Tucano é um lugar muito feio. Imagine uma cidadezinha sem graça, socada dentro de um buraco, com gente falando “vôte” por todos os lados. É Tucano. Se ao menos tivesse a plumagem vistosa da ave que lhe empresta o nome… Mas, não tem pluma nenhuma. É um cu pelado. Não recomendo a ninguém que vá para lá de visita. A bem da verdade, não recomendo que vá nem de passagem. Quem quiser evitar o lugar, é só prosseguir viagem até Euclides da Cunha. Eu mesmo só vou lá por causa de uns parentes e parente todo mundo sabe como é: reclama se a gente não fizer uma visita, nem que seja uma vez por ano ou a cada dois anos; do contrário somos metidos à besta, senão uma besta completa.
Tucano é o cu lambuzado do mundo. Mas é para lá que levaremos os ossos de mãe. Prometi a mãe que a levaria para descansar (como se defunto precisasse de descanso) junto aos restos de pai. Os dois juntinhos, bem mortos, mais unidos do que durante toda a vida de casados. E promessa é dívida, ainda mais se tratando de palavra empenhada ao pé do leito de morte.
Inquilina de cemitério, mãe, agora, será levada da capital onde foi enterrada para Tucano, seu definitivo túmulo. Por mim e meu irmão Aspásio. Têm três anos que nós combinamos levar os ossos de mãe para junto dos restos de pai. Porém, Aspásio é muito ocupado. Tem mulher, filhos, emprego fixo, prestações a pagar e essas coisas que tomam o tempo dos homens.
Não pensem que pai foi logo sepultado em Tucano. Eu e Aspásio alugamos cova para ele também. Ficou cinco anos em Feira de Santana, até que o levamos para Tucano. Lembro do dia como se fosse hoje. Pegamos um caixão de criança e colocamos os ossos dentro, para a viagem inútil da morte à morte. Mais impressionável (ou frouxo mesmo?) do que eu, Aspásio virou o rosto, quando o coveiro abriu o caixão, deixando à mostra os ossos e o crânio de pai, este ainda com tufos de cabelos brancos. Havia farrapos da roupa com que pai fora sepultado. Também a chapa que, antes de dormir, ele escovava como se lustrasse um sapato, para depois colocá-la num copo com água até a metade, estava lá, em perfeito estado. Também um pente de osso de boi. Colocamos tudo no caixão e levamos para Tucano. Foi como se enterrássemos pai duas vezes; mas daquela vez, menos triste; já havíamos nos acostumados à morte dele e, na nossa família, não se chora os mortos duas vezes. Foi como cumprir uma obrigação, daquelas bem incômodas e que nos deixam aliviados quando cumprida.
Agora, para que eu e Aspásio possamos viver em paz, só nos faltam levar os ossos de mãe. Não sei porque Aspásio tem demorado tanto para cumprir o nosso acordo. Talvez ainda pense no crânio de pai, com tufos de cabelos brancos, a chapa como nova e o pente de osso de boi dele. Sei apenas que Tucano é um lugar muito feio, mas é para lá que levaremos os ossos de mãe.
II
Aspásio finalmente decidiu levar os ossos de mãe para Tucano. Foi me apanhar em casa, logo no começo da manhã. Chovia desde a madrugada e o dia cinzento dava a Aspásio o aspecto sorumbático de quem acaba de receber uma notícia de morte, no nosso caso, uma morte se não sedimentada no tempo, já começando a assentar nos anos sua densa poeira. Ficamos calados durante o trajeto até o cemitério. Sabíamos o que restava a ser feito e mais nada. Novamente levamos um pequeno caixão e, outra vez, a matriz dos nossos ossos foi colocada no ataúde para a viagem de cemitério a cemitério. O coveiro abriu a carneira e retirou o caixão, carcomido pelo tempo, em que mãe fora sepultada. Como da vez em que levamos os restos de pai, Aspásio desviou o rosto no momento em que o homem abriu o caixão, sob a chuva fina. Merda! Essa mania de viajar com os mortos. Porque não os enterrar de vez, no lugar aonde caem? Como uma fruta que despenca da árvore da vida e fica no terreno, até secar. Depois do segundo enterro de mãe, ia avisar a Aspásio que, se eu morresse antes dele, queria ser enterrado no lugar em que morri e, caso o contrário, se a morte o levasse primeiro, que me desobrigasse de transportá-lo, defunto, até Tucano, um lugar feio e triste, mas a rota mortuária da nossa família. Ah, isso eu diria a Aspásio, antes mesmo de voltar para casa. Planejava dizer isso, enquanto o coveiro removia os ossos de mãe, prontos para serem limados pela eternidade. Dei uma olhada. Não havia sinais de roupa. Só ossos e o crânio amarelecido. Também uma medalha com a imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, santa da devoção de mãe. Peguei a medalha, meio enferrujada. Aspásio me fuzilou com os olhos, como se dissesse “se você queria, porque não pegou antes do enterro…” Dei de ombros e guardei a medalha no bolso, disposto a preservá-la como um talismã de além. Meu irmão pagou ao coveiro, colocamos o caixãozinho no porta-malas do carro e seguimos estrada. “Agora, os dois ficarão juntos”. Foi a única coisa que Aspásio disse. “É, juntos”. Foi a única coisa que eu falei, até chegarmos em Santa Bárbara, onde paramos para tomar café com sanduíche de requeijão. Aquele negócio de os dois ficarem juntos, como se os ossos estivessem animados de vida já estava me irritando. Juntos o quê? Brigavam o tempo todo e até dormiam em quartos separados. Mas, se brigaram em vida, não era possível que se unissem na morte, afinal, ninguém sabe mesmo o que existe depois da morte? Eu já não sabia em que acreditar. Na dúvida, decidi que pai e mãe mereciam esta fantástica segunda chance. Fiquei até gostando daquela missão de transportar os mortos antigos. “Será que tá chovendo em Tucano? ” A pergunta de Aspásio me libertou do pensamento de reconciliar os mortos. “Naquele lugar só chove miséria”, respondi. Depois de Serrinha, o carro quebrou, debaixo de forte chuva. “Porra! Era só o que faltava! A arabaca quebrar”, xingou Aspásio, já do lado de fora e dando pontapés na chaparia do carro. Ficamos na chuva, pedindo carona. Só um homem numa caminhonete parou, mas arrancou disparado, quando viu o caixão. Não demorou muito e parou um ônibus da linha Salvador-Euclides da Cunha. Também pudera. Era Alfredo, nosso primo, sobrinho de pai. Quando retiramos o caixão do porta-malas do carro, para colocar no bagageiro do ônibus, muitos passageiros protestaram. Uma velha se benzeu. Aquele era transporte de passageiros, não rabecão do necrotério. O bom Alfredo apaziguou os ânimos. Gente medrosa!!! Não havia defunto no caixão. Fora comprado em Feira de Santana para enterrar um anjinho no Crenguenhém. Alfredo foi logo colocando o caixão no bagageiro, não sem se persignar antes, e prosseguiu viagem. Era sábado de feira em Tucano. A praça estava tomada de feirantes e tabaréus de lugares próximos. Um grupo de soldados parou o ônibus. Não sei como souberam da presença do caixão. Alguém deve ter avisado à polícia em alguma parada; em Araçi, talvez. Com um fuzil nas mãos, o sargento pediu que abríssemos o caixão. “Aqui? ”, protestou Aspásio. “Aqui, ou no xadrez”, respondeu o sargento. Um grupo de curiosos formara um círculo ao redor do esquife. Resolvi me antecipar a Aspásio e — gozando a diversão com a surpresa do achado — abri o ataúde. As pessoas mais próximas recuaram horrizadas. Até os soldados deram um passo para trás, com o medo instintivo que um morto provoca em quem goza de boa saúde. Refeito da surpresa, o sargento ameaçou prender a mim e Aspásio, por ocultação de cadáver (mas, como ocultação, se os restos mortais estavam ali, à mostra?), profanação de túmulo e outros disparates. A turba apoiava a intenção da autoridade. Animado com o apoio popular, o sargento não nos deixava explicar a bagagem macabra. Eu já temia ser preso ou até linchado, pelos populares insuflados pelo sargento. Outra vez, Alfredo nos salvou do aperto. Era compadre do sargento. Aliás, pela sua boa índole e prestatividade, era compadre de meia cidade. Pois aqueles eram os restos mortais de Tia Adelina, do finado Zequinha. Os primos vieram da capital parta juntar os ossos dela com os do marido. Era crime?! “Pois, porque não disse antes, ôme?!. O finando Zequinha, irmão do Dequinha?! Vôte! Era gente muito boa! ”. Aspásio mostrou a certidão de óbito de mãe e os papéis do cemitério onde ela fora enterrada. Para nossa surpresa, o sargento resolveu nos escoltar até o cemitério. Aspásio disse que não precisava. “Faço questão! Mulher do Zequinha…” insistiu o sargento. Surpresa ainda maior foi boa parte dos curiosos também resolver nos acompanhar. Cortejo maior do que mãe e pai tiveram, juntos, abriu caminho entre os feirantes. Muitos barraqueiros da feira tiravam o chapéu. Algumas pessoas expressavam seus pêsames, outras batiam levemente nos meus ombros e nos de Aspásio. O sino da igreja dobrou. No caminho, o cortejo fúnebre ia engrossando, com a adesão de crianças, cachorros, galinhas, porcos e até de um jumento. Foi como se todos resolvessem brincar de enterro. Mas não se notava brincadeira na expressão séria e respeitosa, quase compungida, da maioria dos presentes. Os parentes que não puderam ir ao enterro inaugural cumpriam, agora, o indesejado dever familiar. Chegamos ao cemitério e fomos direto para o jazigo de pai. O vigia do campo santo removeu a lápide. Observados pelo povo — em reverencial silêncio — colocamos os ossos de mãe juntos com os de pai. Que descansem, unidos, para sempre! O que a vida não juntou, a morte entrelaçou. Aspásio se benzeu. Uma velha, de xale na cabeça e com o rosário nas mãos, salmodiou uma Ave Maria. “Chega! Obrigado”, dispersou Aspásio, mestre daquela inusitada cerimônia. O povo retornou aos seus afazeres, em casa ou na feira. Eu, Aspáio e Alfredo ficamos no cemitério. Não sei o que os dois pensavam, mas eu pensava em como a minha vida era parada como aquela paz dos mortos. Aspásio, sim, tinha muito o que fazer, mulher, filhos, emprego fixo, amigos no trabalho, prestações a pagar. E eu, o que era? Um anônimo qualquer, como um desses tabaréus da feira, aguardando a hora de também me jogarem numa cova. Poderia fincar raízes em qualquer lugar. Alfredo nos chamou para tomar uma cerveja no bar do Mamu. Aspásio propôs que fôssemos comer um bode assado, no Jorrinho. Depois pegaríamos estrada. Olhei para o túmulo, definitivo, de pai e mãe, agora juntos e fui beber umas cervejas.
Não falei a Aspásio, mas estava resolvido a ficar em Tucano.
O DESLIZE
1
— Dimas!
Ninguém respondeu.
— Diiiimaaas!
Afobado e pressuroso como um cãozinho de madame que acaba de ser requestado como um estalo de dedos, o chefe de gabinete abriu a grade porta de madeira ornamentada por um alto relevo representando orixás.
— Pois, não, excelência.
— Preciso chamar duas vezes, Dimas? — perguntou o governador.
— É que eu…eu estava apertado, excelência….
O governador pigarreou, saboreando o constrangimento do subordinado e o autorizou a sentar-se.
— Então, senhor Dimas, o Salgado já caiu em tentação?
— Ainda não, excelência.
— Como ainda não? — estranhou o governador. — Seis meses de governo e nada?
— O homem parece um santo, excelência.
— Santo?! — duvidou o governador. — Santo?!Só se for do pau oco, senhor Dimas. Não existem santos, mas virtudes mal testadas.
O chefe de gabinete sorriu, amarelo.
— Mas, este parece imune às safadezas do cargo — deixou escapar o subordinado, logo se arrependendo da inconveniência.
— Safadeza?! — reagiu o governador. — Safadeza, senhor Dimas?! Esta é uma administração séria. Aqui não existe safadeza. Deslize! Deslize, homem de Deus!
— Foi o que eu quis dizer, com a minha pressa. Perdoe a força de expressão. Deslize, sim senhor. O homem parece imune a deslizes.
O governador aquiesceu, satisfeito com a demonstração de magnanimidade diante do funcionário inferior.
— É isso, mesmo, senhor Dimas. Bom achado. Deslize!
— Obrigado. Obrigado, excelência.
— Mas a expressão foi minha — cobrou o governador.
— Sem dúvida. Meritosa, excelência.
O governador fechou os olhos, por alguns instantes, parecendo elocubrar uma saída para aquela situação incômoda. Por fim, quis saber:
— Como não caiu em tentação? Não lhe facilitamos o caminho, cumulando-o de poderes nas licitações?
— Facilitamos, excelência.
— Eu facilitei. Eu facilitei, não se esqueça, senhor Dimas.
— De fato, o senhor facilitou-lhe o caminho, excelência.
— E então, homem de Deus? Porque o Salgado ainda não caiu em tentação?
Dimas pensou um pouco antes de responder e, depois, julgando-se um expert nas fraquezas humanas, sentenciou:
— Parece que o butim não foi suficiente para despertar-lhe a cobiça, excelência.
— Cobiça que sobra em você, Dimas.
O chefe de gabinete soltou um risinho, escabreado.
— Nem tanto. Nem, tanto, excelência.
O governador ficou sério, mirou o retrato do seu antecessor, pendurado ao lado do seu próprio quadro em todas as repartições. Aquele, sim, fora seu mestre. Porém, livre das primeiras e decisivas influências, ele seguiu, de vento em popa, carreira solo. Hoje, em nada devia ao professor, aprendera a lição de política e procurava cortar os passos de qualquer outro que lhe ameaçasse a carreira. Afinal, era sempre fácil criar um escândalo nos jornais e afastar qualquer enxerido do caminho.
— Olha, Dimas — disse, saindo do enlevo ególatra. — O Salgado tem que cair em tentação, sim. Você sabe que o segredo do nosso poder é formar bons quadros técnicos e deixar que cometam deslizes, até certo limite. Assim, todos ficam em nossas mãos, manietados, amarrados como cordeirinhos. O segredo é este: permita que deslizem, feche os olhos para as pequenas faltas e eles, pombos manipuláveis, comem na palma da mão. Portanto, temos que instigar a cobiça do Salgado. Sabe como? Sabe como, Dimas?
— Não, excelência. Rogo que me diga, excelência.
O governador demorou de responder, saboreando sua sapiência. O subalterno aguardava em gotejante expectativa.
— Simples. Muito simples senhor Dimas. Aumentemos o poder dele e frouxemos a fiscalização. Com mais dinheiro em jogo, cairá em tentação. Logo veremos, logo veremos, senhor Dimas.
— Perfeito, governador.
— Excelência…
— Desculpe. Perfeito, genial, excelência!
Assim foi feito. Dobraram, triplicaram, decuplicaram o orçamento sob a rubrica do Salgado. Mais seis meses se passaram, um ano, um ano e meio, dois.
2
— Dimas.
Desta vez, o chefe de gabinete, mais gordo e corado, atendeu ao primeiro chamado. O governador fazia questão de gritar o nome dos subordinados da ante-sala. Poderia facilmente apertar uma tecla do aparelho telefônico, mas julgava melhor que todos o ouvissem convocando seus auxiliares. Era econômico nos elogios e caprichava nos esporros para que todos pudessem escutar a reprimenda e tremerem nas bases, rito do cargo. Afinal, isto é poder. E o poder é para quem sabe exercê-lo com gana e autoridade.
— Sim, excelência.
— Então, o Salgado não caiu em tentação?
— Lamentavelmente não, excelência.
— Então, não tem jeito mesmo?
— O homem é uma rocha de virtude, excelência.
Já com a decisão tomada, há muitos dias, o governador fingiu pensar, meditar com cautela, enquanto se aprazia com a ansiedade vaporosa do chefe de gabinete.
— Então vamos dinamitar esta rocha, senhor Dimas.
— Como, excelência? Como?
O governador varreu, com os olhos o gabinete, detendo-se num vaso de porcelana contrabandeado da China. Só depois, concedeu:
— Só há uma saída honrosa, senhor Dimas.
— Qual excelência? Qual — suplicou o chefe de gabinete.
— Vamos demitir o Salgado.
— Demitir?! Mas ele é o esteio da moralidade.
O governador sorriu, bonachão.
— É aí que mora o perigo, senhor Dimas. Prepare o decreto de exoneração — ordenou. E diante da perplexidade do subordinado, arrematou: Meu governo não permitirá nenhum deslize.
CORDEIRO
1
Essas cordas me arrebentam. Na quarta-feira estarei com as mãos esfoladas, os dedos inchados pelos socos que dou; os olhos roxos pelos murros que recebo. Já estou acostumado. É sempre assim, pancada que vai, pancada que vem. Ninguém liga para o que acontece nas cordas, salvo quando a confusão é com os mauricinhos e com as patricinhas que ficam do lado de dentro. Se eu não ficar atento, apanho de folião pipoca – desses frouxos, do lado de fora, que batem e saem correndo e que só batem quando estão em grupo.
Vocês já perceberam. Sou cordeiro. Não desses cordeiros amansados pela religião que apanham e dão à outra face à porrada. Faço parte do enorme lumpesinato dão carnaval e, muitas vezes, me comprazo em bater em meus semelhantes, os lenhados que se espremem para brincar fora das cordas e sonham com os camarotes. Não me importo com o trabalho. Preciso ganhar alguns trocados e é só. Não há lugar para falso moralismo com o estômago vazio e as contas a pagar.
Já perdi muito na vida, empregos, mulheres, dinheiro, oportunidades que só se repetem para que a gente falhe novamente e fique ainda mais azucrinado. Só não perdi, por pura sorte, a vida e o gosto de viver. No fundo, é o que conta. Vivo puto da vida, mas vivo. No ano passado, perdi seis dentes, defendendo uma loira de bloco pra lá de caro do assédio de um grupo de travestidos. E o que ganhei em troca? Nem um obrigado, valeu cara, foi massa, bacana mesmo, cê é dez. Nada disso. Até parecia que eu era o segurança particular da vagabunda.
Estudei pra isso?
Estudei, no vou negar. Cheguei á faculdade. Porém, as más companhias, as farras, o álcool, a maconha e, depois, as drogas pesadas, me afastaram do caminho promissor, de um pequeno burguês assalariado, com mulher e filhos, um monte de contas a pagar no final do mês e a certeza anestesiante de que aquele era um exemplo a seguir. Porém, os sonhos e os projetos abortados da juventude ficaram para trás, com os livros e o papo cabeça com os intelectuais de meia tigela; aliás, de meia, não, de um quarto de tigela.
Não faço mais plano nenhum. Não projeto futuro luminoso algum. Vivo o presente, sem ilusão como condenado à véspera do pelotão de fuzilamento. E o meu presente é este, o de cordeiro, batendo, apanhando, empurrando, sendo empurrado, com sede, com fome, de água, de pão, de mulher gostosa, dentro e fora das cordas, mais dentro do que fora. Estudei pra isso? Não importa. Preciso de trinta reais, por dia; trezentos, em seis dias de folia, festa que não é minha. Não me queixo. Estou vivo. Se tive e perdi, mereço!
Meus irmãos são simples, carentes e brutais, como Joaninha Mão de Homem, também cordeira, que sabe bater de soqueira, quando o caldo entorna, e Tavinho Pavio Curto, capoeirista e boxeador nas horas vagas, meus dois únicos amigos nas cordas e fora delas. Joaninha é sapatão e mora com uma estudante, uma dessas feministas tabacudas, que abominam o domínio do macho, mas se deixam explorar ainda mais por um gigolô do mesmo sexo. Tavinho ganha a vida como segurança de clubes GLS e também sabe explorar, sem piedade, toda a fauna carente de veados, lésbicas e simpatizantes que não são mais do que bichinhas enrustidas, gravatas coloridas no armário.
2
Só um pacote de biscoito e um litro de água. Foi tudo que nos deram até agora, neste calor. Enquanto isso, os bem-nascidos se esbanjam na cerveja, no uísque e na cocaína que rola, farta, em um dos carros de apoio. Pra disfarçar o consumo, o cara finge que vai ao banheiro, de onde volta a mil, disposto a engolir a folia.
Muitos ladrões se empregam de cordeiros pra roubar. Roubam os babacas e escapolem com mais dinheiro do que ganhariam em pequenos bicos durante seis meses. Eles vêm em turma. Quando o bloco passa por um local mais apertado, um deles saí das cordas e arma uma briga. Os demais aproveitam a confusão e saem distribuindo socos e pontapés, roubando relógios, correntes de prata e de ouro, carteiras de cédulas, telefones celulares. Depois vão para o fundo das cordas., como quem não fez nada.
O golpe funcionava melhor, antes da polícia instalar câmaras eletrônicas pelo circuito da festa. A prática se tornou mais difícil depois que os telejornais divulgaram imagens das gangues que agiam dentro das cordas, o que levou a direção dos blocos a exigir atestado de antecedentes criminais dos candidatos a cordeiros. Sem falar nos policiais à paisana dentro das cordas, contratados para dar segurança aos barões. Mas, a medida não foi suficiente para acabar com o crime, pois a maioria dos cordeiros tem bons antecedentes e, como se sabe, a ocasião faz o ladrão.
O cordeiro autêntico tem uma vontade enorme de estuprar as gostosinhas que passam toda a festa numa chupação desenfreada, num esfrega-esfrega vertiginoso, numa bolinagem impetuosa, inflamadas de desejo e com o sexo em chamas. A cada momento, elas são bolinadas, comidas, violentadas, requestadas, cobertas de sêmen e torturadas por estes homens rudes. Não vou mentir: também quero tirar a minha lasquinha nas grã-finas.
Pior do que a sede e a fome é suportar o barulho; a música feita para entorpecimento do espírito, para a perpetuação da estupidez, a disseminação da burrice, a hegemonia da mediocridade e para encher o bolso de uma indústria que sobrevive de fazer os bestas rebolar e requebrar, quebrar e rebolar durante o ano todo, numa orgia permanente e galopante de batuques e molejos. Será que essa gente não sabe que vai envelhecer que a carne rija vai virar canjica, o sorriso murcha flor nos lábios emurchecidos e a euforia passageira em triunfante depressão? Tenho uma recaída pelo intelectualismo filosofante do passado e cedo ao arroubo existencial em meio ao barulho ensurdecedor. Ao menos tento preservar minha individualidade ou o que restou de minha sensibilidade de outrora, se é que tudo, minha, se é que meu espírito ou o pouco que dele restou, não foi contaminado pela miséria do meu tempo.
Logo me convenço de que não vale á pena lembrar do passado. Que o pagode arrebente meu cérebro, estoure meus tímpanos, entorpeça minha mente, embote meu raciocínio, tome conta de tudo.
Ò siririco, ò siririco,
vá tomar em seu furico.
Porra de vida!
3
Até mulheres grávidas (claro, sempre as negras), trabalham nas cordas. Já vi uma levar uma porrada e abortar na rua mesmo. Fui falar com um segurança, que falou com um diretor do bloco e ouviu que o problema era com o SAMU. Não estivesse em desvantagem numérica, teria quebrado a cada do filho da puta. Mas, logo relaxei. Afinal, ser cordeiro não é moleza, muito menos trabalho para mulher prenha.
Li no jornal que, no carnaval, são mais de 50 mil cordeiros, 50 mil peões, 50 mil lascados, ou seja, um cordeiro para cada grupo de 20 foliões, contando um milhão de foliões, incluindo os mauricinhos e as patricinhas que, na avenida, esbanjam dinheiro e felicidade ao tempo todo, como se fosse possível ser feliz todo o tempo e não estar louco. E a gente aqui se esfalfando para garantir a alegria deles todos; a bebida, a orgia de droga e de sexo, a histeria e a euforia alucinada das mulheres. Se uma delas, tropeça e machuca o dedinho do pé, há quem fique com pena da piriguete. Vadia!
Depois da festa é mais uma humilhação para receber o pagamento. A merreca só saí quando todos vão embora e quando muitos de nós já não aguentamos mais em pé. Tome, aqui, e suma. Nenhum obrigado ou simples até amanhã. Só, não se esqueça, logo cedo no batente. Tá bom, chefe!
Estou cansado, de saco cheio. Já estou de olho em uma coroa oxigenado, mignon, fogosa, tudo no lugar, recauchutada de academia. Saí sempre as dez da noite para o Estacionamento de São Raimundo, no Politeama, para apanhar o carro, um Uno de segunda mão. No último dia, vou segui – lá. Aí, sim, faço meu carnaval.
Depois…depois…talvez, use uma corda.
ARRASTA-CRIANÇA
Para Maria Cecília, que duvida desta história.
1
Meu pai disse que eu deveria obedecer a ele e a mamãe, que não deveria falar com estranhos, nem me perder da vista deles quando estivéssemos na rua, para que o Arrasta-criança não me puxasse pelos cabelos e me levasse para o galpão, escuro e abandonado, onde as crianças desobedientes ficavam presas para sempre.
Era medonho, o Arrasta-criança, garantia meu pai. Alto, magro, com umas mãos do tamanho de uma raquete de ping pong, umas pernas finas e compridas para correr mais depressa, quando sequestrasse a criança; orelhas de abano; dois orifícios no meio da cara no lugar do nariz e apenas um dente colossal e em forma de triângulo, com o qual, pica-pau medonho, ficava pinicando a cabeça da criança mais próxima.
Antes de raptar qualquer menino ou menina desobediente, o Arrasta-criança mandava a mulher dele averiguar o terreno, a fim de ver o momento mais propício para atacar a criança mais fácil de ser raptada. Então, Maltrata-criança, sua consorte infernal, se disfarçava de uma boa matrona e circulava pelos grandes magazines, lojas, estações rodoviárias, parques e jardins, e também aeroportos, farejando a melhor vítima.
Identificado o próximo e indefeso alvo, ela acionava o marido que (vapt!), num piscar de olhos desaparecia com a criança que se distanciava dos pais ou dos adultos que a acompanhavam. Meu pai dizia que a polícia jamais havia resgatado um pimpolho levado pelo Arrasta-criança, nem sequer localizado o local do cativeiro. Parece que ele e a mulher mantinham cativeiros móveis, mudando de um lugar para outro, ou até mesmo de uma cidade para outra e, o que é mais incrível, sem despertar a menor suspeita nos novos vizinhos. Ou ainda – misericórdia! – se descartando rapidamente dos pequenos que, no cativeiro, choravam e berravam à procura dos pais, sem que ninguém os ouvisse. Teria revestimento acústico o galpão onde meu pai dizia que o Arrasta-criança aprisionava suas vítimas inocentes? E como meu pai sabia que se tratava de um galpão? Poderia ser um quarto escuro, um sítio, uma fazenda distante, sei lá… Mas, naquela época, meu pai sabia de tudo mesmo.
2
Acho que foi o Arrasta-criança quem levou a filhinha de Dona Esmeralda. A menina desapareceu na estação rodoviária. Foi a mãe se distrair para comprar a passagem de ônibus e a menininha sumir. Não adiantou a polícia procurar, até em outros estados; de nada valeu a Dona Esmeralda aparecer no programa de desaparecidos da TV, com a aflição palpitante das mães desesperadas. Os dias foram passando, os meses se sucedendo, os anos se revezando nesta corrida de obstáculos que é o tempo, e nada da menina (ou a adolescente) aparecer. Coitada de Dona Esmeralda! Não suportou a saudade, nem o peso da responsabilidade de ter se distraído num minuto fatal. Hoje, vive de tranquilizantes, como uma sonâmbula. O marido a culpou pela tragédia doméstica e saiu de casa.
Uma vez perguntei a meu pai se o Arrasta-criança e a Maltrata-criança não faziam parte de uma quadrilha internacional de tráfico de crianças, que raptava meninos e meninas em países pobres para vendê-los a casais sem filhos nos países ricos. Não sei porque meu pai ficou zangado. Que tráfico internacional de crianças que nada! Já falei para sua mãe não deixar você ver esses programas de mundo cão na TV. Arrasta-criança simplesmente some com as crianças que não obedecem aos pais; crianças que nunca mais verão os pais; portanto, muito cuidado!
Estremeci. Deus me defenda!
3
Meu pai disse que era praticamente impossível prender o Arrasta-criança e a mulher dele. Os dois estavam protegidos por um sortilégio que os distanciava dos braços da lei. Porém, havia uma maneira, apenas uma, de descobrir o paradeiro do temível casal. Através do sonho de uma criança, pura e obediente, um anjo revelaria o esconderijo da dupla. Aí, sim, todas as crianças raptadas poderiam ser resgatadas, incólumes. Meu pai assegurou que esta criança poderia ser eu, caso fosse boazinha e obediente, estudasse direitinho, fizesse corretamente os meus deveres, comesse sem reclamar, rezasse antes de dormir, e cumprisse, sem pestanejar, as suas ordens e as de mamãe; que fosse, enfim, uma boa menina.
Como meu pai sabia que um anjo poderia revelar a uma criança o esconderijo do Arrasta-criança? Sei lá! Sei apenas que meu pai era muito sabido e, por isso mesmo, sabia de muitas coisas. Fiz um grande esforço para não contrariar meus pais. Passei a lhes obedecer ao primeiro chamado; me apliquei nas lições; já não deixava meu quarto bagunçado como antes (bonecas e brinquedos por todos os lados e a cama desfeita); nem chorava mais para tomar banho e escovar os dentes. Rezava quando ia me deitar e, antes de pegar no sono, me concentrava para merecer o sonho com o anjo. Antes do sono me vencer de vez, já me via famosa, nos jornais e na TV, como a menina que levara a polícia ao casal de bandidos e salvara as crianças, já devolvidas, alegres e chorosas, aos pais, chorosos e alegres.
Contudo, por mais que eu me esforçasse, por mais que me fizesse boazinha e obediente, não conseguia sonhar com o anjo. Sonhava, sim, coisas banais, num piquenique na praia; brigando com um coleguinha de escola; correndo na chuva; montando cavalo; caindo da bicicleta ou tinha pesadelos com vampiros, cobras e outros bichos malvados que me faziam acordar assustada e aliviada. Oba, foi só um pesadelo! Um sonho ruim. Já passou. Nada de anjo. Nada de Arrasta-criança. Nada de Maltrata-criança. Muitos menos os dois juntos em seu esconderijo, rodeados por crianças famintas e amedrontadas…
Foi então que comecei a desconfiar que não existia nenhuma Arrasta-criança e muitos menos uma Maltrata-criança; que os dois eram invenção de meu pai para me tornar dócil e obediente. Um dia, tomei coragem e perguntei:
– Ò, meu pai…
– Hã?
– O Arrasta-criança existe de verdade?
Meu pai estava de costas e, lentamente, se virou. Tomei um choque.
– Eeeexiiisteee…
Na boca de meu pai, pica-pau medonho, havia um enorme dente em forma de triângulo, que modificava seu timbre de voz; antes normal e cristalino, naquele instante roufenho e arrastado:
– Claaarrooo quueee eeexiiiste ….
IV
Ainda hoje, muitos anos depois (meu pai já arrastado pela poeira da eternidade), tenho medo do Arrasta-criança.
CASERNA
Agora, lá em casa todos têm que usar farda. Impus o fardamento para fomentar a disciplina doméstica, antes frouxa, com ciscos nos cantos da sala. Para dar o exemplo patriarcal, fui o primeiro a envergar a farda (não digo uniforme, coisa de colegiais). Tiveram que acompanhar a oficial indumentária (essa, sim, palavra imersa em testosterona) Mariazinha do Fórum, minha patroa, e a prole obediente, Gervásio, Ananias, Gonilda e Elizabete, nomes díspares como a apontar as diferentes idiossincrasias dos meus filhos.
Agora vou falar da beleza da farda, concebida por mim, alfaiate bissexto: uma calça verde; uma camisa amarela, um boné azul com abas brancas pontilhadas de estrelas. Como vocês já perceberam, cívica homenagem ao solo pátrio. Sei que não são roupas apropriadas para o calor do sertão; porém, muito mais sofreram os soldados na Guerra de Canudos, carregando a farda e os armamentos do exército sob sol inclemente do Cumbe, de Monte Santo e de Belo Monte. Os sertanejos? Bah, os sertanejos viviam quase nus, como os índios. E, aliás, sempre tive dúvida: índio é gente? Deixa pra lá.
Voltando à portaria da farda (sim, baixei portaria para oficializar a normatização doméstica), a patroa ainda quis chiar:
– Já não basta o uniforme do fórum?
Incontinente, cortei o mal pela raiz:
– Primeiro, lá pode ser uniforme. Aqui, é farda. Segundo, no fórum, você trabalha. Em casa, descansa. Vista a farda.
Vestiu-a. Chegava em casa, tirava o uniforme e punha a farda. Os meninos até que gostaram da novidade, ensejo para brincarem de filme de guerra.
Depois do uso da farda, lobriguei a continência. Era eu chegar da repartição, e eles, em ordem unida, bateram continência. Ficavam em posição marcial até que o papai aqui concedesse:
– Descaaaansar!
Pouco depois, impus os exercícios físicos, no quintal. Um aquecimento e em seguida vinte abdominais – número que aumentava na proporção do preparo físico – dez barras, e, um pouco mais tarde, uma corrida até o Jorro, no final da tarde. Dessa última atividade, poupei Mariazinha do Fórum, pois não a queria extenuada à noite; se é que me entendem.
Não demorei e introduzi as lições de tiro ao alvo, acertar a bala no mamoeiro a vinte metros de distância. Como era preciso saber nadar; nos sábados íamos ao Itapicuru, no Jorrinho. Depois da natação, comíamos bode assado com farofa d’água. Eu tomava uma pinga, depois uma gelada, e dava uma garapa para patroa e os meninos.
Um dia, Gervásio, o mais velho, teve a petulância de querer saber a razão da farda e de tantos exercícios. Castiguei-o com cinquenta abdominais extras. No meio do expediente, ele implorou:
– Penico, painho! Penico!
Como não sou tirano, suspendi o castigo. Afaguei-lhe os cabelos suados e expliquei:
– Olha, filho, tudo isso é para o bem de vocês e da nossa família. Temos que nos preparar para a sobrevivência. Qualquer dia, a hecatombe…
Gervásio me cortou:
– Hecatombe? Vôte, painho! Que bicho é esse?
Então, simplifiquei:
– Qualquer dia desses, a guerra nuclear chega a Tucano e, aí, não resgatará nem um calango.
Como um sonho vem vindo essa Fragata…
Estranha Nau que não demanda portos!
Com mastros de marfim velas de prata,
Toda apinhada de meninos mortos…
Mário Quintana, A Rua dos Cataventos.
1
Nossa cidade portuária fica na costa leste do país e tem poucos moradores. Como todo lugar pequeno, é um local pacato, onde todas as pessoas se conhecem e se frequentam como se fossem parentes. Briga nas ruas, só mesmo a dos cachorros que disputam restos de peixes deixados pelos pescadores, praticamente todos os homens adultos da região. O maior orgulho da nossa gente é a abundância e qualidade do pescado e o belo promontório da baía de águas azuis e cristalinas. Carne vermelha, aqui, é uma raridade. Todos comem peixes, de domingo a domingo, com pratos variados para diversificar o cardápio.
Todos seguimos a ordem simples do lugar, com os acontecimentos se repetindo, festas de casamento, batizados, a comemoração do padroeiro, um santo pescador e a morte de alguém, quase sempre um idoso, depois de longa enfermidade, pois, em geral, na nossa cidade as pessoas gozam de boa saúde, condição atribuída a nutritiva dieta de peixes e crustáceos.
Nada de extraordinário acontece no lugar, a exemplo dos estragos causados pelas chuvas ou a fúria do mar soprando ventos fortes e destelhando as casas. Ao contrário, em nossa cidade a chuva é pouca e o mar sempre manso na baía de águas translúcidas. No entanto, aconteceu! Oxalá, jamais tivesse ocorrido. Uma das principais testemunhas dos fatos, junto com meus três irmãos, até hoje me arrepio e sinto o sangue gelar-me nas veias, só em recordá-los.
Foi a aparição de um barco, não de uma embarcação qualquer, como as que estávamos acostumados a ver sair, todas as manhãs, do porto para a pescaria em alto mar, mas de uma nau sem velas nos mastros, que surgiu em meio à uma extemporânea névoa em nossa baía como se o próprio visitante intruso trouxesse consigo brumas jamais vistas e que pareciam prenunciar algo terrível, um sortilégio dos oceanos prestes a aportar em nossa cidade.
Melhor que ventos fortes tivessem desviado o barco para os rochedos e que o nosso povinho pacato não tivesse conhecimento da carga que trazia no convés. Quem dera que aquela aparição sinistra não tivesse passado de um desses delírios coletivos que acometem um povo crível e supersticioso, disposto a acreditar em tudo…
2
O barco não ostentava nenhuma bandeira que permitisse identificar sua origem. Era uma nau apátrida e desgarrada de quaisquer laços de nacionalidade. Quem a viu primeiro foi meu irmão mais velho. Naquela manhã inesquecível fora o primeiro a chegar ao porto para a pesca da lagosta, do salmão, do atum e do marlin. Ajeitava nosso pequeno barco de motor na popa, herança de nosso pai, também pescador como o pai e o avô dele, quando viu a embarcação como que parada no mar, mas movendo-se com aquela paciente lentidão dos sonhos.
Depois de se convencer de que não era nenhuma visagem, veio me procurar em casa para informar que um barco suspeito alcançava nossa baía. Tinha enorme respeitado por mim e por minha opinião, porque eu era o mais estudado de casa e quase chegara à universidade, não fosse o sumiço de meu pai, misteriosamente desaparecido no mar, que me obrigou a trocar os livros pela a rede, o arpão e a vara de pescar.
Também intrigado com a inusitada visita, engoli o café da manhã e fui para o cais com meu irmão mais velho. Lá, encontramos os outros dois irmãos mais novos e uma pequena multidão de curiosos, inclusive o padre e o delegado. Afinal, pensavam todos, que barco era aquele e o que queria em nossa baía? Houve quem pedisse calma, que ninguém se preocupasse, deveria ser uma nau de turistas esnobes em busca de praias desconhecidas e acolhedoras, logo, saciada a curiosidade, iriam embora, sem deixar rastro como as aves migratórias. E se fosse um barco pirata, corsários escondidos a estibordo, armados até os dentes, dispostos ao assalto, a pilhagem, ao estupro e ao massacre de uma população indefesa? Que pirata coisa nenhuma, nos dias de hoje; pirataria só não internet, você anda assistindo muito filme de capa e espada, descartou uma voz na pequena multidão.
Confesso que também pensei bobagem: aquela embarcação deveria estar sendo comandada por meu pai, Ulisses retornando para a sua Ítaca de pescadores pobres, muito tempo depois de se perder no mar, trazendo especiarias, riqueza e prosperidade para todos. Logo me convenci do absurdo da ideia.
Homem prático do mar em comparação a mim – mais afeito à fantasia e a imaginação – meu irmão mais velho sugeriu que deveríamos zarpar em nosso barco e abordar a nau em plena baía, a fim de verificar as reais intenções de sua desconhecida tripulação. Assim, convocamos nossos dois irmãos e zarpamos em família. O delegado quis partir conosco, mas o padre o convenceu de que seria melhor que ficasse em terra, para a eventualidade de alguma confusão. Era certo que nossa gente era ordeira e pacata, mas ainda mais certo que aquele se tratava de um acontecimento insólito e de consequências imprevisíveis. Zarpamos, precedidos da oração puxada pelo padre para que nenhum mal atingisse a nossa cidade.
3
Por mais esforço que fazíamos para nos aproximar do barco, mais distante a outra embarcação se nos afigurava. Era como se nos movêssemos em câmara lenta. Parecia até pirraça: nosso barco tentando se aproximar e a nau distante como uma miragem. Depois de um tempo que nos pareceu congelado na eternidade, conseguimos nos abeirar da embarcação. Então, partimos para a abordagem. Decidimos quem primeiro deveria subir ao convés. Menos experiente nas lidas do mar, porém unanimidade entre os meus, fui o escolhido. Meu irmão mais velho lançou a corda com uma âncora a bombordo do outro barco. Subi pela corda e saltei no convés, com o coração palpitando na tensa expectativa do desconhecido. Logo vi uma mão pequena e inerte. Em seguida, várias mãozinhas. “Jesus Cristo! Não pode ser verdade?!”, exclamei, intrigando meus irmãos. Instantes depois, os outros três se juntaram a mim, no mesmo espanto e indignação. Mesmo acostumado às surpresas do mar, meu irmão mais novo começou a vomitar. Homens rudes e temperados na vida dura de pescadores, os outros dois não contiveram as lágrimas.
Até hoje, muitos anos depois, não sei como naquele momento de transe, consegui manter o sangue frio e ser o mais prático de todos. Ordenei aos meus irmãos, que levássemos a embarcação de volta, refazendo a rota daquela viagem de assombros. Meu irmão mais velho tomou o leme, os demais deveríamos obedecer às suas ordens. Mas, quem disse que havia mais caminho de volta? Meu irmão mais velho se esforçava por controlar o barco que teimava em rumar para o cais, agora, para o nosso desespero, com uma velocidade que parecia impulsionada por uma determinação cósmica.
Aquelas, agora, eram águas extremas. Vencidos pelo cansaço, impotentes diante de forças misteriosas, nos sentamos no convés e deixamos o barco se aproximar do porto. Meu irmão mais velho ainda tentou uma manobra desesperada. “Vão pra casa. Vão todos pra casa. Não vale à pena”, gritou da proa. Seu apelo foi em vão. Minutos depois, toda a cidade pode ver horrorizada que acabara de chegar ao porto uma nau carregada de crianças mortas.
CHARLOTTE SIZEMORE
(A partir de uma ilustração de Al Parker)
Enfim, tenho a bela Charlotte Sizemore completamente subjugada aos meus pés, mas não sei o que fazer com ela. Poderia levantá-la daquela posição letárgica – o vestido branco da festa, os cabelos negros e anelados, o cinzeiro cheio de bagas de cigarro sobre o assoalho branco – e possuí-la, brutalmente, aqui mesmo. Seria uma esplêndida vingança contra quem sempre me desprezou. Poderia suspendê-la, suavemente e conduzi-la, semiembriagada (ela bebera muito champanhe) até a cama, onde consumaria o antigo desejo.
Olhando-a, como se fosse a fantástica imagem de um velho filme, me dei conta de que ela poderia estar morta, e desejei, intensamente, que a impetuosa Charlotte tivesse, de fato, morrido no esplendor da beleza e da juventude, vítima de uma dessas overdoses que sucedem em festas de grã-finos. Mas, ela respirava e os olhos vítreos pareciam perscrutar o inescrutável.
Morta, me libertaria da dúvida atroz: o que fazer com Charlotte Sizimore, completamente indefesa, aos meus pés? Porém, ela está bem viva e fascinante, exibindo o nariz arrebitado, a rosa rubra dos lábios sensuais, abraçando-se a si mesma, como num gesto de solidão e desamparo. O cheiro de álcool e cigarro impregnava o ambiente com o mesmo odor abafado de um salão de jazz abarrotado.
Era uma sensação tão real que tive a impressão de ouvir o distante lamento de uma clarineta. Com os meus sapatos pretos, impecáveis, bem que poderia pisar os cabelos de Charlotte, até ela soltar um gemido de dor e suplicar: “Bruto, cafajeste, me larga! ”. Faria isso, para me sentir supremo no altar rasteiro de uma deusa decaída. Contudo, ainda permaneço imóvel, admirando a inacreditável mulher subjugada aos meus pés.
Não pensem que foi fácil chegar ao ponto em que a antes inacessível Charlotte não pode mais me desprezar. Sem nenhum escrúpulo e apenas com a coragem suicida, fui subindo na organização. A parte mais difícil foi me livrar de Teddy O’Brien, senhor pleno da lânguida Charlotte. Claro que devia muito a Teddy. Acho que até a minha vida. Fui ganhando a confiança dele executando os trabalhos sujos.
O primeiro foi livrar Teddy de Henry Lo Prote, o impiedoso Henry, seu sócio e braço direito, vítima da mesma impiedade que tanto praticara. Depois foi a vez, de tirar de cena um senador corrupto, pródigo em mamar nas tetas clandestinas da organização. O último e decisivo passo foi me descartar do próprio Teddy. Pobre Teddy O’Brien, crente de que seria uma festa de reconciliação com a sua adorável Charlotte e já esfriando na adega! Agora, eu dou as cartas.
Charlotte Sizemore não pode mais me rejeitar, não vai querer voltar à vidinha sem graça de antes. Agora, a deslumbrante Charlotte Sizemore está deitada no chão, subjugada aos meus pés, mas eu não sei o que fazer com ela. Por fim, depois de longa hesitação me aproximo. Volúvel Charlotte!
Ela pisca os olhos e me recebe com um sorriso acolhedor. Então, dou um chute no cinzeiro, espalhando as bagas de cigarro pelo assoalho e recuo, pronto para me livrar do corpo, ainda quente, de Teddy O’Brien, que nunca mais poderá ter Charlotte Sizemore, subjugada aos seus pés.
CARTÃO VERMELHO
1
Semana passada, mataram Neneca. Pegou uma corrida de madrugada. Os criminosos pediram para levá-los ao aeroporto. No caminho anunciaram o assalto. O homem não esboçou a menor reação. Mesmo assim, atiraram nele. Tão calmo, Neneca, com aquela voz mansa e arrastada de baiano errante. Não era capaz de matar um mosquito. Acho que não mataria sequer o mosquito da dengue.
Deixou mulher grávida e três filhos. Coitada de Dona Isaurinha! Agora sem marido, nem homem para cuidar da casa. Nós, taxistas, pagamos o enterro. De primeira. Caixão bonito, coberto com a bandeira do Botafogo; coroa de flores, missa de corpo presente, nota de falecimento num jornal popular. Triste, mas um enterro bonito. Não sei se terei um velório como o de Neneca. Mas não quero pensar nisso, agora, para não me agourar; logo eu que dirijo numa cidade sem lei, arriscada, enorme e caótica.
Não cansei de avisá-lo. A praça está perigosa, Neneca. Só este ano, já mataram dois conhecidos nossos, Caldas e Sinidônio, não lembra? Sem contar os que foram assaltados. Para que rodar de madrugada? É abusar da sorte. Além do mais, o táxi não vai fazer de você um homem rico, nem se dirigisse para o próprio Jesus Cristo, que, de dinheiro não entendia nada, tanto que viveu na pobreza e mandou devolver uma moeda com aquela história de dar a César o que é de César… Ele retrucava que precisava trabalhar, trabalharia 24 horas por dia, se aguentasse. O bebê estava para nascer; precisava do enxoval; uma boca a mais em casa, as despesas com o parto e o resguardo da patroa, ele sabia o quanto tinha que dar duro no volante, dia e noite, para pagar a operadora do plano de saúde. Coitado do Neneca! Não veria o filho caçula nascer, não veria mais os outros três filhos, não veria mais filho de ninguém; aliás, só o filho de Deus, se fosse para o céu como merecia.
Dá até vontade de largar a praça, vender o táxi e viver da aposentadoria. O diabo é que tenho que pagar a faculdade dos meninos. Joseilton, serviço social. Isso é lá profissão de homem? Hildete, engenharia civil. Deveria ser o contrário, ela assistente social, lidando com mulheres, crianças e idosos desamparados ou em situação de risco, como dizem, hoje, nos jornais, situação de rua, para quem vive na sarjeta; portador de deficiência visual, para o cego; relação homoafetiva, para não dizer veadagem; profissional do sexo, em lugar de puta… Só falta chamar taxista de condutor autônomo do volante em praça pública… Frescura! Mas, como eu ia dizendo, poderia ser inverso, ele, engenheiro civil, construindo pontes e represas, rasgando a terra para abrir estradas, levantando edifícios, cada um mais alto do que outro. Eta, mundão errado, meu Deus!
2
Em quinze anos de praça, só fui assaltado uma vez. Graças a Deus! Não pelo assalto em si, mas por ter sido apenas uma única vez. Como eu iria desconfiar que aquele casal com jeito de estudantes ― o rapaz de boa aparência, a moça, bonitinha, ambos arrumados ― eram bandidos? Pegaram a corrida para a rodoviária. No percurso, o rapaz puxou o revólver e anunciou o assalto. A mão até tremia, como se fosse a primeira vez que assaltava. Até pensei em reagir, tomar a arma, bater nos dois e chamar a polícia. Mas pensei que os bandidos muito jovens e inexperientes são os mais perigosos; também estão com medo e, quando assustados, puxam o gatilho por qualquer coisinha de nada. Nestas horas, o melhor é bancar o frouxo, que, de valente, o outro mundo está cheio, mas não está farto.
Levaram duzentos e trinta e três reais. Na saída, a moça ainda charlou: “Tchau, tio! Tchau, gostosão! ” Tchau, gostosão! Vê se pode? Nem minha mulher me chama mais assim. Aliás, nunca me chamou. É evangélica. Tem mania de salmos e não fala palavrão. Nova era fogosa, que crente também não é de ferro. Mudou depois da menopausa; aliás, da maior pausa, pois se aquietou de vez e não quis mais saber de sexo. Eu não liguei. Afinal, ela já estava mesmo meio acabadinha. Eu me aliviava na rua, com as putas e, como dizem por aí, com as garotas de programas. Já peguei até uma passageira casada e levei para uns desses hotéis de alta rotatividade; duas horas de prazer e o resto do dia de arrependimento, pois a mulher não era lá essas coisas todas, mas, como diz o ditado, já peguei pior pagando!
Depois do assalto, comprei um apito e ando com ele no bolso. Não sei se é uma boa estratégia, nunca o testei. Qualquer suspeita de crime, pegarei o apito e darei um silvo altissonante, alertando os transeuntes, outros motoristas e a polícia. Ando também com um cartão vermelho no porta-luvas. Para expulsar os passageiros indesejados, bêbados, principalmente, em vez de taxista, poderia ser juiz de futebol. Ah, mandaria muitos jogadores, mais cedo, para o chuveiro!
3
De esporte, só acompanho futebol. No rádio do táxi, ouço sempre as resenhas esportivas. Aprecio conversar com passageiros que também gostam de um jogo de bola. Se estiver com a camisa de um time do meu agrado, vou logo puxando conversa. Tá, feliz, né, com a virada de ontem? Rapaz, que azar: a bola explodiu no travessão, bateu nas costas do goleiro e não entrou. Também com um juiz daquele ― anulou um gol legítimo ― não tem time que ganhe. É como diz o velho ditado: quem não faz, toma. Pronto, era conversa até o fim da corrida.
Na Bahia, onde nasci, sou doente pelo Vitória. Só que o time tem mania de ser vice. Dá raiva. O Bahia caindo das pernas, esquadrão de aço enferrujado, mas com dois títulos de campeão brasileiro e a gente sem título, desde 1899. Sou torcedor realista: quem não quer ver o seu time campeão do Brasil, nem que seja uma vez para nunca mais? Bater no peito, beijar o escudo e gritar: ― Sou campeeeeãoooo! Campeeeeãoooo, porra! Até o Curitiba, o Atlético Paranaense, sem falar no Bahia, já foram campeões do Brasil. O Vitória, nada. Pior é o grito de campeão travado na garganta acostumada a gritar e xingar até em jogos amistosos.
Tem nada, não. Troco de mulher, de religião, mas não mudo de time. Tem gente que troca até de sexo, mas continua com o mesmo time. Não sou vira-folha para trocar de time. Como não troco o Botafogo por nenhum time do Rio, nem o Palmeiras por nenhuma equipe de São Paulo. Primeiro, o Vitória, depois o Botafogo e, por último o Palmeiras, minha Santíssima Trindade do Futebol; o Pai na zaga, para não deixar passar nem pensamento; o Filho no meio-campo, para armar as jogadas, e o Espírito Santo no ataque, para botar o diabo da bola nas redes.
4
Todo motorista de táxi é tagarela. Também passa o dia todo no volante, só ouvindo rádio, sem ninguém para bater um papo, jogar conversa fora. O senhor é daqui mesmo? Estrangeiro? De onde? “Ispique” português? Habla nossa língua? Buenos dias, muchacho? Como te llamas? Yo me llamo Anacleto. Anacleto Rodrigues da Silva, seu criado, muitas vezes, malcriado.
Bom mesmo é falar de política, assunto polêmico e incendiário. Gosto de político que sabe administrar. Pode até roubar, desde que faça uma boa administração. Rouba, mas faz. Faz e rouba. Até eu roubava. Por que não? Fosse político, roubava. Ia perder a chance de tirar o meu do que não é de ninguém, se é do povo? E povo é lá alguém? Povo tem dinheiro? Fosse vereador, prefeito, deputado, governador, tirava o meu e da minha família, não vou mentir. Presidente? Roubava ainda mais, por ser o chefão da quadrilha. Mensalão? Queria lá saber de mensalão? Comigo era na diária. Todo dia. Diarão. Nas mãos do papai aqui, do mandachuva. Faria grandes obras, daquelas que todo mundo vê, para calar a boca da oposição e deixar o povo satisfeito e indiferente à roubalheira. Mas, como não sou besta, não botava nada em meu nome. O que não falta é testa de ferro ou laranja para encobrir os desvios dos outros. Basta o CPF de um analfabeto, e a coisa está encaminhada. O coitado sequer vai saber que tem bens em seu nome. E se souber, cala-se a boca dele com uma boa propina. Para essa gente, qualquer coisa é lucro.
No táxi, tiro minha lasquinha. Taxímetro viciado, contando a mais, o dinheiro pingando, a conta-gotas; de centavo a centavo, de real a real; no final do mês, um pouquinho a mais. Já alivia o combustível. Também procuro o percurso mais longo. Se o passageiro não conhece a cidade, enfio a faca, dou voltas e mais voltas, sou capaz de andar em círculos até chegar ao destino que se poderia ir a pé. Comigo, perto é a China. Quase todos os taxistas fazem isso. Vou ser diferente por quê? Que venham cassar meu alvará…
Tem cada passageiro otário, que paga e não reclama. Com os bestas, tiro sarro. Como a mulher que entrou no meu táxi e pediu:
― O senhor vá direto para o centro.
Respondi que não iria; que era impossível. A mulher não compreendeu e perguntou:
― Por que não pode ir direto para o centro?
E eu, sublime:
― Tem curvas. Se for direto, bato o carro e a gente morre.
Ela ficou chocada:
― Misericórdia, moço. Vira essa boca para lá.
― Para onde, dona?
― Ah, sei lá!
― Vamos para o centro, dona.
Pisei firme no acelerador.
5
Peguei o gringo no aeroporto.
Porte atlético. Não muito alto. Cinquentão grisalho. Simpático. Cara de empresário, de pessoa importante.
― Alemão? ― perguntei.
― Italiano ― respondeu ele.
― Italiano? Não me fale em italiano.
Ele quis saber o motivo.
― Tomei ódio de italiano.
― Por quê? ― perguntou num português macarrônico, espaguete.
― 82 ― respondi.
― Entendo. ― disse o passageiro.
― Entende nada. Você tá aí é muito orgulhoso, trinta anos depois, da vitória da Itália, na Copa de 1982, na Espanha, diante da melhor Seleção Brasileira desde a de 1970. O time de Zico, Sócrates, Falcão e companhia, derrotado pela Itália, na maior zebra numa Copa do Mundo. Batido por um homem só, Paolo Rossi.
― E foi zebra?
― Foi, claro que foi. Quem esperava aquela derrota do time de Telê Santana? Quem?
― Eu. ― disse o homem, tranquilo diante da minha agitação, pois não posso falar de futebol sem ficar agitado e fico ainda mais agitado quando lembro aquela derrota que ainda dói e como dói…
― Esperava uma pinoia. Tá dizendo isso porque ganhou e é italiano, carcamano ― desabafei, mas ele não ligou para a ofensa e, se deu importância, não demonstrou no rosto o menor sinal de contrariedade; ao contrário, mantinha nos lábios finos o sorriso, sereno e tranquilo, dos vencedores.
Dirigi mais uma quadra e soltei o verbo. Ele me ouvindo, calado e atento como um papagaio a que se ensina a falar:
― O Bambino de Ouro destroçou o Brasil. David derrubando Golias, não com uma funda, mas com uma bola de futebol, um objeto que nada tem de inofensivo, ao contrário; uma bola de futebol provoca muitos estragos, como se a partida fosse disputada num campo minado.
O estrangeiro sorriu, discreto.
― Foi pior do que 50, quando perdemos a final em casa, de virada, para o Uruguai. Eu tinha apenas cinco anos e não entendia nada. Só estranhei o choro disfarçado de meu pai, que eu nunca vira chorando, nem mesmo no enterro de meu irmão caçula que morreu de meningite; e o acesso de raiva que o fez espatifar o rádio no chão da varanda, depois do gol de Ghiggia.
O gringo me escutava com mediterrânea paciência.
― Aquela derrota não me disse nada. Mas a de 1982 é uma batata quente entalada na garganta. Vejo dois culpados: Toninho Cerezo, com aquele presente, no início do jogo, para Paolo Rossi, e Telê Santana. Mestre Telê também errou. Estava com o jogo nas mãos. Precisávamos apenas de um empate. O Brasil já começou o jogo classificado, pois o 0 a 0 levava o time para a outra fase. Ninguém dava nada pela Itália, que não ganhou de nenhuma seleção na primeira fase. Presa fácil para os canarinhos. Ainda me lembro do samba de Júnior: Voa, canarinho, voa! Paolo Rossi cortou as asas do canarinho…
O homem não conteve o riso, como quem diz: concordo.
― Pode sorrir. Pode debochar. Não vou ficar nervoso, não vou ficar nervoso, carcamano. Italianos? Todos mafiosos, como é que se diz? Tutti mafioso, entendeu?
Era água gelada o que corria nas veias do gringo impassível.
― Tivemos o jogo e a classificação nas mãos três vezes: no 0 a 0, no 1 a 1 e no 2 a 2. Foi como diz o velho ditado: quem morre de véspera é peru. E de peru, a Itália não tinha nada. O miserável do Paolo Rossi abriu o placar, numa cabeçada fulminante, após cruzamento de Cabrini. 1 a 0, Itália. Meu coração tremeu. Aquele gol inesperado balançou as redes como um mau presságio. Depois do Maracanaço de 50, só faltava mesmo um Sarriaço, em Barcelona. Não meu Deus, não era possível! Mas, se o futebol é Deus, a bola é do Diabo e o capeta era Paolo Rossi, endiabrado como nunca.
Três décadas depois, profanando o meu táxi, o gringo italiano parecia reviver, com o mesmo enlevo de quem recorda um amor antigo, a incrível vitória da Azurra. Azurra! Só uma surra! Porém era um bom ouvinte, e eu, inquilino de ouvidos, ia despejando:
― Quase ninguém se preocupou com o primeiro gol dos italianos. Os brasileiros sabiam que o empate era questão de tempo e a virada, inevitável. O empate veio com Sócrates, o Doutor Sócrates, que morreu de cachaça. E por falar em Sócrates, gringo, sabe qual foi o maior trio de atacantes brasileiros de todos os tempos? Não sabe? Pois, eu lhe digo: Zico na frente, Soca-te atrás e Careca no meio, indo e vindo.
O abestalhado pareceu não entender, e eu repeti, reforçando a posição de Careca:
― Zico na frente, Soca-te atrás e Careca no meio, bem no meio, enfiado no meio, indo e vindo, entendeu?
― Ah, sim! ― limitou a responder o passageiro impassível.
― Mas, falando sério, Seu….
― Gentile.
Tomei um susto. Com tantos nomes de italiano, Pietro, Vittorio, Giovanni, Zanetti e muitos outros, aquele passageiro era xará justamente de Claudio Gentile, o xerife da zaga italiana que não deu mole para nenhum jogador brasileiro. Aí, já era demais!
― Não me fale nesse nome ― pedi. ― Gentile rasgou a camisa de Zico, dentro da área num pênalti escandaloso que o juiz não marcou. Deu porrada em todo mundo, fungou no pescoço dos nossos atacantes, demarcando terreno como se dissesse “essa área aqui é minha, ninguém encosta”. Raçudo, reconheço. Aliás, todo o time da Itália jogou com raça, disciplina tática e aplicação guerreira. Infelizmente! O Brasil vinha de uma campanha espetacular. Na primeira fase, 2 a 1 na União Soviética, 4 a 1 na Escócia e 4 a 0 na Nova Zelândia. A Itália tinha um retrospecto de três empates mixurucas, 0 a 0 com a Polônia, 1 a 1 frente ao Peru e 1 a 1 diante de Camarões. Só se classificou porque o Peru tomou 5 a 1 dos poloneses. Então veio a segunda fase. No mesmo grupo, Brasil, Itália e Argentina. Os italianos deram 2 a 1 nos argentinos. O Brasil deu 3 a 1 na Argentina de Maradona; aliás, Mara, a dona, que não gosto de argentinos! Com toda raiva, até prefiro os italianos. Dos males, o menor. Melhor perder para os italianos do que para los hermanos, irmãos dos outros, não meu! A Argentina é pertinho. A Itália é longe, e a distância dilui a dor. Além dos mais, os italianos não são arrogantes como os argentinos, que se acham europeus.
O gringo me ouvia como um colegial escuta seu mestre, sem me interromper.
― Então, veio a partida decisiva, Brasil e Itália. Qual era a lógica? Goleada do Brasil, mas futebol teima em contrariar a razão e subverter a lógica. Quer saber por que não ganhamos a Copa, Seu Gentil, que não vou dar a ousadia de lhe chamar de Gentile?
O italiano sorriu. Era até boa gente. Balançou a cabeça afirmativamente. Também fui afirmativo:
― Primeiro por causa do espetáculo. Fomos dar um show para o mundo todo reverenciar o nosso futebol arte, nãos para obter a classificação. Depois, o campo tinha dimensões menores, o que dificultou o toque de bola de um time mais técnico e facilitou a tenaz marcação dos italianos. O Brasil tocando a bola. A Itália se defendendo como podia, dando chutões, balões para frente, rifando a bola, na esperança de um contra-ataque mortífero que, de fato, veio. Foi assim o tempo topo; noventa minutos de eternidade.
O passageiro caladão. Eu, acelerando a língua, como acelerava o veículo para o taxímetro contar mais rápido.
― Se Telê Santana queria artistas, por que não levou Tarcísio Meira, Tony Ramos e Antônio Fagundes, no lugar de Zico, Falcão e Sócrates? O empate veio, como viria, mais cedo ou mais tarde. Enfiada de bola magistral de Zico e gol de Sócrates, que colocou a bola no canto em que Dino Zoff fechava, enganando o goleiro, 1 a 1. Porém, não bastava. Precisávamos virar o marcador, golear, se possível, humilhar o adversário, exibir a nossa máquina azeitada de fazer gols, demolir oponentes, triturar seleções. Tivéssemos recuado, contentes com o empate, se fechando em copas, ganharíamos a Copa. Seríamos tetra antes de 1994, com aquele empate sem sal e a vitória nos pênaltis, Baggio isolando a bola por cima do travessão de Taffarel (oh, nome de remédio!), diante da mesma Itália, vingança miúda!
O taxímetro marcando; os prédios passando; o gringo escutando a lengalenga que deveria saber de cor.
― Paolo Rossi, novamente. 2 a 1, num vacilo de Toninho Cerezzo, esse que, agora, tem um filho que virou mulher. Jogada displicente; a bola deslizando, traiçoeira, na intermediária, para os pés do matador; passe para o ladinho; de bandinha, sem prestar atenção no adversário. Paolo Rossi agradeceu, avançou um pouco e mandou para as redes. Valdir Peres, que já havia tomado um frangaço contra a União Soviética, aceitou. Jogo para cardíaco. Não aguentei e fui ao banheiro, urinar, aliviar a tensão. Quem sabe, quando voltasse, veria o empate já desenhado pelas leis, muitas previsíveis, do futebol, que não respeita regras, nem adversários, como não respeitou naquela tarde de 5 de julho, no Sarriá?
Fiz uma pausa para olhar o gringo, compenetrado como um bispo.
― E o empate veio. Golaço de Falcão, que recebe a bola de Júnior, próximo da meia-lua da grande área, corta para o meio e chuta, um tirambaço indefensável. Depois, corre para a comemoração, as veias dos braços dilatadas, como dilatados os corações de milhões de brasileiros. Grande Falcão, precisão e elegância em campo. Depois da Copa foi para a Itália, comprado pelo Roma e virou o Rei de Roma. Aliás, o futebol italiano levou nossos melhores jogadores. Zico para a Udinese, Sócrates para a Fiorentina, o entregão do Cerezo para o Roma e depois Sampdoria, Júnior no Torino e, em seguida, no Pescara. Todo mundo arrumado na vida, e a Seleção Brasileira desarrumada na derrota imprevista.
O estrangeiro resolveu falar:
― Os brasileiros jogaram muito bem, na Itália. Todos nós aprendemos com eles.
― Ainda bem que você reconhece, Giuliano Gemma!
Depois, enigmático, emendou:
― Eles também aprenderam comigo.
― Como? Você foi jogador? Por acaso é técnico?
― Dei uma aula para eles. Aprenderam comigo.
― Então, você é professor?
― Ensinei a Zico, Sócrates, Falcão, Cerezo, Júnior e todos eles, inclusive Telê Santana, uma lição inesquecível.
― Inesquecível? Como inesquecível?
― Ensinei italiano.
― Ah, bom! E o senhor jogou bola?
― Um pouco. Dei para o gasto, como vocês dizem por aqui. Nem craque, nem perna-de-pau. O suficiente para não fazer feio em campo.
― Mediano, né? Não parece. Tem cara de cabeça de bagre.
― Cabeça de bagre?
― Arranca-toco…
― Arranca-toco?
― Jogador chinfrim, ruína, chupa-sangue, sem nenhuma qualidade, que entra em campo e saí levando tudo pelo caminho, até um resto de árvore, se encontrar pela frente, na carreira.
― Ah, entendi. Também não fui tão ruim assim… Fiz muito gols.
― Contra, de canela. Desculpa a franqueza, Franco Nero, mas parece que você nunca pegou numa bola; se pegou, maltratou a redonda e tratou bem a quadrada…
― É, só parece… ― assentiu, misterioso.
Quis saber se ele assistiu ao jogo.
― Eu estava lá.
― Em Barcelona?
― É, no Sarriá.
― Turista?
― Visitante, como os brasileiros.
― Então, você viu tudo. O terceiro gol da Itália; a bola sobrando na área para Paolo Rossi. Júnior observando o lance, negligente na marcação, como toda a defesa brasileira; depois, pedindo um impedimento inexistente. Três gols no Brasil e de um cara só, Paolo Rossi, mafioso, envolvido com a máfia do futebol, ganhando dinheiro para manipular resultados…
― Sim, mas herói…
― Pras negas dele, as italianas brancas e peitudas, as Sophia Loren!
― Para o Brasil, também.
― Não vou negar: ninguém jamais esquecerá esse nome.
Ele resolveu soltar a língua, como soltava a bomba com a bola nos pés:
― No futebol, o Brasil vai sempre se lembrar de Pelé, Garrincha, Zico e Ronaldo e, do lado que deseja esquecer, Ghiggia e Paolo Rossi.
― Pior, que é a pura verdade ― concordei e tratei logo de mudar de assunto. ― O time do Brasil era todo bom. Ou melhor, quase todo, pois tinha o Valdir Peres, que não era de confiança, e o Serginho Chulapa, raçudo, mas grosso e presepeiro.
― Presepeiro?
― Que procura confusão à toa.
O passageiro concordou com um aceno e eu continuei a arenga:
― Um empate, um simples empate diante da desacreditada Itália. O senhor, que é italiano e parece entender de futebol…
― Entendo.
― O senhor que também entende futebol, me diga uma coisa: é verdade que a Itália só tinha uniforme para enfrentar o Brasil, pois achava que depois daquele jogo voltaria para casa?
― Invenção da imprensa.
― Deve ser mesmo; jornalistas, um bando de mentirosos. Quando não inventa, exagera.
― Na Itália também é assim ― concedeu o italiano e depois se calou.
Eu não me calo. Converso mesmo. Quem não quiser me ouvir, faça ouvidos de mercador.
― O que enterrou de vez as pretensões do Brasil foi aquela defesa miraculosa de Dino Zoff, no final da partida. Éder bate a falta, num cruzamento para a grande área, Oscar chega de surpresa e cabeceia para baixo; o goleiro se atirando, rente à marca do gol e espalmando a bola, quase impossível de ser alcançada, como Gordon Banks, da Inglaterra, defendendo a cabeçada de Pelé, na Copa de 1970. Como todos os brasileiros, cheguei a me levantar do sofá, comemorando o empate, aos 43 do segundo tempo. O Brasil salvo, pelo gongo. Mas que nada! Zoff pegara a bola em cima da linha. Não era possível! Foi aí que bateu a desilusão. O gol estava fechado por algum sortilégio do demônio da bola. A bola não entraria nem em cobrança de pênalti para o gol vazio. Só podia ser feitiço, castigo pela soberba do futebol canarinho.
O passageiro escutava e olhava os grandes edifícios ao redor. Eu soltava o verbo, os advérbios, as preposições, os substantivos, os adjetivos, a gramática toda:
― Mas, como o ânimo de torcedor se move mais do que a bola em campo, logo espantei a “paura”, como vocês dizem, me apegando ao velho chavão: o jogo só acaba com o apito final. Quem sabe, até o fim, uma bola traiçoeira, em trajetória mansa para o gol de Zoff, ou uma bomba de fora da área, como a de Falcão, afugentando a zebra, espanando o desastre, decretando o que já parecia impossível? Porém, o empate não veio. Brasil fora da Copa. Itália classificada. Se eu vivesse duzentos anos, jamais esqueceria aquele jogo…
Impiedoso, o gringo quebrou o silêncio:
― Muito menos eu!
― Claro, é italiano.
― Porque estava lá.
― Você já disse.
Frio como um goleador nato, ele revelou:
― Dentro de campo.
Estudei a fisionomia dele.
― Ah, sim! Agora me lembro. Era o juiz…
Veio, então, a piada de mau gosto:
― Sou Paolo Rossi.
Também resolvi debochar:
― Prazer, Zico, o Galinho de Quintino!
Ele insistiu, desta vez perverso:
― Sou Paolo Rossi, o carrasco do Brasil!
― Pra cima de muá, pra cima de muá, italiano?!
― Quer ver? ― perguntou o passageiro e, em seguida, me estendeu o passaporte.
O documento queimou minha mão, como fogo. Puta que pariu! Mamma mia! Era ele mesmo, Paolo Rossi, nascido na província de Prato, na região da Toscana, em 23 de setembro de 1956, que eu levava em meu táxi, em carne e osso, quisera só osso! O Bambino de Ouro, o camisa 20 da Itália de 1982, o nome que mais evocava tristeza para o futebol brasileiro da minha geração. Soube, depois, que viera participar de um congresso internacional sobre futebol, patrocinado por uma multinacional de materiais esportivos e, claro, pela FIAT!
Freei o carro. Desliguei o veículo. Abri o porta-luvas e peguei o apito e o cartão vermelho, desci para a calçada, abri a porta do passageiro, apitei e mostrei o cartão vermelho a Paolo Rossi, que me olhava atônito, pela primeira vez exprimindo uma reação nervosa, de susto.
― Fora! Fora de campo! Quer dizer, do meu carro. Está expulso! Fora!
O campeão do mundo de 1982 ainda tentou argumentar, em italiano:
― Mas, como é que pode?
Cada vez mais zangado, prestes a espumar de raiva, indignação e vergonha por haver conduzido pelas ruas do Rio justamente aquele passageiro indesejado, não quis conversa, como um juiz que não admite reclamação:
― Posso! O carro é meu. Fora! Está expulso! Expulso!
Digno e civilizado, o jogador ainda quis pagar a corrida abortada.
Peremptório, reagi, brandindo o cartão vermelho na venta dele:
― Não precisa pagar. O senhor não me deve nada. A mim, não deve nada.
Persistente, como há 30 anos, quando corria atrás da bola e infernizava a defesa brasileira, ele procurava compreender:
― Como não lhe devo nada?
Eu expliquei, com rima e tudo:
― O senhor deve a uma nação inteira. Deve à Pátria de Chuteiras!
Deixei o italiano no meio da rua, intrigado com a minha patriótica vingança; arrastei o veículo, os pneus cantando no asfalto. Deveria ter passado o carro por cima dele. Bambino de ouro! Gladiador implacável! Teria que carregar aquele nome pelo resto da vida, como uma cicatriz no corpo e uma chaga na alma. Sem contar o peso da derrota, bola que balança as próprias redes, gol contra repetido em câmera lenta na arena do tempo. Paolo Rossi!