Eu sempre tive o desejo incontinenti de salvar o mundo,
sempre escolhi por companhia os que não medem o tempo
e andam para cima e para baixo a praticar cigarras,
os que têm por fortuna o dia todo – todos os dias.
Sempre cri ser o redentor de toda miséria humana,
então resolvi me coroar de espinhos
e por trono escolhi o cravejar da cruz,
tenho esse sorriso triste, essa lágrima de sangue.
Eu só acredito nas coisas que não vejo
e sinto em cada estrela uma Madalena a luzir,
e mesmo sabendo que Deus não existe
em cada criança percebo a Sua Face esplendorosa.
Trago comigo todos os pecados do mundo
e sou o cordeiro imolado que alimenta o delírio,
por isso a glória e a humilhação do vinho:
não é nada fácil ser juiz da própria loucura.
Decifração de abismos (2002)