desânimo deu lugar á tristeza.
– Não volta – agourou Beto.
– Cale a boca, pé-frio – ordenei chateado que mania de ser do contra; primeiro disse que o Robô morre e depois que a energia não voltava).
– cale a boca já morreu, quem manda em minha boca sou eu – respondeu Beto.
Eu estava nervoso.
– É? Pois se eu der um pau nela, quem vai passar a mandar sou eu – ameacei, esquecido de que de nós dois Beto era mais forte.
– Pois dê; dê logo, se você for homem – desabafou Beto.
– Não vou dar porque estamos na casa de Adovaldo – disse eu.
– Então, vamos sair para você dar – propôs Beto.
Quando a discussão – para o meu azar – parecia que ia acabar em briga, a televisão voltou a funcionar.
Todos vibramos.
– Deixa a briga para lá. A luz voltou e o time tem que permanecer unido para a partida de amanhã – pediu Adovaldo.
– Por mim, tudo bem – apressei-me em dizer.
– Por mim também – concordou Beto.
A energia elétrica voltou justamente no momento em que eram exibidas as últimas cenas do capítulo anterior. O chefe dos monstros deixou a espaçonave da qual comandava sai quadrilha do outro mundo – já toda liquidada – cresceu de tamanho e defrontou-se com o Robô para a batalha final.
Permanecíamos todos espremidos na pequena sala. Veio a propaganda. A emissora anunciou mais uma aventura da série Kung-Fu, a história de um menino da cabeça pelada que aprendera, com um mestre cego, os segredos das artes marciais e se tronando em adulto, agora usando cabelos longos, um defensor dos mais fracos, colocando sempre a força a serviço do coração. Depois vieram uns comerciais bestas e, o filme começou.
O chefe dos monstros atacou o Robô com uma potente braçada. O Robô se esquivou e acertou-lhe um soco na venta. O chefe caiu estatelado e o Robô acionou os foguetes embutidos nos dedos dele. Pronto; aqueles foguetes dariam cabo do bandido. Todos torcíamos. Dagô e Isidoro esfregavam uma na outra as palmas das mãos, não num gesto de contentamento, mas de inquietação.
O Robô disparou o primeiro míssil e o petardo explodiu numa rocha, atirando lascas de pedras à distância. Outras bombas foram disparadas, mas só uma delas atingiu o vilão, ferido na perna, porém ainda firme na batalha.
A luta estava dura. O Robô batia muito no chefe dos monstros, mas também apanhava um pouco. Se fosse uma luta de boxe, o Robô venceria por pontos. Contudo, não era aquele tipo de briga; era preciso nocautear para sempre o chefe dos monstros para que a terra pudesse respirar aliviada.
Quando o duelo já durava muito tempo, o Robô enlaçou o adversário pela cintura e voou com ele para espaço. O menino que o comandava pediu para ele voltar. Pela primeira vez, o Robô não obedeceu ao garoto; continuou voando com o chefe dos monstros debatendo-se nos seus braços de ferro. Ficamos todos apreensivos, vendo o Robô com sua carga bem presa. O menino o chamava de volta; gritava desesperado, com lágrimas correndo-lhe pelo rosto, para que ele não fizesse aquilo. O Robô prosseguia sua viagem no espaço. Bem longe, no céu, ele chocou-se de propósito num meteorito. O menino não parava de soluçar. Humberto começou a chorar. Muitos de nós tínhamos os olhos lacrimosos, mas já éramos muito grandes para chorar por um simples filme, como o irmão caçula de Adovaldo.
– Chorando? – provocou Beto, apontando para mim.
– Chorando o quê? Sou homem – disse eu.
Na verdade eu tinha mesmo vontade chorar. Um nó de fogo me queimava a garganta. Assistir, semanas a fio, tantos episódios para ver o Robô se acabar daquele jeito com o chefe dos monstros. Tinha graça?
De repente o menino parou de chorar. Limpou as lágrimas com as mãos e começou a sorrir. Num planeta distante, ele viu o Robô inteirinho como se o choque com o meteorito não o tivesse afetado.
Ouvimos a música do filme. O menino sorria; o chefe dos monstros destruído e o Robô tranquilo no seu planeta.
– Morreu, eu não disse? Morreram o Robô e o chefe dos monstros – garantiu Beto.
– Morreu nada. Você não viu o Robô inteirinho, no planeta dele? – perguntou Isidoro.
– Aquilo foi imaginação do menino; para compensar a saudade que ele já sentia do Robô – explicou Beto.
Morreu ou não morreu? Estávamos em dúvida. Seu Eliovaldo, o pai de Adovaldo, ao passar pela sala, parara para ver o fim do filme. Resolvemos consultá-lo.
– Morreu. A explosão foi muito forte – respondeu Seu Eliovaldo, acrescentando com perversidade: “foi pedaço do Robô e do monstro para todos os lados”.
Entristecida, toda a turma concordou com ele. Eu ainda tinha as minhas dúvidas. Que mania a do pessoal de acreditar em tudo o que os mais velhos diziam! …
8. Aventura no circo
Fechei os olhos no instante em que o homem forte, barbudo e cabeludo, vestido apenas numa tanga, atirou o primeiro machado. Temi pela mulher bonita, amarrada a uma grande roda de madeira, onde a arma deveria se cravar. Vavá me cutucou e eu abri os olhos. O machado fincara-se na madeira, a dois palmos da cabeça da moça.
Todos no circo bateram palmas. O atirador apanhou o segundo machado. Encorajado pela pontaria do primeiro arremesse, acompanhei a trajetória do segundo. O machado colou-se na tábua, pertinho da coxa da mulher. O homem efetuou mais dois lançamentos. A pontaria foi a mesma.
A moça deixou seu lugar. O atirador abriu os braços pedindo aplausos. Bati palmas com entusiasmo. A ovação foi geral. Vavá colocava dois dedos na boca e assovia alto. A mulher voltou para junto da roda. O atirador colocou uma venda preta nos olhos. Pronto, vai matar a moça, pensei. Não matou. Lançou facas e machados com a mesma pontaria de antes. As palmas soaram mais fortes. A mulher sorria. O homem agradecia fazendo mesuras para o público.
Ele e a moça voltaram para um novo número. Desta vez o homem não tapou os olhos, mas a mulher foi amarrada à roda e esta, impulsionada por um ajudante, começou a girar. Os tambores tocaram num ritmo de suspense.
– Agora a moça se lasca – disse Beto.
– Deixe de ser agourento – reclamei.
Pensei em fechar outra vez os olhos. Achei que precisava ser corajoso, pois não era nenhum frouxo, e os mantive bem abertos. O atirador arremessou a primeira faca, quase atingindo o braço da mulher. A segunda alojou-se um pouco mais distante. No último lançamento, o atirador virou-se de costa e dobrou o corpo como um homem-borracha. Os tambores soaram mais altos. O barbudo conseguia enfiar a faca bem longe do corpo da sua parceira. Empolgado, aplaudi e gritei por mais de um minuto.
A maior atração do circo foi Markok, Senhor dos Mil Segredos do Universo, o maior mágico das Arábias. Vestindo uma capa preta e usando uma cartola da mesma cor, Mardok subiu ao tablado. Ele tinha a mesma barbicha que os bons mágicos têm.
– Aposto que esse tal de Markok sabe a metade dos segredos que diz conhecer – falou Beto.
Como ninguém estava interessado em apostas, ele calou-se e prestou atenção ao mágico. Markok mostrou a cartola vazia e depois tirou coelhos dela; fez sumir lenços no ar, que subitamente ressurgiam dobrados em suas mãos e deles saíam pombos voando. Depois, Mardok chamou um homem gordo como um barril e fez o gorducho flutuar por alguns segundos. A plateia aplaudiu em delírio.
Com um ar de zangado, o mágico se aproximou do público. Olhou na minha direção.
– Você aí, menino – disse ele com um vozeirão, apontando para mim. – Venha até aqui.
Minhas pernas tremeram; meu coração bateu acelerado. Markok me olhava com aqueles olhos poderosos de mágicos.
– Eu? – duvidei.
– Você mesmo. Não tenha receio, garoto – tranquilizou Markok na sua voz modulada.
Com a boca aberta e os olhos arregalados de espanto, olhei para Vavá. Temia que Mardok me fizesse sumir e depois esquecesse o passe de mágica sem o qual eu não poderia voltar ao mundo. Nesse caso, ficaria sendo somente espírito, uma alma a vagar por aí, sem corpo.
– Vá, Toinho. Deixe de ser besta – encorajou-me Vavá.
– Vá não, Toinho. É esparro – aconselhou-me Beto.
Fui. Não para demonstrar coragem e sim para não parecer frouxo.
Mardok pousou sua grande mão enluvada no meu ombro. Todos no circo olhavam para nós dois. Tive vontade de encolher-me todo até sair do alcance da mão do mágico. Porém, permaneci ereto, controlando com esforço a respiração para não mostrar nervosismo. O Senhor dos Mil Segredos do Universo ria, solene. Apontava para mim, como se eu já merecesse aplausos simplesmente por estar ali ao lado dele.
– Muito bem, Toinho!
– Isso mesmo, Toinho!
– Bote ele no bolso, rapaz!
– Faz o mágico desaparecer, Toinho!
Espremido no galinheiro, o pessoal do time debochava de mim. Encabulado, ergui o braço numa tímida saudação. Muita gente me aplaudiu. Fiquei vermelho de vergonha.
– Muito bem. Muito bem – repetia Mardok, coçando a barbicha.
Minha preocupação aumentava a cada segundo. Eu temendo por um desastre e o mágico ali, bem na dele, cofiando os pelos do queixo, e repetindo “muito bem, muito bem”.
– Como se chama, meu jovem? – perguntou Mardok.
Não era mais a mesma voz modulada e nítida, mas um som abafado, como se o mágico falasse com uma toalha colada à boca.
– Toinho – respondi.
– Fale mais alto, para a plateia – pediu Markok.
– Toinhooô – gritei, sentindo as orelhas formigarem.
– Toinho. Muito bem – elogiou o mágico. – Quantos anos tem você, meu jovem?
– Dez, Seu Markok.
– Mais alto, rapaz.
– Deeez – gritei.
– Muito bem. Agora diga-me: está estudando?
– Siiim – berrei, sem saber onde esconder a cara.
– Em que série?
– Na quinta, Seu Markok – respondi, sem gritar.
– Alto, meu jovem – exigiu o mágico.
– Na quiiinta – gritei.
Depois de dizer mais dois “muito bem”, o maior mágico das arábias pegou no meu nariz e começou a retirar moedas dele. Eu espirrava e a s moedas retiniam no chão, uma atrás da outra. O público gargalhava. Houve uma pequena pausa em que parei para respirar e Markok aproveitou para abrir os braços e receber os aplausos da plateia. Em seguida, o mágico recomeçou a retirar moedas do meu nariz (não cheguei a contar, mas creio que ele retirou mais de cem moedas).
– Um verdadeiro tesouro; uma jóia de criança, esse rapaz – disse Markok ao encerrar o número.
Todos no circo retorciam-se de rir e batiam palmas para o Senhor dos Mil Segredos do Universo.
– Obrigado, meu jovem – agradeceu Markok, dando-me uma daquelas moedas (era uma moeda diferente de todas que eu conhecia; devia ser estrangeira).
Então foi para isso que o mágico me chamou. Voltei para o meu lugar com a sensação de que não era um garoto normal, mas um valioso cofre ambulante.
– Bravo, Toinho! – cumprimentou-me Vavá – Você esteve ótimo.
Todo o time me parabenizou com inveja. Eu teria ficado convencido se, a partir daquele dia, não houvesse ganho o apelido de nariz de mealheiro.
9. PAQUERA NA IGREJA
Fazia calor no confessionário. Eu estava ensopado de suor. Não sabia o que dizer a padre Rubens. Estava envergonhado pelo que tinha a lhe falar. Impaciente, o sacerdote pigarreou do lado de dentro do confessionário. Por fim, tomei coragem.
– Fiz ousadia, padre – disse, baixinho.
– O quê?
Através dos pequenos orifícios do confessionário, eu podia sentir o mau hálito do meu confessor.
– Fiz ousadia – repeti um pouco mais alto.
– Ah! – exclamou padre Rubens, – sozinho?
– É padre, sozinho – respondi.
O sacerdote pareceu pensar. Não parava de benzer o espaço com a mão.
– Procure não fazer mais isso, meu filho – disse, afinal. – O que você fez representa uma ofensa muito grande aos olhos do Menino Jesus, que foi criança como você, mas nunca fez dessas coisas feias. Reze o ato de contrição.
Rezei-o.
– Agora vá ao altar e reze dez Pai Nosso e vinte Ave Maria. Peça perdão ao Menino Jesus do fundo do seu coração e depois pode comungar.
Tive vontade de perguntar a padre Rubens como ele sabia que o Menino Jesus nunca fizera aquilo que eu fiz. Não perguntei porque achei que Le me daria um esporro e, talvez, até me proibisse de entrar na igreja; além do mais, o mau hálito do sacerdote já estava ficando insuportável. Deixei o confessionário aliviado; não porque padre Rubens tivesse sido bom comigo e sim por me sentir desobrigado de contar-lhe todos os meus pecados.
Eu gostava de frequentar a igreja para ver – de perto – Soraia, a filha de Seu Tote e Dona Edmunda, gente rica, que só saia do casarão onde morava (na saída cidade) para ir à missa.
Seu Tore era engenheiro. Chegara à cidade seis meses antes para orientar a construção de umas pontes, por onde o trem deveria passar, tão logo ficasse pronta a nova ferrovia que estavam construindo na região. Quando ele saia para trabalhar, numa picape da companhia, Dona Edmunda e Soraia ficavam em casa; nem para passear saiam. A família de Seu Tote não se dava com ninguém. Era muito metida. Seu Tore e Dona Edmunda cumprimentavam os outros apenas por obrigação – ou como se estivessem fazendo favor – quando iam á igreja. Soraia recebia aulas particulares em casa e, por isso, não ia à escola.
Certa vez, mãe encontrou Dona Edmunda na feira e, sem saber ainda o tanto que ela era metida, dirigiu-lhe um cumprimento. Donda Edmunda se fez de cega e surda.
– Com todo esse orgulho – disse mãe, aborrecida – capaz de um dia precisar da gente.
Precisou mesmo.
Soraia teve uma dor de barriga muito forte, seguida de febre. A bichincha gemia e delirava – contou mãe, mais tarde. Seu Tote havia viajado para a capital. Doutor Peixoto saíra dois dias antes, para caçar borboletas.
Mãe soube do aperto de Dona Edmunda. Colheu algumas ervas e foi à casa dela. Preparou um chá e deu à doente para beber. No começo da noite, Soraia já estava bem melhor e, no dia seguinte, amanheceu curada. De noite, pai me pediu ir buscar mãe.
Atravessei o enorme portão da casa de Seu Tote, impressionado com o grande jardim e a magnífica piscina. Dentro de casa, os móveis brilhavam como espelhos. Uma empregada de uniforme me levou ao quarto de Soraia. Era um quarto amplo, maior do que toda a nossa sala. Dona Edmunda estava na cabeceira da cama, alisando os cabelos da filha. Mãe parecia uma estátua parada ao pé da cama.
– Pai mandou eu vim buscar a senhora – avisei a mãe.
– Já vou, meu filho – disse ela.
Mãe se despediu de Dona Edmunda, garantindo que Soraia amanheceria boa; fora apenas um ligeiro mal-estar, coisa de criança que come de tudo, não precisava ficar preocupada. Ela alisou os cabelos de Soraia, me pegou pela mão e saímos.
– Espere um pouco – pediu Dona Edmunda.
Mãe voltou-se para ela. Dona Edmunda apanhou a bolsa.
– A senhora me ofende – disse mãe. – Foi só um favor.
Ao sairmos ainda olhei para Soraia, tão bonita apesar da doença. Tive a impressão de que ela sorriu para mim.
Depois daquele favor, Dona Edmunda passou a convidar mãe para ir à casa dela. Orgulhosa, mãe sempre inventava uma desculpa para não ir. Na feira, ela respondia aos cumprimentos de Dona Edmunda e de Seu Tote apenas para não ser mal-educada. Eu torcia para que mãe aceitasse os convites e fosse, de vez em quando, à casa deles. Desse modo, eu poderia ir com ela e ficar perto de Soraia. Mãe, porém, insistia na recusa.
Na igreja, eu sempre sentava num banco atrás daquele em que a família de Seu Tote se instalava. Não prestava atenção à missa, somente aos gestos de Soraia. Danadinha, daquele tamanho e já sabia acompanhar a celebração, rezando e cantando direitinho.
Na hora da comunhão, eu entrava na fila. Aproximava-me do sacerdote, que me estendia a hóstia. Ouvia ele dizer “o corpo de Cristo”, respondia “amém”. Engolia a eucaristia, e retornava para o meu lugar, olhando Soraia e orgulhoso do meu desempenho. Deixava a igreja sempre ao lado de Seu Tote, Dona Edmunda e da filha deles. Um dia, Dona Edmunda me viu.
– Como vau sua mãe? – perguntou ela.
– Vai bem, obrigado – respondi, encabulado, sem tirar os olhos de Soraia, linda no seu novo vestido.
Nesse dia, Seu Tote deu-me uma nota muita alta, a mais valiosa que até então eu já tivera só para mim.
– Para comprar uma bola – disse ele.
– Não, obrigado – recusei.
– Vamos, pegue, menino – pediu Dona Edmunda.
Não tive coragem de resistir àquela voz suave e maternal. Apanhei a cédula, estalando de nova, enfiei-a no bolso, agradeci e sai correndo, já envergonhado de ter aceitado o dinheiro.
Cheguei em casa sem fôlego. Mostrei o dinheiro a mãe. Ela me fez devolvê-lo imediatamente. Prometeu me bater, caso eu aceitasse dinheiro dos outros novamente. Falou que nunca alguma coisa me faltou em casa; que não estávamos passando necessidade e não precisávamos de favor de ninguém, muito menos daqueles metidos à besta.
Fui á casa de Seu Tote. No meio do caminho, pensei em ficar com a grana. Daria para comprar muitas coisas: uma bola nova, um campo de botão com dois times completos, ir ao cinema, comprar revistas e doces. Pensei em voltar do portão da casa de Soraia; dizer a mãe que devolvera a nota, mas, fiquei com medo dela descobrir a verdade, quando visse que eu estava comprando muitas coisas, sem que ninguém houvesse me dado o dinheiro para os gastos.
Apertei a campainha da casa. A mesma empregada de farda veio em atender. Estendi-lhe a cédula.
– Mãe mandou entregá-la a Seu Tote.
A empregada apanhou o dinheiro. Saí correndo para casa, lamentando ter perdido uma fortuna.
10. Viagem de trem
Uma vez por ano, mãe levava eu e Vavá para fazer exames na capital. Eu detestava aquele tipo de exame, pois tinha dificuldade para cagar a pulso.
– Vamos. Anda logo.
Eu agachado, espremendo-me num esforço danado e mãe ali, ao meu lado, exigindo que terminasse logo o serviço. Vavá, ao contrário, cagava com grande facilidade. Bastava querer.
Viajávamos sempre de manhã cedo. Duas horas e meia de trem até a capital. Na véspera da viagem, minha excitação era tamanha que eu não conseguia dormir direito. Passava quase toda a madrugada acordado, pensando nas coisas boas que veria na capital: os prédios enormes, muitos carros nas ruas, o imenso e inesquecível mar. Pensando em todas essas coisas, eu quase não conseguia pegar no sono. Saía da cama quando os primeiros galos começavam a cantar e só tinha a certeza de que havia dormido um pouco pela vaga lembrança de algum sonho.
Vestíamos nossas melhores roupas. Dentro de seu vestido mais bacana, usando batom, um colar de contas, uma bolsa de couro, tirada da gaveta apenas em ocasiões especiais, e calçando sapatos de saltos grandes, mãe parecia bem mais jovem e bonita. Vendo-a daquele jeito, eu achava que ela até podia competir com Dona Edmunda, não fosse alguns anos mais velha do que a mulher de Seu Tote.
No trem eu e Vavá brigávamos para ver que viajaria ao Aldo da janela. Vavá tentava correr para chegar ao lugar predileto. Mãe, contudo, o retinha pelo braço.
– Não. Você é maior. Deixe seu irmão ir ao lado da janela, na ida. Na volta, o lugar é seu- ordenava ela.
Vavá concordava resmungando. Eu ficava radiante. O trem sol voltava à noite e, no escuro, a paisagem não era interessante.
Eu aproveitava a viagem para olhar os pastos, verdes e ainda úmidos pelas chuvas recentes naquela época do ano, onde o gado parecia comer eternamente. Pensava em como era boa a vida dos bois. Uma vida bem mansa; só comer e mastigar, sem pressa nenhuma, o bolo macio e verde capim. Era mesmo uma vida bacana. Mas, eu não queria ser boi, se um dia tivesse que nascer bicho. De jeito nenhum. Boi tem os dias contados. Basta apenas engordar até o ponto de abate para receber, com as costas do machado, uma pancada no cocorote, o bastante para fazer o bicho cair zonzo e começar a ser retalhado com a lâmina do machado.
Eu não gostava de ver os bichos morrerem daquele jeito. Coitados, comiam com tanta inocência, mastigavam com tanta tranquilidade, sem suspeitar que cada quilo engordado encurtaria ainda mais o caminho do matadouro.
Boa mesmo era a vida das vacas, que ninguém matava porque davam leite e crias. Elas tinham lá suas mordomias; só eram abatidas se não pudessem parir ou tivessem pouco leite, o que dava prejuízo ao criador. A sorte era que quase todas as vacas davam crias; bicho parideiro assim nunca vi. Já o boi tinha que ir para o matadouro de qualquer jeito; menos os reprodutores, mas esses eram bem poucos em relação ao rebanho.
Ouvi dizer que na Índia o boi é um animal sagrado e que lá ninguém pode matá-lo, senão vai preso. Olhando os bois comendo com aquele jeito de bicho preguiçoso, tive vontade de, um dia, reunir os melhores vaqueiros do Brasil para formar a maior boiada do mundo e tocar os animais para a Índia, onde ninguém poderia fazer-lhes mal. Contei esse plano a Vavá.
– Deixe de ser abestalhado – disse ele, despeitado – a Índia é muito longe. Fica no Oriente.
– Oriente é um pau no seu dente – respondi.
– É? Venha dar. Então, venha dar – desafiou Vavá.
– Dou – respondi, confiado em mãe. – Dou, agora mesmo.
Irritado com o meu atrevimento, Vavá fez menção de levantar-se para ajustar contas comigo. Mãe deu-lhe um beliscão.
– Fique quieto – ordenou ela.
Vavá aquietou-se. Enfezado, permaneceu calado durante o resto da viagem.
Da janela do trem, naquela mãe fresca, eu pensava no destino azarado dos bois, completamente esquecido das emoções que me aguardavam na capital.
11. Goleiro promissor ***
Eu era tido como um bom goleiro. Possuía reflexos apurados, elasticidade, sabia em colocar entre as traves e era arrojado nas saídas de bola. Todas essas qualidades acabaram me tronando o arqueiro mais cotado daquele campeonato.
“Quando crescer, pode pegar em qualquer time profissional”. Inúmeras vezes ouvi comentários desse tipo que em deixavam embevecido; contente, mas nunca mascarado. Nada de máscaras comigo. Enfeitar defesas fáceis; fazer pontes desnecessárias; sair do gol quando não era preciso, só para chamar a atenção, nada disso eu fazia. Eu não precisava me mascarar; sabia que se continuasse bom, como era para a minha idade, algum time se interessaria por mim no futuro, dos melhores do campeonato brasileiro de futebol profissional.
Às vezes, mãe queria me obrigar a ficar em casa para que dedicasse mais tempo aos estudos. Eu precisava sair para o treino, ou mesmo para um simples bate-bola. Por isso, mostrava-lhe meu boletim.
– Poxa, mãe, a senhora quer notas melhores? Então, não posso também me divertir? – apelava.
Como eram realmente boas as minhas notas, mãe terminava concordando com as escapulidas que eu dava.
– É, não são ruins, não – admitia mãe, examinando o boletim, – mas, podiam ser ainda melhores.
– Ah, mãe, a senhora sabe que eu estudo todas as noites – desculpava-me, escapulindo em seguida para a rua.
12. A cabeça de Lampião
Fonça jurava que viu a cabeça de Lampião cair de um avião.
– Vi; vi, sim. Foi no açude – teimava ela, aos oitenta nãos, com os cabelos brancos assanhados, os olhos, de tão esbugalhados, parecendo um farol de fusquinha, a boca sem nenhum dente e todo o seu corpinho encurvado.
A velha repetia a mesma história. Há bastante tempo, lavava roupas no açude com um grupo de moças da idade dela. No final da tarde, terminado o serviço, as amigas voltaram para casa com as bacias na cabeça. Ela ficou sozinha enxugando as últimas peças. Nos matos, ao redor, tudo era tranqüilidade, com os pássaros procurando um cantinho para dormir, os sapos coaxando à beira d’água e as cigarras cantando sem parar.
De repente, Fonça ouviu o ronco de um avião… Olhou para cima. A aeronave voava baixo, “da altura da torre da igreja”. Era grande, pintada de azul e branco. Tinha algumas letras que ela não leu, “porque não entendia dessas artes de leitura”.
– Vi. Eu vi. Com esses olhos que a terra há de comer – garantia a velha, apontando os olhos de enormes gudes.
Toda turma já conhecia aquela história, mas pedia a Fonça para contá-la outra vez.
– Bem…, bom – dizia Fonça, mastigando as gengivas. – O avião estava lá, voando baixinho. Depois parou no ar, nem zoada fez mais. Tinha uma luz quer cegava as vistas, mas eu botei um plástico nelas e pude ver. A janela do bicho abriu e a cabeça de Lampião, com chapéu de cangaceiro, óculos e tudo, caiu no açude. Está lá até hoje, podre, mas está.
– E depois, Fonça? – perguntava alguém da turma.
– Depois, eu corri de medo. Até esqueci de apanhar a bacia de roupa. Eu ia ficar lá com aquela cabeça de fantasma dentro do açude? – respondia a velha, muito séria.
Caíamos todos na gargalhada. Fonça não ligava para as risadas. Bem-humorada, também começa a rir num engasgo; ria até perder o fôlego, quando passava a fungar. Nesse ponto, nós a ajeitávamos na cadeira de balanço até ela recuperar o ar dos pulmões. Depois íamos embora.
– Tchau, Fonça.
– Deus dê boa sorte, menino.
Mesmo caduca e perturbada com aquela conversa da cabeça de Lampião, a velha era estimada por todos. Tinha apenas um filho que morava em São Paulo e lhe mandava dinheiro de vez em quando. Muita gente procurava ajudá-la. Todo dia de feira, mãe me encarregava de levar alguns mantimentos para Fonça, que, até caducar, fora a melhor aparadeira de toda a região. Foi ela quem fez o parto de Vavá, lembrava mãe, agradecida.
Um dia, o filho de Fonça chegou de surpresa e a levou para São Paulo. Coroa forte e de cabelos grisalhos, era sargento de polícia. Queria a mãe ao lado dele; queria que ela conhecesse seus netos, que perguntavam sempre pela avó, e seu primeiro bisneto, que ainda não perguntava por ninguém.
Todo o nosso time (e muita gente da cidade) acompanhou Fonça à estação, onde ela e o filho tomaram o trem para a capital e de lá pegariam um ônibus para São Paulo.
Da janela do trem, acenando com o bracinho para todos e alegre no seu risinho sem dentes, Fonça era parte da cidade que ia embora.
– Mande pegar a cabeça no açude – pediu Fonça, dirigindo-se indistintamente a todos, momentos antes do maquinista dar a partida no trem.
Poucos meses depois da viagem, o filho de Fonça escreveu a padre Rubens contando que a mãe havia morrido, tranquilamente, sem dar nenhum pio como um velho passarinho.
– Aposto que antes de morrer ela ainda falou na cabeça de Lampião no açude – disse Beto.
Todos concordamos com ele, daquela vez.
Meses depois da morte de Fonça, eu estava pescando no açude com Vavá, quando pensei na possibilidade da cabeça de Lampião ter mesmo caído na água. E não poderia isso ter acontecido? Perguntei o que Vavá achava. A resposta veio num carão:
– deixe de ser besta, Toinho. A cabeça de Lampião ficou exposta na capital, ao lado do crânio de Maria Bonita e do coco de outros cangaceiros.
13. Jogo de botão
Todo mês tinha campeonato de botão. Os jogos eram disputados na garagem da casa de Ruiberto. Depois da fase eliminatória, eu e Ruiberto chegamos à final. Ruiberto era o grande favorito ao título. Ganhara fácil de todos os adversários. Eu tropeçara em alguns.
Passei todo o dia pensando no jogo. Sabia que podia ganhar de Ruiberto. Ganharia se mantivesse a calma e não repetisse as falhas dos demais adversários dele, que já jogaram conformados com a certeza da derrota. Quem estava ameaçado de perder o título de melhor jogador de botão da turma era Ruiberto, não eu que, ao contrário, estava ameaçado de arrebatar dele aquela glória. Bastava-me ganhar a partida. Portanto, se alguém tinha que ficar preocupado era ele, não o papai aqui.
Quando eu já me preparava para ir à casa de Ruiberto disputar a partida, ouvi de mãe a terrível notícia.
– A família de Edmunda vai embora amanhã, para a capital – disse ela a pai, que deu d e ombros e continuou a sugar o cachimbo, enquanto ia o jornal.
Senti um frio na espinha. Meu coração bateu forte.
– Mentira! – disse, sem pensar direito.
– Mentira o que, menino? Quer apanhar na boca? – enfezou-se mãe.
Baixei a cabeça e olhei para o chão, permanecendo calado.
Mãe passou a mão, suave, em meu ombro.
– Ah, já sei. É sua amiguinha – disse ela, com voz terna.
Fiquei envergonhado e achei melhor sair de casa.
– Não demore muito – ouvi mãe dizer, antes de fechar a porta e ganhar a rua.
Caminhava segurando os botões. Já não me animava o desejo de golear Ruiberto ou simplesmente vencê-lo. O resultado do jogo não me importava mais. No outro dia, não veria mais Soraia.
– Oi, Toinho.
Era Jorge.
– Como é, vai ganhar daquele convencido? – perguntou ele, num tom de quem estava mais me encorajando do que perguntando alguma coisa.
– Não amola – respondi.
– O que foi? Tá nervosinho, é? – estranhou Jorge.
Mais calmo, achei que ele não tinha culpa do desastre que estava para me acontecer.
– É que Soraia vai embora amanhã, morar na capital – contei.
– A Soraia? – Jorge arregalou os olhos, fazendo a mesma cara que eu fiz, ao ouvir a notícia de mãe. – Não é possível!
Compreendi tudo.
– Você também? – perguntei, já com a certeza da resposta.
– Eu, Beto, Adovaldo, Pita, Nico, Ricardo, quase todo o time – admitiu Jorge, com um sorriso tímido e sem graça.
A princípio fiquei com raiva daqueles rivais cuja existência ignorava. Depois consolei-me com o fato de que eu não o único a sentir a falta de Soraia.
– Quem lhe contou? – interrogou Jorge.
– Ouvi mãe falar para pai.
– Então não tem mais jeito – lamentou ele.
– É, não tem – concordei, melancólico.
Seguimos calados para a casa de Ruiberto.
Todo o grupo estava na garagem. Meu adversário demonstrava confiança.
– Vai perder a aposta – advertiu ele.
– Apostaram é? O quê? – perguntou Isidoro.
– Não é da sua conta, peru – cortou Ruiberto.
O campo estava sobre os cavaletes. Ruiberto armou o time dele. Calado, arrumei também as minhas peças.
– Ele não fala de medo – debochou Adovaldo.
Todos riram. Não liguei para a gozação.
– A santa ta séria! – apelou Beto.
Continuei calado, apesar da gargalhada geral. Minhas orelhas pareciam brasas.
– Aposto na zebra. Um a zero, ferrado, para Toinho – disse Ricardo.
Novas risadas.
Janjão, o juiz, apitou, autorizando o início da partida.
O primeiro tempo terminou com o placar de dois a zero, para Ruiberto.
– Vai ser seis a zero – previu Godofredo.
Traidor; me ajudando no treino e querendo ver, agora, o meu estrago.
Na saída de bola do segundo tempo, eu coloquei, com dois toques, um atacante em condições de chute. Teria direito ainda a mais um toque na bola.
– Arme – avisei.
– Com você nem precisa armar – desprezou Ruiberto, preferindo não mexer no goleiro.
Chutei. Bola no cantinho. Dois a um.
Ruiberto deu nova saída e acertou um passe perfeito para um atacante.
– Agora é minha vez. Arme. – comemorou ele, triunfante.
Armei o goleiro. A bola bateu num zagueiro e foi cair no campo dele, aos pés de um jogador meu.
– Arme – mandei.
Desta vez ele mexeu no goleiro e fechou o ângulo para o meu batedor. A bola, porém, encobriu o goleiro. Dois a dois.
– Boa! Vire o jogo, Toinho –torceu Jorge.
A partida prosseguiu equilibrada. Faltavam apenas dois minutos para acabar o tempo regulamentar. Se o empate persistisse, haveria prorrogação. Pressenti que não havia nenhum mistério naquele jogo que aguardei com tanta ansiedade. Eu estava incrivelmente tranqüilo, enquanto meu adversário parecia nervoso. Com receio de ser surpreendido no finalzinho da partida, ele agora jogava com bastante cautela. Compreendi que minha tranquilidade vinha da certeza de que o resultado do jogo nada representava comparado à partida. De repente, minha calma foi se transformando em revolta e esta em raiva. Passei a jogar como um endiabrado.
– Arme – avisei.
A bola estava distante, um chute quase impossível.
– Daí? – perguntou Ruiberto.
– Daqui mesmo – disse eu, com segurança.
As mãos de Ruiberto tremeram ao ajeitar o goleiro, deixando-o praticamente no mesmo lugar.
Chutei. Meu botão passou, veloz, para a linha de fundo, resvalando o canto da bola, que entrou por uma brecha entre o goleiro e a trave. Golaço. Todos vibraram.
Abalado, Ruiberto deu nova saída. Complicou-se ainda mais. Por azar, a bola voltou ao campo dele.
– Arme – mandei.
– Armaaadoo – gaguejou ele.
– Onde você quer o gol? No canto direito ou no esquerdo? – perguntei, por vingança.
Ruiberto só faltou espumar de ódio.
– Chute logo, pô – desesperou-se ele.
Não fiz muita pontaria, mas, mesmo assim a bola entrou no canto esquerdo. Quatro a dois. Segundos depois, o juiz apitou o encerramento da partida.
É canja, é canja,
É canja de galinha,
Arranja outro time
Pra jogar com nossa linha.
Toda turma começou a cantar. Ruiberto só não botou todo mundo para fora da casa dele para evitar que sua derrota parecesse ainda mais humilhante.
Janjão entregou-me a medalha de campeão. Ruiberto recebeu duas medalhas, a de segundo lugar e da de artilheiro do campeonato. Após a entrega dos prêmios, ele desapareceu por uma porta lateral da garagem. Retornou minutos depois, com sua patinete.
– Tome. Você ganhou – disse ele, estendendo-me o brinquedo.
– Não, pode deixar. Para mim, basta a medalha – recusei.
– De jeito nenhum. Você ganhou. Faço questão – insistiu Ruiberto.
– Já disse que não é preciso. Nem de patinete eu gosto – menti.
Virei às costas e fui para casa, acompanhado de Jorge, a quem dei a medalha, indiferente àquela minha noite de glória.
14. Uma triste despedida
Usando o uniforme do time, eu, Jorge, Adovaldo, Beto, Nico, Pita e Ricardo, paramos a poucos metros da casa de Soraia. Queríamos vê-la pela última vez. Foi Jorge quem deu a ideia de irmos com o traje do Vila da mata para fingir que estávamos a caminho de um jogo.
– Ninguém conseguiu namorá-la – suspirou Nico.
– Ruiberto disse que conseguiu – informou Ricardo.
– Mentira – protestei. – Quem foi que viu ao menos ele dar um beijo nela? Ninguém. Portanto, não namorou. Só se foi com Seu Tote…
Todos rimos.
Instantes depois, chegou o carro da mudança; um dos caminhões da companhia em que Seu Tote trabalhava. Padre Rubens passou pelo grupo e perguntou se ia ter jogo.
– Vai, sim, padre. Daqui a pouco – menti.
– Olha, meninos, nada de brigas. – recomendou padre Rubens, com seu costumeiro mau hálito.
O cara-de-pau do Adovaldo segurou a mão do sacerdote e deu-lhe um sonoro beijo.
– Bença, padre!
Todos nos esforçamos para não explodir em risos.
– Jesus lhe proteja, meu filho – desejou padre Rubens, seguindo o caminho da igreja.
Adiante, vimos ele esfregar, na batina, a mão beijada para limpar a baba que Adovaldo havia deixado de propósito. Rimos à solta desta vez.
Passada a algazarra, olhamos ansiosos as janelas da CSA de Seu Tote, procurando Soraia. Bem que ela podia aparecer e demorar um pouco num das janelas, a fim de que a gente pudesse reter melhor na memória o seu rostinho encantado.
Uns dez homens da companhia colocavam os móveis e utensílios no caminhão. Vestindo – pela primeira vez, acho eu – o macacão cáqui da empresa, Seu Tote dava ordens aos homens, sem pegar no pesado como eles. Perto do meio-dia, toda a mudança já estava no veículo.
– Olhem ela lá – gritou Ruiberto, apontando na direção da porta da casa.
Soraia usava um vestido vermelho de bolinhas brancas e segurava, pelas orelhas, um coelho de pelúcia. Foi assim que eu sempre quis me lembrar dela: em pé, na porta da casa, ainda mais bonita do que era, no seu vestidinho vermelho de bolinhas brancas, agarrando pelas orelhas o seu coelhinho.
– Eu queria ser aquele coelho para ir com ela – desejou Adovaldo.
– Eu também – invejou Nico.
– E eu – emendou Pita.
Todos desejamos ser aquele coelho sortudo.
Dona Edmunda apareceu segurando uma valise.
– Aposto que são as jóias – afirmou Beto.
– Mãinha falou que ela tem bastante jóia – disse Pita.
– Tem mesmo. Ela ia às festas no clube parecendo mais a arca do tesouro – comparou Adovaldo.
– É, mais o tesouro mais precioso ela não levava – observou Jorge, apontando Soraia.
Dona Edmunda entregou a maleta a Seu Tote e segurou a mão de Soraia. Ao olhar para a rua, ela nos viu, os sete uniformizados, sentados na calçada oposta ao passeio dela. Eu usava o traje de goleiro: camisa azul, de mangas compridas, calção preto, meiões amarelos e luvas.
Dona Edmunda cochichou algo no ouvido de um dos peões da companhia.
– Ela está apontando para a gente – disse Jorge.
– Não é melhor a gente se mandar? – perguntou Nico.
– Besteira – reagiu Beto. – A rua é pública. Ela não pode mandar nos tirar daqui. Nem o prefeito pode. Pagamos impostos.
– Pagamos? – perguntou Ricardo.
– Nossos pais pagam; dá no mesmo – corrigiu-se Beto.
O homem veio andando em nossa direção.
– Vai nos enxotar daqui – temeu Pita.
– Quero ver – gabou-se Beto.
O peão se aproximou. Parou a três passos do grupo.
– A madame quer falar com você – disse-me ele.
– Comigo? – estranhei.
– É, você mesmo – repetiu o homem.
Olhei para o pessoal sem saber o que fazer.
– Vá, rapaz; ande logo – incentivou Beto.
– Vá ver o que ela quer, Toinho – disse Adovaldo.
– Se você não for, eu vou – intrometeu-se Ricardo.
Hesitei alguns instantes.
– Não, pode deixar. Eu vou – decidi, seguindo o peão.
O que será que Dona Edmunda quer comigo? Pensava no caminho. Será que descobrira que eu gostava de Soraia e estava pronta para me dar a maior bronca? Meu coração ameaçava sair pela boca, quando me aproximei de Dona Edmunda e Soraia.
– Olá, Toinho. Como vai sua mãe? – perguntou Dona Edmunda, numa voz tão suave que me tranquilizou.
– Bem, obrigado – respondi, sentindo as orelhas latejarem, e intrigado pelo fato de Dona Edmunda saber meu nome.
– Olhe, Toinho, aqui tem o nosso novo endereço. Entregue-o a sua mãe e diga para ela aparecer, quando for na capital – pediu Dona Edmunda, dando-me uma folhazinha de caderneta.
Fiquei segurando o papel sem saber o que dizer.
– Agora, nós vamos embora. Deus lhe proteja, Toinho – desejou Dona Edmunda.
Depois ela abaixou-se e deu-me um beijo que deixou a marca do batom no rosto. Fiquei vermelho dos pés à cabeça. Todo o meu corpo formigava. Um beijo de Dona Edmunda. Eu nunca pensei que um dia ela fosse me beijar. Mas, não acabou aí.
– Agora, Soraia, dê um beijo de despedida em seu amiguinho – mandou Dona Edmunda.
– Quero dar não, mamãezinha – choramingou Soraia.
Meu Deus! As lágrimas vieram-me aos olhos. Baixei a cabeça para Dona Edmunda não ver que eu estava quase chorando. Tive vontade de ser um tatu para me esconder numa toca, onde ninguém ia mais me achar.
– Vamos, minha filha; é seu amiguinho; dê um beijo nele – disse, com paciência, Dona Edmunda.
Eu estava cada vez mais embaraçado.
– Não é meu amiguinho nada; eu nunca brinquei com ele – teimou Soraia.
Aí, comecei a chorar. Uma lágrima rebelde deslizou-me pelo canto do olho. Fingindo que estava coçando o rosto, limpei a desgraçada com o dorso da mão.
– Menina malcriada – brigou Dona Edmunda. – Bem, Toinho, adeus.
Eu já estava saindo em disparada, quando Seu Tote pegou no meu ombro.
– Tome, rapaz, é seu – disse, sorrindo.
Ele estava me dando um canivete suíço. Servia para um monte de coisas: cortar unhas, tirar tampinhas de garrafa, sacar rolhas, descascar laranja, abrir latas etc.
Estava pensando se deveria aceitar ou recusar o presente. Seu Tote parece que adivinhou meu pensamento.
– Vamos, pegue – insistiu ele. – O canivete sua mãe não vai mandar me devolver, e, se mandar, eu já não estarei mais aqui.
Peguei o canivete e saí correndo, sem agradecer, nem olhar para trás.
– Olha só o que ele ganhou – disse Beto, cobiçando o canivete.
– Quer vender? – propôs Nico.
– Oh, sortudo. Ganhou também um beijo de Dona Edmunda. Vejam a marca do batom – xeretou Adovaldo.
Todos me invejavam. Não sabiam, no entanto, do vexame pelo qual eu acabara de passar. Eu também não seria besta de dizer nada.
Pouco tempo depois, o caminhão partiu. Um peão colocou um cadeado no portão da casa, devolvida à companhia. O veículo passou devagar pelo grupo. O motorista buzinou. Dona Edmunda acenou, levando Soraia no colo.
– Nem se despediu de mim – queixou-se Beto.
– Nem de mim – disse Adovaldo.
– Nem de mim – imitou Ricardo.
– Só de Toinho, felizardo – afirmou Jorge.
Nem de mim, pensei.
– Acabou a despedida. Que tal um bate-bola? – sugeriu Beto.
– Eu vou para casa; só se for depois do almoço – falei.
A turma foi para o campo. Eu tomei o caminho de casa. Estava muito abalado com a recusa de Soraia em me beijar. Era o que dava gostar de uma bobinha daquela: receber um coice, depois. Uma menina já grande e só: “quero não, mamãezinha; não é não, mamãezinha”, parecendo um bebezinho. O besta aqui é que não ia mais gostar dela; não ia nem mais pensar nela.
15. O Homem da Pasta preta
Velha e abandonada, a casa ficava no fim da rua. Fomos lá de noite. Ela tinha um sobrado com várias janelas, todas com a vidraça quebrada e rangendo nos gonzos sempre que uma lufada de vento batia mais forte.
A casa estava totalmente às escuras. Alguns morcegos saiam e outros entravam pelas janelas do sobrado.
– É mal-assombrada – garantiu Isidoro.
– Dizem que é aí onde se esconde o Homem da Pasta Preta – avisou Beto.
Eu senti um calafrio. Estaríamos fritos, se aquilo fosse verdade. O Homem da Pasta Preta, o terrível estrangulador de crianças, ali por perto? Ele carregava sempre uma pasta preta dentro da qual levava uma fina corda de nylon, utilizada para estrangular as crianças, de preferência meninos.
Lembrei-me da noite em que eu e Ruiberto fomos levar o pai dele à estação ferroviária. Seu Eduardino embarcou para a capital. Nós ficamos na estação, zanzando e xeretando nas bancas de revistas. Pouco depois faltou energia elétrica. Achegou logo depois. Durou apenas o tempo suficiente para que – com os olhos arregalados de espanto – nós víssemos, comprando o bilhete do trem, o Homem da Pasta Preta, ali, pertinho da gente, segurando a temível pasta de couro. A energia elétrica faltou outra vez. Eu e Ruiberto trememos de medo. Se o estrangulador nos visse, únicos meninos na rua àquela hora da noite?
O último trem chegou á estação. O Homem da Pasta preta olhou na nossa direção, sem, contudo, nos ver. Precavidos, havíamos nos escondido atrás de uma pilastra. O bandido empurrou ainda mais o chapéu na cabeça (creio que não queria mostrar a cara horrorosa) e, da plataforma de embarque, deu um salto ágil, alcançando a cabine do trem.
Mesmo quando a máquina deu a partida, a figura sinistra do estrangulador ainda nos amedrontava.
– E s ele fez que pegou o trem, e saiu pelo outro lado para pegar a gente por trás?
A pergunta de Ruiberto me encheu de pavor. Ao invés de respondê-la, puxei meu amigo pelo braço e corremos a toda velocidade. Chegamos em casa ofegantes e aliviados, avisando que acabáramos de ver o Homem da Pasta preta tomando o trem para estrangular meninos em outra cidade.
– Tolices – disse Vavá.
***
– E se o Homem da Pasta Preta estiver aí dentro? – insistiu Beto, apontando o velho sobrado.
– Não está – tranquilizei. – Ele foi embora da cidade há mais de um mês. Eu vi.
– Eu também vi – reforçou Ruiberto.
– Mas, pode ter voltado – teimou Beto.
– Se tivesse voltado, a gente já sabia – discordei.
– É. À essa altura já teriam aparecido outras histórias de meninos estrangulados e, se ninguém mais falou no assunto, é porque o homem não voltou – raciocinou Ruiberto.
No fundo da casa havia uma porta meio carcomida. Nós a abrimos sem muito esforço.
– Quem sobre na frente? – perguntou Nego.
Ficamos calados. Cada um olhava um para o outro, esperando que algum voluntário se apresentasse para ir na dianteira. O corajoso, contudo, não se manifestava.
– Vai Beto, que é o mais velho – sugeriu Ricardo.
– Eu não – esquivou-se Beto, arranjando uma desculpa. – Sou míope e posso tropeçar com essa escuridão, cair da escada e quebrar o braço ou a perna.
– Ou o pescoço – completou Jorge.
– É – concordou Beto, fuzilando Jorge com os olhos.
Impaciente com a indecisão, ofereci-me para conduzir o grupo. Não que fosse o mais corajoso da turma e sim por ser o único que havia trazido uma lanterna. Tomei-a emprestada de Vavá, dizendo que íamos empreender uma destemida aventura logo mais à noite (ele só emprestou o aparelho depois que eu passei cera no assoalho da casa no lugar dele).
Acendi a lanterna e transpus a porta. No pátio havia um monte de garrafas empilhadas. Quando o último dos nossos acabou de entrar na casa, sussurrei pedindo que a porta ficasse aberta para a eventualidade de uma fuga precipitada.
O vento açoitava um abacateiro no pátio e fazia as janelas do sobrado baterem. Alguém quis falar.
– Psiu! – recomendei.
Algo com os olhos em brasa saltou das pilhas de garrafas, derrubando e quebrando alguns cascos.
– Uai! – gemeu alguém na retaguarda.
Outros correram para a saída. Com muito receio, lancei o foco de luz na direção de onde viera o barulho. Sorri, tranquilizador. Um gato malhado encarava, com ar feroz, um gato preto. Ruiberto afugentou os brigões.
– Aposto que Isidoro se mijou – provocou Beto.
– Mijei-me, é? – defendeu Isidoro. – Pegue aqui para ver se to mijado, ô…
– Psiu! – pedi novamente, apesar do barulho das garrafas quebrando-se ter sido suficiente para acordar qualquer pessoa ou bicho.
Todos se calaram. Alcancei o primeiro vão da escada de madeira, em forma de parafuso.
– Pisa com cuidado, pessoal, que a madeira parece apodrecida – avisei, começando a subir sempre iluminando o caminho com a lanterna.
Ruiberto seguia logo atrás de mim. Depois vinham Beto e Adovaldo. Os demais hesitavam em subir a escada. O silêncio era tão grande que eu podia ouvir a respiração de alguns companheiros.
– Vamos, cambada de frouxos – chamei os medrosos.
Eles se encheram de coragem (ou de vergonha) e iniciaram a subida. No fim da escada, cheguei a uma porta entreaberta. Parei cauteloso. O vento continuava com seu assovio lúgubre.
– Será que tem mesmo alguém aí dentro? – cochichei com Ruiberto.
– Deve ter sido o vento que deixou a porta entreaberta – opinou ele.
Empurrei a porta com cuidado para não fazer barulho. A escada rangia sob os pés dos companheiros que vinha atrás. Sempre seguido por Ruiberto, Adovaldo e Beto, entrei numa ampla sala sem nenhum móvel. Depois da sala, havia outra porta, também entreaberta. Todo o grupo já se encontrava na sala. Ao invés de nos tranquilizar, o silêncio nos mantinha em suspense.
– Vamos entrar no quarto – disse, baixinho, após breve hesitação.
Não precisou.
O pavor dominou toda a turma.
Num gesto rápido e vigoroso, a porta foi aberta por mãos possantes. Na soleira, estancou-se um vulto negro, usando uma sobrecasaca, um chapéu de abas largas, com o rosto encoberto por um lenço; segurando um candeeiro numa mão e uma pasta na outra.
– Meu Jesus! É, hic, o Homem, hic, da Pasta Preta – apavorou-se Beto, entre soluços.
Era mesmo. Ficamos todos petrificados de medo. O pavor aumentou, quando soou a voz roufenha do vulto.
– Vocês entraram nos domínios do Homem da Pasta Preta e vão pagar bem caro por essa ousadia. Aqui está o meu cordão estrangulador. Estão todos perdidos; perdidos, perdidos, ha, há, há…
A gargalhada sinistra ecoou no silêncio da noite como uma sentença de morte.
– Você aí, com a lanterna, será o primeiro a sentir o carinho do meu fio de nylon. O primeiro, há, há, há… Depois, pegarei todos os outros – e o vulto fez o gesto de estrangular. – Não há como escapar de mim. Ninguém nunca escapou. Estão todos perdidos; perdidos; perdidos, ha, ha, ha…
Até hoje não sei como consegui recuperar o sangue frio, apesar do pavor. Atirei a lanterna no Homem da Pasta Preta, que se esquivou e continuou sua gargalhada demoníaca.
– Debandar, turma! – gritei, precipitando-me escada abaixo.
Como cavalos em disparada, descemos no escuro os degraus. Chegamos salvos à rua. Por sorte, ninguém se machucou. Godofredo, Jorge e Ricardo tinham as calças molhadas.
Ouvimos passos na escada e a terrível gargalhada soar mais próxima.
– Perdidos; estão perdidos, há, há, ha…
– Ele tá vindo, tá descendo a escada. Sebo nas canelas, pessoal – gritou Ruiberto.
Respiramos aliviados, quando chegamos em casa – a mais próxima do sobrado – onde entramos sem fôlego.
Pai lia o jornal, fumando charuto.
– Que correria é essa? – estranhou ele.
– O Homem, pai; o Homem da Pasta Preta, nós o vimos, no sobrado do antigo armazém.
– Que Homem da Pasta Preta que nada – duvidou pai, continuando a leitura sem ligar para a gente.
– Que baita susto, hein, turma? – comentou Nego.
Antes que alguém pudesse responder, o mesmo vulto negro de chapéu apareceu por trás da vidraça da porta.
– Pai, olhe ele, ali, pai – gritei.
Pai olhou-me contrariado, pronto a me dar um carão por interromper sua leitura.
– Cuidado, pai – alertei.
Ficamos todos quietos. Pai parecia um super-herói, caminhando destemido de encontro ao vilão. Girou a maçaneta da porta, abriu o trinco e se defrontou com o Homem da Pasta Preta, pronto para o duelo.
– Ah, é você? – reconheceu ele. – Já para dentro.
Ninguém entendeu a intimidade entre pai e o estrangulador, até Vavá entrar em casa, segurando o chapéu, a capa, o lenço, o candeeiro e soltando a mesma gargalhada que nos apavorou.
– Aí está o Homem da Capa Preta de vocês – disse pai, indicando Vavá e com um sorriso de deboche nos lábios.
– Perdidos; todos perdidos, ha, ha, há…- caçoou Vavá
A vontade que eu tinha era de estrangulá-lo da mesma maneira que o verdadeiro Homem da Capa Preta estrangulava as crianças, sem nenhuma piedade.
Bastante envergonhado pela demonstração de medo, todo o grupo ficou em silêncio.
– O primeiro; você será o primeiro, ha, ha, há… – repetiu Vavá, olhando para mim.
– Você não se acha crescidinho para brincar assim, com os meninos? Devia já estar namorando – mãe, que assistia televisão, ralhou com Vavá.
Vavá ficou da cor de um pimentão maduro.
– Boa, mãe – vibrei.
– Ninguém lhe chamou na conversa – cortou ela, sem demonstrar aborrecimento.
O falso Homem da Pasta Preta foi para o quarto resmungando. Ele ainda não tinha namorada e detestava quando alguém tocava no assunto.
– Meninos, tem cocada para todos – ofereceu mãe.
Fomos com ela para a cozinha. Sua cocada era falada na cidade. Nem bastante dura, nem mole, a cocada, de uma cor leitosa, dissolvia-se após alguns instantes na boca. Da cozinha, ainda constrangidos, ouvimos a gargalhada provocativa de Vavá. Prometemos nos vingar dele, na primeira ocasião.
16. Antes do jogo
Não consegui dormir direito na noite anterior ao jogo. Fiquei imaginando vários lances. Via-me defendendo bolas difíceis, espalmando para escanteio cobranças de pênaltis – o juiz mandando, por alguma irregularidade, ou por roubo mesmo, o atacante repetir a cobrança; nosso time protestando, eu defendendo outra vez o chute e sendo euforicamente cumprimentado pelos companheiros. Em outros lances, eu me jogava aos pés do adversário para evitar o gol ou dava bicudas providenciais, colocando a bola para fora do campo. O triunfo era completo. Campeão, graças principalmente a mim, o Vila da Mata erguia a taça e dava a volta olímpica no estádio (sim, porque nós jogávamos num verdadeiro estádio de futebol, não num campinho de várzea sem gramado e cheio de buracos como, de fato, ocorria). Eu, herói do jogo, era carregado pela torcida em festa.
Em outros momentos, eu me via tomando um frango e o Vila perdendo por minha culpa. A torcida me vaiava, os companheiros davam-me broncas e eu deixava o campo sozinho e cabisbaixo, chorando.
Precisamos ganhar a partida de qualquer modo, pensava sem conseguir pegar no sono. O Cajueiro Verde vencera competição anterior e não podia ser bicampeão. Ganhara o torneio sem conseguir vencer o Vila. O jogo foi zero a zero, um ótimo resultado para o Cajueiro que jogava pelo empate e suportou um sufoco medonho do nosso time. O Vila esteve mesmo num dia de azar. O gol do adversário parecia rezado. Não havia jeito da bola entrar nele. Aquele empate injusto está, até hoje, atravessado na garganta de todos os jogadores, do técnico e da torcida do Vila. No dia seguinte, teríamos a grande revanche e desta vez a sorte não seria besta de ficar contra o Vila.
***
– Vamos, campeão, acorde.
Abri os olhos, ainda com sono. Era pai. Ele usava a camisa do Vila. O uniforme tinha as cores verde, vermelha e branca. Referindo-se às três tonalidades, Janjão dizia que o verde simbolizava a juventude do nosso time; o vermelho o sangue que cada jogador precisava dar dentro de campo, e o branco a paz que se consegue na vitória.
Alarmado com o chamado de pai, pulei da cama num pinote.
– Calma, homem-borracha, ainda é cedo – informou ele.
Era mesmo. Sete e meia. O jogo estava marcado para começar às dez e meia.
– É que vi o senhor com a camisa…
– Muita gente na cidade está usando ela. A do Cajueiro também. O prefeito mandou fazer várias camisas de ambos os times. É ano de eleição e ele quer promover o candidato dele com o jogo – explicou pai.
Então, haveria torcidas uniformizadas, como num jogo de profissionais. Ah, seria de lascar…
Escovei os dentes, penteei os cabelos e fui tomar café.
– Aí vem nosso beque – disse mãe, à maneira de saudação.
– Deixe de ser burra, mãe…
– Burra o quê, moleque? – enfezou-se ela.
– Ora, mãe, desculpa. É só jeito de falar.
– E isso é jeito de falar com sua mãe?
– Tá certo. Eu vou explicar – defendi-me. – Beque é jogador de linha. Eu sou goleiro; go-le-i-ro, mãe.
– Se pai disse que esse tal de beque é jogador de rebate a bola para frente e não deixa o outro fazer gol. Não é isso que você faz lá, à frente das traves?
– Também, mãe. Bah, a senhora não ia entender mesmo – falei, desistindo de continuar a explicação.
Como se fosse castigo, ela mandou-me ir à padaria.
– Logo agora? – protestei.
– Ande logo e não converse – ordenou, dando-me dinheiro.
Andei e não conversei.
Na padaria, encontrei Demócrito.
– Vou fazer dois gols em você, frangueiro – provocou ele.
– Em cima de mim você não faz gol. Todo mundo pode fazer, menos você, olho de boi – prometi, aproveitando para abusar Demócrito, que detestava o apelido de “olho de boi”.
– Veremos – disse ele, dando as costas e caminhando numa ginga de mascarado.
– Vai, olho de boi! – gritei, mas Demócrito não me deu ouvidos.
Além de Demócrito, o Cajueiro Verde tinha dois outros jogadores que preocupavam o Vila. Rozendo, beque porradeiro, capaz de pisar na própria sombra, se não tivesse adversário por perto, e Darcizinho, ponta veloz, arisco, de chute forte e certeiro. Ruiberto garantiu que cuidaria de Rozendo, “na bola ou no tapa se precisasse empregar a violência”. Janjão recomendou marcação cerrada sobre Darcizinho.
Levei o pão para casa, tomei café e fui me juntar ao time.
Metade do Vila já estava na casa de Janjão, quando eu cheguei. A metade chegou pouco tempo depois. Ruiberto foi o último a aparecer. Nos pés dele estavam nossas maiores esperanças de gols, principalmente porque ele tivera bons desempenhos nos jogos anteriores.
– Atenção, pessoal – pediu Janjão.
Prestamos atenção.
O técnico escalou o Vila:
– Toinho, Godofredo, Dagô, Silvano e Nico. Pita, Beto e Adovaldo. Isidoro, Ruiberto e Ricardo.
– Eu não aceito a reserva – rebelou-se Nego.
– Então, não joga hora nenhuma – sugeriu Beto.
– Não joga mesmo – teimou Nego.
– Ouça, aqui – disse Janjão, com autoridade – se não quiser ficar no banco, terá que procurar outro time para jogar, pois, no Vila não fica mais. Não admito indisciplina. Muitos jogadores bons já esquentaram o banco de reservas e não se acharam desmerecidos por isso; ao contrário, suplantaram, inclusive, suas eventuais limitações físicas ou técnicas.
Nego apanhou a camisa de reserva. Jorge iria lhe fazer companhia no banco.
– Bem, pessoal – falou Janjão. – O importante é não perder a calma. A partida deverá ser equilibrada. Portanto, não há favorito. Ganha o que menos errar e for decisivo na hora certa. Vamos evitar o clima de “já ganhou”. Podemos vencer o jogo. Não precisa afobação. Basta não dar muito espaço a Demócrito e Darcizinho, responsáveis pelas principais jogadas ofensivas do Cajueiro Verde, e manter o domínio no meio-de-campo e a posse de bola, com Adovaldo voltando sempre para ajudar a defesa. A gente precisa fazer isso durante toda a partida. No time deles, Rozendo é vigoroso no desarme, bate muito, mas é vacilão no jogo aéreo, além de ser menor do que os nossos três atacantes. Temos que aproveitar essa deficiência dele com cruzamentos, na base do chuveirinho, para a área e tentarmos o gol de cabeça. Ruiberto tem boa impulsão e pode cabecear à vontade, ganhando todas de Rozendo.
A preleção durou uns vinte minutos. Prometemos seguir à risca as instruções de Janjão. Fomos para o campo. Eu não estava tão tranquilo como desejava.
17. A grande final
Pai agitava uma bandeira com as cores do Vila. Mãe não parava de acenar-me. Acho que ela veio ao campo apenas para acenar, pois, dificilmente entenderia o jogo.
Havia cerca de cem pessoas esperando o início da partida. A preferência do público estava dividida. Metade das pessoas torcia para o Vila. A outra metade para o Cajueiro Verde.
Seu Clarismundo da Farmácia era o juiz da partida. Não havia bandeirinhas. O prefeito Naelson Fontes, ao lado de seu candidato, Dadinho de Zilda, quis fazer um discurso antes do jogo, mas Seu Clarismundo, que lhe fazia oposição, disse que o comício ficaria para depois da decisão. Maldoso, sugeriu que o prefeito desse o pontapé inicial da partida, mas Naelson Fontes, que era capenga, mas não era besta, recusou a oferta.
Ao entrar em campo, o Vila foi entusiasticamente saudado pela torcida. O Cajueiro Verde surgiu logo depois. Também foi muito aplaudido. O Cajueiro Verde escolheu o lado do campo, a favor do vento. O Vila ficou com a saída de bola. Antes da bola rolar, fiz duas vezes o pelo-sinal.
A partida estava prevista para durar sessenta minutos (trinta de cada etapa). Em caso de empate, haveria mais dez minutos de prorrogação. Persistindo a igualdade no placar, teríamos cobranças de pênaltis.
A bola rolou.
Os primeiros minutos foram mornos, com os dois times limitando-se a estudar um ao outro e preferindo a cautela às jogadas ofensivas. O jogo esquentou aos doze minutos. Adovaldo desarmou Darcizinho no meio-de-campo e lançou para Ruiberto, que ganhou de um adversário na carreira, driblou Rozendo e foi derrubado na intermediária. O juiz marcou a falta.
Beto batia bem daquela distância. A barreira do Cajueiro foi formada por quatro jogadores. Hugo, o goleiro, fechou mais o canto esquerdo, enquanto a barreira fechava o flanco direito.
Beto chutou no canto direito, mas Hugo deu dois passos para aquele lado e voou na bola. Colocando-a, de mãos trocadas, para escanteio, numa bela defesa. Os torcedores aplaudiram-no.
A resposta do Cajueiro veio logo depois. Darcizinho passou por Silvano, avançou sem marcação e enfiou abola para Demócrito. O centroavante bateu Pita, deu um lençol em Godofredo, que foi de vez no lance, e invadiu sozinho. Ao perceber que o zagueiro seria batido, saí do gol e consegui abafar a bola, antes de Demócrito concluir a jogada, cara a cara comigo.
– Viu, otário, que aqui você não faz nada – provoquei.
Demócrito cuspiu no chão e nada respondeu.
Ruiberto sofreu uma falta violenta e desnecessária de Rozendo, revidando sem bola. Rozendo partiu para a briga. Ruiberto esperou-o, preparado. Xavenes, beque do Cajueiro, segurou Rozendo. Adovaldo puxou Ruiberto, tentando acalmá-lo. Seu Clarismundo deu cartão amarelo aos dois brigões.
– Dá próxima, expulso – ameaçou.
O primeiro tempo prosseguiu sem muitas emoções. A bola era muito disputada no meio-de-campo e, quando chegava à intermediária, um zagueiro dava-lhe um chute providencial para longe.
Seu Clarismundo apitou o término da primeira etapa. Haveria dez minutos de descanso.
Voltamos para o segundo tempo com a recomendação de deixar de lado o excesso de toques. Precisávamos chegar mais rapidamente ao gol adversário, impondo mais velocidade nas saídas de bola. E o jogo aéreo, porque não havíamos tentado mais vezes? Perguntava Janjão. Para dar mais velocidade ao Vila, o técnico colocou Nego no lugar de Beto, lento e indeciso no meio-de-campo.
Foi uma boa troca. Logo no primeiro minuto, Nego recebeu um passe de Adovaldo, despachou dois adversários com um drible de corpo; caiu para a ponta esquerda e centrou para a área. Ruiberto subiu mais do que Rozendo e cabeceou.
No travessão, que azar, desesperei-me.
A dez minutos do final do tempo regulamentar, numa incrível arrancada, Xavanes aproveitou um cochilo da nossa defesa e fez um passe preciso para Demócrito que avançou sozinho. Godofredo veio no desespero e deu uma tesoura, prendendo as pernas do centroavante. A falta ocorreu a um palmo da grande área, mas esperto, Demócrito, na queda, projetou o corpo para frente. Seu Clarismundo marcou pênalti.
Todo o Vila protestou contra a marcação, envolvendo o juiz num círculo inconformado.
– Marquei e tá marcado – disse Seu Clarismundo.
– Ladrão! – xingou Ruiberto.
– O quê?! – espantou-se o juiz.
– Ladrão. Roubou nosso time – repetiu Ruiberto.
Foi besteira. Não podíamos perder a cabeça. Ainda tínhamos dez minutos pela frente.
– Me respeita, menino – disse, zangado, Seu Clarismundo, mostrando, em seguida, o cartão vermelho.
– É ladrão mesmo. Rouba no campo e na farmácia – disparou Ruiberto, enfurecido pela expulsão.
Seu Clarismundo ficou vermelho de raiva. Janjão intrometeu-se entre e ele e o nosso centroavante.
– Desculpa, Seu Clarismundo. O garoto está nervoso. Esse jogo é muito importante para ele – disse o técnico do Vila.
– Tá bem – concordou o juiz. – Agora, tirei-o de campo.
Ruiberto saiu cabisbaixo. Veio até mim. Seus olhos estavam injetados. Ele continha com esforço o choro.
– Defenda, Toinho – pediu-me.
– Pode deixar – consolei-o sem convicção (sabia o quanto era difícil pegar um pênalti cobrado por Demócrito).
Caminhando devagar, Ruiberto juntou-se à torcida.
Era mesmo muito azar. Primeiro, a marcação de um pênalti inexistente. Depois, a expulsão do nosso melhor jogador. Que mais podíamos esperar?
Fina, a chuva começou a cair. Muita gente já esperava por ela e trouxera guarda-chuvas e sombrinhas.
Demócrito ajeitou a bola na marca do pênalti.
- Então, não faço gol? – provocou, num sorriso de canto de boca.
Pelo riso (quase um esgar) notei que ele estava nervoso. Aquela não era a maneira de uma pessoa tranquila sorrir. Demócrito tinha nos pés uma grande responsabilidade. Podia decidir o campeonato com aquela cobrança. Se perdesse o pênalti, estaria frito, no caso de uma derrota do seu time.
– Você tá nervoso – azoei. – Tem medo de perder e, por isso, vai perder, olho de boi.
Demócrito quase não tomou distância para o chute. Era sinal de que a bola viria fraca, colocada, mas sem muita força.
O juiz ordenou a cobrança. Demócrito partiu para a bola. Aqueles instantes me pareceram longos demais; o atacante correndo para a marca do pênalti; eu parado no gol, com os braços e as pernas abertos, aguardando ansioso a bola, prestes a vir como um tiro de misericórdia.
Mirei os olhos de Demócrito. Canto esquerdo, intuí. Ele chutou. Atirei-me para o canto esquerdo, sem ímpeto. Foi minha sorte. Nem forte, nem fraca, a bola veio no meio, exatamente onde se coloca os goleiros nas cobranças de pênaltis. Em pleno vôo, levantei a perna e consegui interceptá-la, jogando-a para o lado, onde Nico apressou-se em chutá-la para escanteio.
– Puta que pariu! – gritou Ruiberto, da torcida. – Grande, Toinho!
A emoção dominou todo o Vila. Recebi abraços de todos os jogadores; aplausos e assovios da torcida. Janjão vibrava, batendo palmas. Pai e mamãe acenavam para mim. Vavá pulava de contentamento.
– Viu otário que, em mim, não faz gol – cantei.
Cabisbaixo, vaiado por alguns torcedores do Cajueiro Verde e forçado a ouvir nossos gritos de alegria, Demócrito rumou para o meio-de-campo, onde Darcizinho foi consolá-lo.
O otimismo nos dominou. Ganharíamos a partida. O pênalti não foi defendido em vão.
Três minutos depois, Pita, com categoria, dominou uma bola rebatida na intermediária do Cajueiro e chutou a gol. O arremesso saiu fraco. Hugo caiu no canto certo. A bola, entretanto, resvalou numa saliência do terreno e entrou no canto direito do gol. Fora muito azar do goleiro.
O Vila estava eufórico. Um a zero, a dois minutos do final do tempo regulamentar. Formamos uma pirâmide humana, com cada jogador pulando nas costas do outro, comemorando a vantagem e cumprimentando Pita. Janjão batia palmas. A torcida do Vila agitava as bandeiras. Um pênalti defendido e um gol marcado no finalzinho do segundo tempo e, ainda, por cima, atuando com um jogador a menos, não qualquer jogador, mas o melhor do nosso time. Era o máximo. Ninguém mais tiraria a taça da gente.
A bola rolou outra vez. Todo o Vila foi para a retranca, a fim de segurar o resultado. Faltava pouco mais de um minuto para o encerramento do tempo normal de jogo. O Cajueiro Verde vinha todo para cima da gente, mas não conseguia furar nosso bloqueio.
Os segundos passavam. A chuva engrossou. Eu já sentia o sabor da vitória. O Vila Campeão, meus Deus! Seu Clarismundo já consultava o relógio. Acaba logo; acaba de uma vez, torcia do gol.
Adovaldo cometeu um a falta desnecessária em Darcizinho (o ponta já havia adiantado a bola, que se perderia pela linha de fundo). Demócrito tomou posição para a cobrança. Orientei a formação da barreira. Estava tranquilo, mas, por precaução, pedi quatro jogadores barrando o caminho do gol.
Seu Clarismundo apitou. Demócrito bateu a falta. A bola encobriu a barreira. Vinha fraca, fácil para a defesa. Sequer precisava espalmá-la. Pulei para segurá-la.
Foi terrível! De amiga, até àquela altura do jogo, a bola transformou-se em arma mortal. Como se viesse lambuzada de graxa, escorreu dos meus dedos atônitos e entrou, traiçoeira, no gol. Eu acabara de levar o mais injusto e humilhante frango de toda a minha vida.
Radiante, Demócrito correu para apanhar a bola no fundo das redes.
– Então, não faço gol? Não faço gol em você? – perguntou ele, antes de gritar alucinado: “um a um, no finalzinho; um a um, eta porra! ”.
Só então, me dei conta do desastre. Comecei a chorar. Não tinha cara para olhar os companheiros. Alguns deles me olhavam, perplexos, como se não acreditassem no que tinham visto. Desolado, sentei-me no chão. Pita colocou a mão na cabeça, em sinal de pesar. Nico me encarava, abatido. Ruiberto deixou o banco, de onde assistia a partida, e veio ao meu encontro. Esperei pelo pior. Conhecia o temperamento dele. Ele pousou, suave, a mão em meu ombro.
– Acontece, Toinho. Tudo bem. Ainda temos jogo pela frente – consolou-me.
Permaneci calado. Minhas pernas tremiam, quando me levantei. Estava abatido e envergonhado.
Janjão também tentou me reanimar. Agora, era começar tudo de novo e tentar ganhar na prorrogação. Estávamos jogando melhor e ganharíamos, se forçássemos o ritmo. Vamos, garoto. Os bons goleiros também levam frangos.
– Podia ter espalmado para escanteio – queixou-se Adovaldo.
É, podia, concordei, melancólico.
A prorrogação foi iniciada. Cansadas, as equipes executaram poucas jogadas ofensivas. O Cajueiro Verde quase marca o segundo gol, num chute cruzado de Xavenes, que eu espalmei para fora, numa boa defesa, porém, insuficiente para me redimir ou devolver-me a auto-confiança.
O tempo extra terminou sem gol. Fomos para a disputa de pênaltis. Três cobranças para cada time.
Adovaldo cobrou primeiro. Hugo defendeu sem muito esforço.
O desânimo se abateu sobre o Vila.
Darcizinho chutou. Bola num canto, goleiro no outro. Os jogadores do Cajueiro vibraram.
Com categoria, Pita converteu a nossa segunda cobrança. Um a um. O adversário tinha uma cobrança a menos.
Xavenes chutou, forte e baixo, á minha direita. Encaixei a bola. Vibração geral dos nossos jogadores e da torcida do Vila. A defesa nos devolveu a alegria. Agora, estava tudo igual.
Isidoro cobrou o último pênalti do Vila. Boa fora. Era, outra vez, o desastre.
A decisão estava novamente nos pés de Demócrito.
Eu teria que pegar aquela, se quisesse me redimir, definitivamente, do gol fácil que tomara e virar, outra vez, herói.
– Pegue essa, que eu quero ver, frangueiro – abusou Demócrito.
Fuzilei-o com o olhar. Estava disposto a me arrebentar todinho; bater a cabeça na trave; quebrar o braço, a perna, uma ou mais costelas, para fazer a defesa.
O silêncio era total. Foi quebrado apenas pelo apito do juiz. Desta vez, Demócrito tomou distância. Chute forte, pensei. O atacante correu para a bola. Demócrito corria e parecia enfiado na terra, tal a demora de chegar à marca do pênalti. Bate logo, desejei, impaciente com o tempo que parecia teimar em não passar. Demócrito corria para a bola; eu impacientava-me no gol. Parecia uma daquelas imagens em câmera lenta na televisão. Bate logo, bate logo!
Bateu. Com força, como previ. Pulei na direção certa. Voava como um guerreiro alado; a bola cada vez mais próxima à minha mão. Via a glória a milímetros dos meus dedos. Desabei no terreno molhado. A bola bateu no travessão, chocou-se nas minhas costas e entrou. Era muito azar. Era todo o azar do mundo.
Ainda no chão e atordoado, ouvi os berros do Cajueiro Verde. Bicampeão, bicampeão, gritavam os jogadores do time arquirrival, pulando e abraçando-se.
Graças a mim, pensei, me levantando. Os companheiros do Vila estavam inconsoláveis.
Pai me abraçou. Chorei agarrado a ele.
– Ora, filão, foi apenas um acidente. Depois tem a revanche – disse pai.
Mãe chegou e ficou alisando meus cabelos.
– Ha, mãe, me deixe! – pedi, impaciente, desvencilhando-me dela e de pai.
Mãe quis ir atrás de mim.
– Isso passa. Deixe o menino – ouvi pai dizer.
Eu não queria ver o Cajueiro Verde receber o troféu que seria do Vila, se não fosse a minha falha. Era como se eu pudesse me ver entregando a taça a Demócrito. Eu, traidor do futebol do Vila da Mata.
– Entregão – apunhalou-me Beto, ao passar por mim.
Não tive reação para responder-lhe; afinal, querendo ou não, entregara mesmo a vitória ao adversário.
Deparei com Demócrito sorrindo. Ericei-me como um gato brigão. As veias dos meus braços crisparam-se e os dentes chegaram a ranger. Demócrito estendeu a mão.
– Toque aqui – pediu ele, com a mão estendida. – Você esteve ótimo. Só teve muito azar naquela bola.
Constrangido, apertei a mão dele. Em seguida, tirei a camisa encharcada, enrolei-a no pulso e comecei a correr. Não queria ver mais ninguém.
– Toinho, espere, Toinho!
Era Vavá.
Corri ainda mais. Vavá corria atrás de mim.
Eu ainda ia ser um bom goleiro. Daria uma boa resposta para todos. Pegaria o trem para a capital e sumiria por muito tempo da cidade. Um dia, voltaria de surpresa, com outro nome. Regressaria como goleiro titular da Seleção Brasileira e, ainda por cima, escalado para a Copa do Mundo. Então, queria ver quem iria me chamar de frangueiro.